RISCOS COM AFECTOS
Quando fui para Moçambique, em 1960, viajei no paquete “Pátria” e tive o cuidado de comprar um postal com a imagem do navio que remeti para os meus pais logo que cheguei à cidade de Lourenço Marques, naquela costa do Índico, lá do outro lado do mundo.
Não me lembro do texto, mas certamente falei da viagem, que tinha chegado ao destino e deixado a residência ambulante, temporária, muitas vezes ondulante por força das vagas do mar. Já estava em terra firme, na companhia da minha irmã Elisa e do seu marido.
Se não escrevi isso, foi certamente algo semelhante, mas ao certo, ao certo, não retenho na memória, ainda que da memória não me tenha saído a imagem da SETA (o risco) que fiz na direção de uma das vigias circulares abertas do seu costado, aquela que permitia a entrada da luz que alumiava o porão onde viajavam os passageiros da minha classe, todos acomodados em beliches empoleirados, semelhantemente aos que tinha usado nas casernas dos quarteis de Viseu e da Figueira da Foz, enquanto soldado raso.
Com esse meu gesto, para além da informação da chegada, claro está, pretendi certamente transmitir aos meus pais e irmãos que ficaram em Cujó algo da experiência vivida sobre as águas do mar e conduzido certamente pelo impulso natural que todos nós temos de partilhar com aqueles que nos são queridos os espaços onde vivemos ou onde estivemos. Em tempos idos os meios utilizados eram postais, as cartas, os telegramas ou conversas pelo telefone fixo. Hoje há mil maneiras de fazer o mesmo. Eu estou a usar um deles, nessa altura nem sonhado.
E vem isto a propósito de algumas perguntas feitas por alguns amigos meus no sentido de melhor “captarem” o ambiente doméstico que respiro e transmito nos trabalhos que publico.
Mas não foi isso que me levou a escrever este texto. Ele resultou do facto de eu ter encontrado um papel esquecido entre as páginas de um livro cuja leitura revisitei há dias.
Não está assinado, nem tem título, mas, mal lhe pus os olhos em cima a identificação foi imediata. Trata-se se de um desenho feito pela mãe da minha mulher, pois dela é a letra e a explicação que legenda o “rabisco”.
Traços simples, sem escala, a mãe procurou neste esboço informar a filha onde morava na altura, juntamente com outra filha, o genro e dois os netos: um menino e uma menina.
Mais tarde, vim a visitar esses familiares naquela moradia, arredores de Aveiro. As facilidades de comunicação e de viagens de ontem, não eram iguais às de hoje. Mas, a minha mulher, os meus filhos e eu, fomos ali algumas vezes. Sempre muito bem recebidos.
E agora, passados tantos anos, ao caírem-me os olhos neste papel, foi como se estivesse lá novamente. E creio que desejar a nossa presença foi o objetivo da minha sogra quando se deu ao cuidado de fazer estes “rabiscos sem escala” e mandá-los à filha, à minha mulher. Leu-se, arrumou-se e ficou esquecido dentro de um livro.
Ao encontrá-lo recuei anos de vida. E veio uma enxurrada de recordações e de afetos. A minha sogra faleceu. A minha esposa faleceu. E o sobrinho referido no esboço faleceu num acidente.
Outros elementos da família, rumaram para destinos incertos, ainda que certos estejam na lembrança e nos afetos que exalam deste simples papel, lido, perdido e achado.
Digitalizá-lo e divulgá-lo foi um imperativo de consciência. Um impulso de alma. As heranças que recebemos dos nossos avoengos, aqueles cujo sangue corre nas veias dos nossos filhos e dos nossos netos, não são apenas bens materiais. São também aquelas heranças que projetaram saber, afetos e desejos de estar juntos. De estar em FAMÍLIA.