MEMÓRIAS VIVAS
Os meus amigos, todos aqueles que vão tendo a paciência de me ler, ver e ouvir, tanto naquilo que escrevo, que digo e mostro em vídeo, usando o meu site “trilhos-serranos” (este mesmo, o Youtube e o Facebook (pois deixei de colaborar nos jornais) por certo repararam que dediquei alguns dos últimos trabalhos à minha mulher, Mafalda, na sua qualidade de PROFESSORA E ARTISTA.
PRIMEIRA PARTE
Guiado por um princípio que eu próprio coloquei na minha tabela de valores, sempre que me disponho a abordar factos históricos e comportamentos humanos, nomeadamente distinguir o que no mundo é “comunitariamente útil e pessoalmente proveitoso”, tenho feito eco público dos caminhos andados com enfoque nas pessoas e nomes que comigo se encontraram nas encruzilhadas da vida. De todos aqueles que, para além de legitimamemte se terem decidido a “trabalhar para viver e viver para trabalhar”, foram um bocadinho além disso e partilharam com o mundo algumas centelhas da sua imaginação e criatividade e iniciativas de interesse comum. Esses trabalhos e os nomes dos seus autores, sem distinção de credos, ideologias, cores e habilitações académicas (letrados e iletrados) aí estão em muitos apontamentos que escrevi, filmei e divulguei.
E foram pedreiros, escultores, engraxadores, serralheiros, artesãos, poetas, escritores e, também, literatura oral, captada ao vivo, em campo aberto ou em convívio fechado de taberna ou tasca, chão sempre eloquente e são.
Não havia, pois, razão para deixar de fora a Mafalda, só por ela ser a minha mulher. Não me foi fácil fazê-lo. E toda a pessoa inteligente, com elos bastantes de afetos a ligarem as emoções e relações humanas me dispensará a explicação de só o fazer agora.
É certo que já antes, de forma fugaz, me tinha referido, aqui e ali, aos seus desenhos e pinturas. Alguns ilustraram o meu livro “Lendas de cá, Coisas do além”. Mas jamais a pus a falar depois de morta, usando a gravação audio de algumas das suas conversas com os alunos, donde sobressai uma relação pedagógica com eles, invejável a todos os títulos.
E, face aos tempos que correm e ao que se diz por aí sobre o que se passa atualmente nas nossas escolas e salas, tinha de fazê-lo com o título: “PEDAGOGIA NA ESCOLA E FORA DELA, NA VIDA E PARA AQUÉM DELA”, refletindo com verdade e ao vivo a sua postura profissional. Um título, em si próprio, PEDAGÓGICO.
SEGUNDA PARTE
Conhecemo-nos dos tempos de liceu. Fizemos a Universidade juntos, constituímos família e tornámo-nos docentes do Ensino Preparatório, em Moçambique e em Portugal. Licenciados em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (licenciatura iniciada na Faculdade de Letras de Lourenço Marques) tínhamos, por formação académica, a mesma visão do mundo, aquele mundo cosmopolita que bulia na cidade das acácias arejada pelo Índico, habitada por tudo quanto era gente proveniente de todos os pontos cardeais. Estudámos pelos mesmos livros e tivemos os mesmos professores, exceto um ou dois. Navegávamos na fita cronológica da PRÉ-HISTÓRIA e da HISTÓRIA com a empatia devida aos vencedores e vencidos nas guerras e batalhas que se travaram ao longo dos tempos. Acompanhámos as tribos dos primeiros hominídeos nas suas deslocações recolectoras e ao seu sedentarismo. Aprendemos os nomes Australopitecos, Sinantropos, Pitecantropos, Neandertal, homo eretos, homo sapiens. Utilizámos as suas ferramentas de caça e de agricultura. Idade da Pedra, Idade dos Metais e tantas coisas mais. Aprendemos com eles os primeiros sinais de comunicação e as primeiras letras. Acompanhámos a evolução da escrita nas suas diferentes formas. Assistimos à formação e à queda de impérios. Ouvimos os cantos de glória dos ganhadores e ouvimos os lamentos dos perdedores. Vimos a alegria de uns e o choro dos outros. O ser humano na sua totalidade. Solitário e em bando, horda, legião ou exército. A vasilha de ouro, de porcelana, de madeira, ou de barro grosseiro sempre pronta a receber e a entornar o conteúdo nato ou adquirido: a bondade, a solidariedade, o egoísmo e a bestialidade. As deslocações de pessoas levadas pelo espírito de avetura e outras forçadas a deixarem o torrão natal ocupado pelo aventureiro que chegou. Paz e guerra. Por todos os cantos da terra, deuses muitos, homens tantos e Papas Santos.
