Sou cliente novo, mas vou acompanhado de gente amiga. Atravessámos a mercearia e entramos nesse espaço. Ao centro existia uma mesa de madeira comprida, ladeada de dois preguiceiros a todo o comprimento dela. E ao fundo, nesse espaço das traseiras, duas TALHAS gigantes de vinho com torneiras. Pipas à maneira do norte? nem vê-las. Que sorte a minha tê-las ali, à minha frente, coisa diferente, até antão, ausente do meu conhecimento. Uma lição. Professor de história, outra terras, outras gentes guardadas na memória.
O merceeiro, que era o taverneiro, foi atender-nos. Pôs os copos na mesa, encheu a jarra de vinho jorrado da TALHA e disse: “sirvam-se, quando acabar vão encher novamente”.Assim mesmo. Confiança absoluta nos clientes. Todos sentados, lado a lado, um “companhêro” encheu o copo e passou a jarra. Cada um se serve a si mesmo. O “tavernêro”, que era o “merceêro” foi para a mercearia. Tinha outra clientela. E assim até ao fim.
Outro “companhêro”, tudo novidade para mim, tirou a mão do bolso e, como quem semeia milho numa leira, espalha grão de bico torrado por toda a mesa e ouve-se o tilintar dele pela madeira adiante. Um instante. Nunca tal tinha visto. Foi pra mim a vez “primêra”. Para mim, ligado à agricultura na mocidade, esse instante volveu eternidade. Vai morrer comigo. Homem feito, vi-me daquele jeito transformado em pintaínho a bicar e a mastigar grão a grão, logo empurrados com o vinho tinto servido da jarra. Tudo entre conversa, riso e algazarra. Boa disposição. Comvívio vivido e são. Ali, nem piada se perde. Estou no Alentejo, terras de Castro Verde.
Esgotada a jarra, outro “companhêro” levantou-se, rumou em direção à TALHA, rodou a “tornêra”, encheu-a, fez um risco com giz no bojo vermelho da vasilha, parecida com bilha, e voltou. Honrada gente. Cada jarra esvaziada, da última à “primêra”, correspondia um risco. Isto até ao fim da “bebedêra”. Era assim. Tanta coisa nova para mim. Que calor humano. A cassete rodava no gravador, ali ao lado, e, tanto ano passado, transporta-me à atmosfera vivida naquela taberna, à desbanda de uma horta, e faz-me ouvir vozes dos meus amigos, as vozes de gente morta.
As contas acertavam-se no fim, sem entrar o petisco, o grão de bico torrado na mesa semeado por lavrador honrado. E do bolso tirado e servido à lavrador eu, professor de profissão, com alguns anos de vida, aprendi ali aquela lição dos livros excluída. Nunca esquecida. Tão natural e social ela foi. Os preconceitos da ASAE e obrigatoriedade de consumir alimentos “emprazados”, em celofane, ou plástico embalados e vendidos, eram coisas do porvir. E hoje fazem-me rir certas patologias ditas em defesa do consumidor, mas que mais não são do que defesa e do intermediário mais do que do produtor.
A humanidade tonou novo rumo. Estamos na sociedade de consumo.
Hoje em dia, enfim, quem é que comia o grão de bico tirado assim do bolso pela mão do lavrador que teve o cuidado, a gentileza de colocar na mesa, com amor o contributo do seu labor e enriquecer o convívio?
Este texto, escrito longe daquele povo, é de homenagem a todos esses “convivas” falecidos certamente, pois eu era o mais movo. E, sem ser coisa de monta, conto oitenta anos na minha conta. Memórias mortas. Memórias vivas.