RETORNADOS (COM MUITA HONRA)
A revista “SÁBADO”, de 31 de janeiro de 2019, publicou uma crónica sobre os “RETORNADOS” com o título “A REVOLUÇÃO QUE VEIO DE ÁFRICA”.
Semelhantemente à extensa reportagem que, há anos, foi publicada em “O Jornal”, assinada por Fernando Dacosta, li, com agrado e avidamente o que, passados todos estes anos, esta “SÁBADO” escreveu.
A páginas tantas, diz-se ali que a “integração dos 500 mil portugueses que voltaram das ex-colónias em África foi o maior repatriamento da descolonização europeia, quando medido em função da população do país. É uma história colectiva bem sucedida (...que...) modernizou as cidades e aldeias do inteior, forneceu peritos para expansão mais rápida da Saúde e da Educação, lançou milhares de novos negaócios, transformou a rádio e a televisão e acelerou a liberalização dos costumes”.
Já dei o meu contributo a este peditório no meu livro “MEMÓRIAS MINHAS - PORTUGAL, MOÇAMBIQUE”, mas a revisitação feita agora por esta rsvista, suscita-me, em apoio do que foi investigado e dito, dois ligeiros apontamentos, assaz significativos.
O primeiro refere-se ao encontro que tive ocasionalmente em Faro, com o senhor empresário MARTINS, que eu conhecia de Lourenço Marques. Com porta aberta de OURIVESARIA e ÓCTICA naquela cidade, foi lá que comprei as alianças de casamento e uns óculos de tartaruga, que usei anos sem conta.
Aconteceu que ao passar na rua principal de Faro, aberta exclusivamente a peões, aquela que desemboca no Largo das Pirâmides, colodo à marina, deparei-me com a “ÓCTICA MARTINS” situada numa esquina com montra rasgada em ângulo recto. Associei imediatamente o nome ao meu amigo de Além-Mar e espreitei através do vidro. Não me enganei. Por detrás do balção lá estava ele, pronto a atender os clientes que lhe entrassem porta dentro.
Eu entrei e, depois da surpresa e cumprimentos habituais entre pessoas que se conhecem e estimam, felicitei-o pelo excelente espaço comercial, amplo e bem situado que tinha arranjado para continuar no mesmo ramo de negócio.
Pois, mas espere aí. Deixei o ouro de parte e isto, que agora vê, não era assim. Aquilo que hoje são montras rasgadas eram apenas duas janelecas e fui eu que fiz isto tudo. Ainda encontrará, rua abaixo, algo semelhante ao que isto era. E as montras que agora aparecem rasgadas vieram na sequência do meu exemplo. Por aqui pensava-se “em pequeno”. Nós viemos rasgar horizontes, tal qual eu rasguei estas montras.
E fixando-me o rosto perguntou, meio estupfacto: “ainda usa esses óculos? Já estão desactualizados. Ora veja aqui estes?”.
Tá, bem, tá. Fiquei em substitui-los depois e foi o que aconteceu. Lá, como cá, ele estava no seu papel de comerciante e, na verdade, tinha toda a razão. Acontece que, óculos como queles, nunca mais tive. E guardo-os como jóias. Através das suas lentes me chegou ao cérebro muito do conhecimento académico que ignorava, muita da minha mundividência, forma de ser e estar no mundo. Através dessas lentes vi pela primeira vez a Mafalda, a mãe dos meus filhos. Por isso eles ilustram este apontamento. Assentavam-me bem no nariz e se os troquei, não foi por imperativo da moda, mas porque a sua estrutura de tartaruga não se prestava a receber as “lentes bifocais” receitadas pelo médico. São uma relíquia.
Outro apontamento que aqui deixo resulta das palavras escritas na revista citada, atribuídas à jornalista Fernanda de Oliveira Ribeiro (SIC) acerca de Emídio Rangel. Diz ela que ele “foi um líder nato que, num país de chefes e hierarquias, pôs de lado a formalidade - e enquadra-a, em parte, na maior abertura e informalidade que ela própria, vinda de Moçambique, conheceu”. E é aqui que entro novamente eu, para dar mais um bocadinho de substância ao “dito e feito”.
Foi assim.