Pela mão do Professor Humberto Baquero Moremo, participamos na formação e queda do Império Romano. E na companhia dos professores Alexandre Lobato e António Borges Coelho, conhecedores do Atlântico, do Índico, da África e da Ásia, estivemos na formação do Império Português. Integrámos as legiões romanas na conquista da Gália e nos estragos da rebelião comandada por Vercingétorix. Estivemos nos circos romanos, vimos gladiadores e polegares para cima e para baixo (atualmente o polegar está muito em moda). Fizemos parte dos exércitos de Alexandre Magno e assistimos ao desaparecimento do Império Persa. Navegamos com Homero nas barcaças Odisseia e Ilíada até aportarmos em Troia e na Ítaca. E vimos Esparta e Atenas. Muralhas e templos. Cidades-estado embriões de outros estados. Somos todos romanos e gregos. Civilizados e bárbaros. Celtas, Vândalos, Alanos e Visigodos. Cristãos, protestantes, ateus e pagãos.
Presenciámos as guerras medievais, formação de reinos, territórios de reis, condes, marqueses, grandes domínios senhoriais. Escravos e servos da gleba. As cruzadas à Terra Santa que pouco tinham de santas. A tomada da Península Ibérica pelos Árabes e a Reconquista Cristã. Tempos de heróis e santos. A expulsão dos mouros e a descoberta e conquista da América. Os ameríndios a verem a sua terra transformada em grandes plantações de açúcar e de algodão com mão-de-obra negra ida de Africa. Gordas fortunas conseguidas no comércio esclavagista. As grandes revoluções políticas, económicas, sociais, técnicas, culturais e tecnológicas. A partilha de África na Conferência de Berlim, em 1884/85, feita a regra e esquadro. Mas não era o fim. África, esse continente de carreirismo político, militar, administrativo e também de degredo, de escravatura e de malária, enfim.
A primeira guerra e a segunda guerra mundiais, na Europa. Mortos, feridos e estropiados. Os campos de deportação nazi e os fornos crematórios. A formação do Estado de Israel e o interminável conflito Israelo-árabe. Tudo. Homens, mulheres, crianças. Campos provisórios de refugiados na Palestina e no mundo que tornam campos permanentes, um poço sem fundo. Apologistas da guerra e da paz, aquém e além-mar. Estranho é o ser humano. O homem, lobo do homem. E Deus, impávido e sereno, lá nos céus, onde quer que exista e esteja, a deixar correr sem que nada veja deste “bicho da terra tão pequeno”.
A descolonização da África gizada na conferência de Bandung, em 1955. A guerra colonial e os seus efeitos para negros e brancos e todos as mais pessoas que fizeram, viram e disseram “África Minha”. Mortos, feridos e estropiados. O 25 de abril e, em Lourenço Marques, nos microfones da emissora citadina, a canção “Grândola Vila Morena” a alternar com o hino “Heróis do Mar”, conforme tomavam lugar, sem cerimónias, os “pró” ou “contra” a independência das colónias. Euforia esfuziante para uns, desalento e tristeza para outros. Muitos vivas e muitos morras. Caravanas de carros e corras a rodarem pelas ruas e o ensurdecedor ruído das buzinas. Uma loucura. Era o povo anónimo, humilde, trabalhador, despolitizado manipulado pelos profissionais da política e da governança. Tanto trabalho, tanta andança a fazer honestamente pela vida. E, de um dia para o outro, nada. Foi a debandada total. Era o fim do Império Português. Ali foi Portugal.
TERCEIRA PARTE
Dos 500 mil retornados de África nós éramos dois. Não. Três. Pois o meu filho mais velho nasceu lá e tinha apenas um mês. Regressámos de avião, sem contentores, nem malas de porão. Cá chegados, como o saber não se perde, retomámos os dois a profissão, em Castro Verde, que prosseguida foi, depois, em Castro Daire. E para que se saiba, fosse nos pegos mais fundos do Paiva, ou no topo mais alto do Montemuro, lá, até onde se sobe e trepa, um espanto, não era para ela uma seca, mas um encanto. Em cima de um penedo (subia bem, a descer tinha medo) fazíamos mesa de estudo, contemplado a natureza e o universo. E desenhava sempre o que achava belo, longe ou perto. Um de cada vez montámos tenda em parques de campismo do sul e do norte, Mirandela, Vila Flor, Braga, Caminha e Penha, em Guimarães. No conjunto, nessa nossa digressão de férias no campo, subimos ao Montesinho, mas acampar lá é que não. Rumámos para o Gerês. Caminha foi a última vez. Foi fim de linha. Agosto de 1996.
