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quarta, 30 janeiro 2019 14:13

CRENÇAS E RITOS

Escrito por 

CAMPAS ANTROPOFÓRFICAS E LAGARETAS

É assim que aparecem designadas em textos diversos assinados por académicos, estudiosos e/ou curiosos que opinam sobre essas aberturas escavadas em penedos de raiz, em rochas de afloramento natural, em grupo ou isoladas, algumas das quais, existentes no concelho de Castro Daire, que já fotografei e filmei.

 

a) Duas delas, ao lado uma da outra, estão na serra do Montemuro, num picoto perto da Cruz do Rossão, à esquerda da estrada que leva à Gralheira.

b) Outra, solitária, entre Mouramorta e Mezio, dita “cama da Moura”.

c) Duas outras, às portas da povoação de Soutelo.

d) Outra ainda, ao sul da povoação da Moita, aquela de que, há anos, fiz foto e recentemente um vídeo.

e) Outra nos arredores de Vila Boa, freguesia de Mões, de que fiz vídeo também.

ABÍLIO .V.N.PAIVA-2Sei existirem algumas mais no Monte de Cimal, nas costas de Pepim, mas não tive ainda oportunidade de lhes fazer uma visita, não obstante ter já visitado, fotografado e filmado um núcleo delas, sitas nos CARVALHAIS, às portas de Vila Nova de Paiva. O vídeo está disponível no Youtube com o título “V.N..Paiva - Campas na Rocha”.

Vistas na generalidades, algumas dessas aberturas têm a forma do corpo humano, lavradas com o contorno definido da cabeça e dos ombros, mas outras, coexistindo no mesmo núcleo de penedos, ou no mesmo penedo, por exemplo aquelas que estão às portas de Vila Nova de Paiva, t?m a forma retangular e, à falta de melhor designação, os autores têm-lhe chamado, a todas elas, “sepulturas antropomórficas”, “pias,” e “lagaretas”. 

Picoro-Rossão-1Em tempos que lá vão passeei-me acompanhado da minha sobrinha Elda Maria e sua filha Leonor, pela serra do Montemuro e a Leonor, minha sobrinha-neta, deixou-se fotografar numa delas. (foto 1)

O mesmo fiz ali por terras de Mouramorta, na companhia de António Morgado,Tó-cama da moura (somente “” para os amigos), proprietário do Restaurante Parque, visto aqui, tal qual na dupla que publiquei no Facebook em 2012. (foto 2)

Recentemente, conduzido pelo meu ex-aluno, Luís Rocha, natural de VILA BOA, freguesia de MÕES, fui até aos arredores daquela aldeia, ao sítio chamado “LAGARINHO”, onde, num penedo solitário, perdido no moitedo, LAGARINHO-1entre pinheiros e fieitos, repousa uma dessas obras, com o comprimento aproximado de 4 metros, e cerca de meio metro de profundidade. O vídeo está disponível no Youtube com o título “LAGARINHO, ARREDORES DE VILA BOA”. (foto 3)

De base retangular rampeada, um buraco na extremidade fundeira, mostra bem a intenção de ter sido feito para esvaziar o líquido retido, temporariamente, fosse ele qual fosse.

Delfim Ferreira da Silva-2018O fundo rampeado dá-lhe assinaláveis semelhanças com a abertura escavada que fotografei e filmei, ao sul da povoação da Moita, cujo vídeo está disponível no Youtube com o título: “MOITA CASTRO DAIRE PENEDO ENIGMÁTICO”

Diferentemente da maioria dos autores, não concordantes na serventia destas obras, nem na sua datação cronológica (uns remetem-nas para a Idade do Ferro, outros para tempos proto-cristãos e outros ainda para os medievais séculos VI-XIII), eu, sem curar de saber qual dessas datas e épocas as viu nascer (com respeito por todo o empenho da descoberta e estudo feitos), as associo, em qualquer tempo, à morte e locais de sacrifício, humano e/ou animal.

ARA-1-2Essa ideia já deixei escrita nas reflexões que fiz num pequeno livro sobre o topónimo "Castro Daire", onde refiro que, os Lusitanos, segundo Estrabão, comiam essencialmente cabritos e sacrificam um bodao deus ARES, e bode ou porco parece ser o quadrúpede esculpido na ARA votiva, encontrada na antiga Ponte Pedrinha, quando, em 1877/78, foi demolida para dar lugar à que existe atualmente. Pedra que foi levada para o Museu do Carmo, em Lisboa, onde atualmente se encontra, desde há largos anos. (foto 4)

 ?Lamas-2 - CópiaNão é pura especulação minha. É que de sacrifícios de animais nos falam, também, os textos inscritos nos penedos de Lamas de Moledo (Castro Daire) e no Penedo de Fráguas (Sabugal), terras da Lusitânia, nos quais se aceita, comummente, esses textos referirem a imolação de uma ovelha, de um porco e um touro, ritual de sacrifício que os eruditos designam por «suovetaurilium». (foto 5)

Temos assim, por assente, que os Lusitanos sacrificavam animais aos seus deuses, às suas divindades, para delas colherem os favores. E provas históricas há de terem existido povos que, para obterem os favores dos deuses, lhes sacrificavam, não animais, mas seres humanos. Um negócio entre os deuses e os homens.