Retornei a Portugal com o bacharelado em HISTÓRIA, concluído na Faculdade de Letras da Universidade de Lourenço Marques. Mas cá chegado, tratei de completar a licenciatura que era de CINCO ANOS.
Matriculei-me na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa e numa das cadeiras vim a conhcer pessoalmente o Professor Doutor ANTÓNIO BORGES COELHO.
Aconteceu que, logo na primeia aula, sala cheia, talvez 60 ou 70 alunos, ele chamou, um por um, à sua secretária visando uma apresentação suscinta, da nossa parte.
E foi nessa apresentação que eu, mais desprendido do que os outros, entabulei conversa com ele, dizendo-lhe que ele não me conhecia, mas que eu o conhecia muito bem. Como assim? Retorqui: fiz o bacharelato em Moçambiaue e na cadeira da EXPANSÃO PORTUGUESA, regida pelo Professor ALEXANDRE LOBATO, fomos obrigados a ir beber nas fontes, nos estudos, teses e antíteses, tudo o que sobre essa matéria corria nos meios académicos. E nesse lote entrava o livro da sua autoria, que tal assunto versa.
Virado para ele e de costas para a turma, ouvi o murmúrio na sala. Não era hábito, por cá, como era lá, os alunos falarem assim, desabridamente, com os professores. E ele, de frente para a turma, deve ter-se apercebido, dos cochichos e olhares de soslaio, e puxou por mim. Fui desbobinando e a dada altura avancei que havia um assunto tratado por si no seu livro, que me deixou pendurado nalgumas perguntas sem respostas. Algumas dúvidas.
Diga, diga. E eu disse. Na revolução de 1383/1385 parte da velha nobreza não esteve com o Mestre de Aviz e os seus bens foram distribuídos pelos seguidores deste, incluindo os que vieram a formar a “nova nobreza”.
Mas, assentes as águas, alguns desses nobres regressaram e não estava claro se os bens lhes tinham sido devolvidos ou, na impossibilidade, indemnizados por isso.
E aqui chegados, ele, sorrindo, disse alto e bom som, para surpresa dos restantes alunos. Pois se ficou com dúvidas, veja se as tira, pois enquanto estiver nesse caminho da dúvida, está no bom caminho para professor e historiador. O cochicho na sala silenciou-se.
E, inteirando-se ele que eu estava a dar aulas em Castro Verde, vinha mesmo a calhar pôr-me ele as suas dúvidas. E o caso era ele saber da existência, na Câmara de Castro Verde, de um baú cheio de manuscritos. Mas ignorava, inteiramente o seu conteúdo. O meu primeiro trabalho para a cadeira seria, pois, inventariá-los e apresentar-lhe uma lista cronológica com a identificação dos respectivos conteúdos.
E assim fiz. Ao entregar-lhe o rol, constatando ele que a maioria desses manuscritos dizia respeito à “CONFRARIA DE SÃO MIGUEL”, que fizesse sobre essa instituição um estudo sistematizado, pois tinha ali matéria para um livro interessante. O assunto estava por desbravar na historiografia portuguesa e eu daria, desse modo, um bom contributo nesse ramo de saber.
Foi o que fiz. Quando lhe entreguei o produto da investigação, depois de o ter lido e avaliado, sublinhou o mérito do trabalho, manteve a ideia do livro, e incentivou-me a publicá-lo, depois de sistematizar melhor a matéria apresentada.
Os colegas que não desistiram da cadeira e que, no princípio do ano, se riram baixinho, aquando da nossa conversa de apresentação, aprenderam que nem eu era um atrevido “chico-esperto” retornado de África, nem o Professor BORGES COELHO era um professor da velha guarda, distante dos seus alunos. Ambos nos afastávamos da “praxis”, velha e relha, típica de instituições hierarquizadas e formais. Ele era um SÁBIO e um PEDAGOGO. Eu um aprendiz de ambas as coisas . Devo-lhe esta referência, nestes meus, quase, oitenta anos de vida.
Face ao que, com todos os seus incentivos, pus mãos à obra e, como sempre me esforcei para não desiludir os professores e as instituições que me formaram, nem envergonhar os meus pais, familiares e amigos, em 1989, editado pela Câmara Municipal de Castro Verde, dei à estampa o livro “HISTÓRIA DE UMA CONFRARIA, 1677-1855”.