Faleceu de cancro, em 21 de fevereiro de 1997. Com 49 anos de idade apenas. Uma vida inteira à sua frente, cortada assim rente, com tantos planos de realização profissional e artístico à espera de tempo próprio. A preparação antecipada e uma aposentação ativa. Sem traumas pós-aposentação. Ia fazendo ensaios, esboços, rascunhos, pinceladas, obras acabadas e assinadas e outras começadas com vista a finalizar e assinar depois. Sabia estar ainda longe o tempo de verter para realidade colorida os sonhos que acalentava dentro de si a fervilharem-lhe na imaginação e inspiração. Mas os quefazeres profissionais e domésticos quotidianos não lhe permitiam isso, de momento. Outras prioridades se impunham. O ferro de engomar, as agulhas de tricô, de renda, de camisolas e meias, alfinete espetado no peito, novelos ao lado, davam corpo aos cortinados das janelas, à colcha de renda para a cama, aos bordados de lençóis, almofadas e outros adereços coloridos de cozinha e casa de banho. Uma professora, uma artista, uma mãe, uma esposa, uma SENHORA.
E todos esses sonhos e aspirações que foram partilhados comigo durante anos, dia a dia, quer em casa, quer nos passeios pelos montes, secaram no cantinho da casa que era seu. Ali secaram as tintas, os vernizes, os pinceis, os godés, a paleta e lá estão lacrados os pacotinhos de tinta para vidro e louça. Mas nos vidros das janelas ficaram e ficarão, mesmo já com algumas malhas caídas, as cortinas de renda que, ali presentes, são marca sua e dão à nossa casa beirã um certo ar alentejano. Ela fê-las em duplicado. Mas gavetas permanecem as novas. Penduradas estão aquelas que por ela lá foram postas. Vão a lavar e voltam. Todos dias, há muitos anos, a coada luz do sol continua a atravessá-las e a projetar os seus desenhos na parede de frente. Eu, como toda a gente, partirei um dia e elas ali perdurarão para aquém de mim.
Foi preciso deixar passar muito tempo para que eu, useiro e vezeiro a relatar factos e perfis de pessoas que, no meu critério, são dignas disso, pudesse escrever isto. Pudesse olhar, com o distanciamento público devido, a obra e o perfil da minha mulher. E mesmo ciente de que “a memória sobrevive à matéria”, guardado está todo o material que ela manipulou com arte, engenho e afeto. É uma herança material e afetiva destinada aos filhos e netos, na perceção minha de que, como já disse em escritos e vídeos anteriores, “as coisas mais não são do que a nossa extensão humana”.
QUARTA PARTE
Dito isto, não havia, pois, razão para que a minha esposa, enquanto PROFESSORA E ARTISTA excluída destes meus trabalhos. É certo que já em apontamentos anteriores eu me tinha referido à sua arte (alguns desenhos seus ilustram mesmo o meu livro “Lendas de Cá, Coisas do Além”, mas pô-la a falar depois de morta, naquela sua relação pedagógica com os seus alunos (ver vídeos), nunca o tinha feito, nem pensava fazer. Mas ainda bem que o fiz, pois trata-se de uma relação pedagógica invejável a todos os títulos, atendendo ao que hoje se diz por aí sobre o nosso sistema educativo e comportamento de professores e alunos.
As suas netas, a Mafalda e a Marta, bem como o neto Guilherme, que não tiveram a felicidade de receber dela os carinhos que receberam os nossos filhos, o Nuro e o Valter, só terão de orgulhar-se da vóvó Mafalda quando tiverem idade para apreciarem a sua arte de desenhar, de pintar, de falar com os alunos que pacientemente ouvia no reconto das suas leituras e vivências no meio social donde provinham ou estavam integrados. Aquele lembrete (ver o vídeo) dos avós, pais, tios, vizinhos e amigos serem agentes educativos é de uma oportunidade educativa singular. O conceito claro da COMUNIDADE ESCOLAR. A sugestão feita a outro aluno, em forma de pergunta, se ele se sentia viajar através de uma narrativa escrita, idem, idem, aspas. E aaquela outra advertência de ser “pouco digno” ficar com o tesouro encontrado, só mesmo de EDUCADORA lida, estudiosa e experimentada. Saber ler, recontar, ouvir e comportar-se socialmente.
E não é difícil ver, no seu procedimento pedagógico, a presença dos imprescindíveis ensinamentos de Jean Piaget, de Henri Valon e outros mestres da PSICOLOGIA infantil que recheiam a nossa Biblioteca. E, face aos registos áudio que ficaram gravados nas cassetes daquele gravador que já virou peça de museu, não custa eu ver toda a turma - QUINTO E SEXTO ANO - em silêncio, de boca aberta, de olhos ferrados na coleguinha ou no coleguinha “narradores” a tomarem conta da aula. E a PROFESSORA, como que apagada, mas atenta, somente interpelante no momento-chave, para questionar a interpretação do texto e/ou para interromper a aula, porque o tempo se esgotou.
Da sua relação com os educandos ficou na memória deles (hoje adultos, mães e pais com filhos nas escolas) o gesto de entregar os testes com a avaliação e um desenho ao lado da nota dada. Mais uma atitude onde não custa vislumbrar o reforço positivo de Skiner entusiasmando quem estuda e quem aprende.
Várias foram as alunas que dizem ter em casa guardadas essas relíquias. Que iriam procura-las para eu incluir nesta crónica. Mas elas de tão bem guardadas estão que, apesar das diligências que fizeram não encontraram o tesouro. Desisti de reproduzi-las. Mas reproduzo as mensagens que me fizeram chegar o Telmo e a Mafalda, referidos nos vídeos, depois os os verem no YOUTUBE:
«Muito bom ouvir, as vozes de crianças que tão bem me lembro... A menina que mais fala no vídeo, a Isabel Machado não tem Facebook. Vou partilhar com a Mafalda. Sim professor, tenho que partilhar. Elas vão gostar de ouvir. Abraço» (Telmo Ferreira)
«Muito bem-haja, professor! Foi sem dúvida, com alegria e nostalgia que ouvi isto. Quando na nossa vida temos destas memórias e o privilégio de conhecer pessoas maravilhosas como a professora Mafalda, só podemos ser seres felizes» (Mafalda Andrade)
Esta crónica tinha de ser escrita e publicada. Sim. Nestes tempos de memórias voláteis que deslizam nos ecrãs de Iphones e Ipads à velocidade do gesto dos polegares que neles escrevem e apagam tudo, eu devia isso à MAFALDA, a essa minha colega de estudos, de profissão e mãe dos meus filhos. Na sua sabedoria disse-me um dia que eu era “um homem ‘de’ palavra e ‘da’ palavra”. Com efeito sempre gostei de respeitar os meus compromissos e deitar-me de consciência tranquila. Seja no dia que tem noite, seja na noite que não terá dia.
De resto, tudo o que tenho escrito ao longo dos anos, inclusive este extenso apontamento (até parece um testamento) tem sido na presunção de que a “PEDAGOGIA SE FAZ NA ESCOLA E FORA DELA, SE FAZ NA VIDA E DEPOIS DELA. Proposição que pode não servir de nada, mas tem o selo de garantia dado por 80 anos de vida trabalhosa, estudada, pensada, penosa, gozada e sofrida.
CONCLUSÃO
E, para que se diga tudo o que pode ser dito, direi que, nesta minha tríptica tela vicentina, à semelhança de Nuno Gonçalves, retiro o luto e pinto nela, em lembrança, muita figura feminina, sem nome, que nome tinha. Letras e sentimentos são os condimentos das tintas que sempre transportei no bornal da vida, ele, cujo recheio, na caminhada se consumia e repunha, se recusa a esgotar-se, ao contrário da cabacinha que ainda goteja, mas quase nada.
É isto. Fazendo eco público do que dentro de mim escuto, jamais cometeria a injustiça de, romeiro que fui, no mundo por onde andei, excluir deste registo todos os santuários, sem santos, frente aos quais me ajoelhei. E foram tantos. Ninguém vive reprimindo os impulsos vitais e sem relações afetivas e sociais. E se os sentimentos são alimentos, foram eles que vida me deram e dão. Prossigo a caminhada. Distante está o ponto de partida. A meta de chegada aí vem, não carrego a ingratidão. Apoiado no bordão, com a vieira pendurada, levo por companhia um poeta. Adivinhem quem:
“Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades”.