Pois. E, por certo, nesta nossa civilização europeia, do século XXI, todos têm presente a edificante história bíblica de Isac, filho de Abraão, estendido sobre a ARA e o pai, fogo numa mão e o cutelo na outra, disposto a sacrificá-lo, obediente que era à voz do seu deus. (Génesis, 22:12,13). Dita e repetida há DOIS MIL ANOS, por montanhas, templos, templetes.

Sacrifício após sacrifício, numa relação estreita entre homens, animais e deuses, a história está recheada de rituais semelhantes, nas mais diversas culturas e civilizações. 

Neste nosso tempo (19 anos do século XXI) refletir sobre essas obras escavadas na rocha firme, obras que resistiram à erosão dos ventos, das chuvas, frios e calores, recuar a tempos idos sem despegarmos os pés do chão presente, face a tanta opinião e interpretação, resta-nos constatar a existência de equipamentos de função desconhecida e, por similitude, tentar lobrigar o que elas transportam de real e de simbólico, ligados aos rituais estudados e conhecidos. E na mente humana, a sede privilegiada e única de todos os procedimentos humanos (albergue de anseios, pensamentos, emoções, medos, angústias e mistérios por desvendar) do mito à realidade, da realidade ao simbólico, este “bicho da terra tão pequeno” encontra sempre respaldo na crença, na fé e ritos conexos.

E não é um despropósito trazer à colação as palavras de Mateus, ditas na ÚLTIMA CEIA: 

E enquanto ceavam, Jesus tomou o pão e o benzeu, e o partiu e deu-o aos seus discípulos e disse: tomai e comei, isto éo meu corpo. E tomando o cálice, deu graças, e deu-lho dizendo: bebei dele todos, porque isto é o meu sangue (que será o selo) do novo testamento, o qual será derramado por muitos para remissão dos pecados (...)”. (Mateus, 26:26-29) (foto 6)

ÚLTIMA CEIA - Cópia

 

É isso. Em nome da fé “derramaram e derramam o seu sangue” todos os que, em   CRUZADAS   RELIGIOSAS  (ou políticas e culturais), terçaram ou terçam armas, na fita do tempo. Todos os que, na fita do tempo, foram turrificados nas fogueiras dos AUTOS DE FÉ para gáudio do povo que, ávido de sangue e morte, acorria aos locais de sacrifício e assistir à festa com gestos, apupos e aplausos. A turba multa, barulhenta e eloquente, ávida de sangue e morte, incentivava os promotores a prosseguirem a sua ação depuradora.

cílício-bAssim em tempos idos. Mas a VIA SACRA, A VIA DOLOROSA, A VIA SANGRENTA, se já vinha de tempos ignotos, prossegue nos tempos que correm. Real ou simbólica. O filme não teve “THE END”. Nem terá, enquanto o protagonista - O HOMEM - andar sobre a face da Terra. Ele que criou os figurantes, que é o realizador forjador e dono do enredo, fiel depositário da legítima herdada, dará sequência à narrativa. E os cilícios de flagelo, de dor e sangue,  que puseram santos nos altares, castigando-se a si próprios para contento do seu deus, não estão todos remetidos aos museus da história. E santuários há onde, no cumprimento de promessas, se chega de joelhos a sangrar.

E se os locais de sacrifício de antanho deixaram os moitedos, afogados entre silvedos e carrascais, obra de gente primeva e rural, a pastorear rebanhos ou agarrados à rabiça de um arado radial, é só ver como, na selva urbana dos grandes centros populacionais (e não só) o atavismo selvagem continua, filogeneticamente, enroscado nos neurónios humanos e, a cada momento do dia, o sangue das vítimas atuais, nos entra pela “janelinha” dentro, jorrado aos alguidares pelos predadores que, manipulando, não o arado radial, nem o cajado de pastor, mas equipamentos da mais sofisticada tecnologia, tal como os grifos ibéricos ou os abutres africanos, depois de satisfeitas as suas necessidades de sobrevivência, os seus desejos e anseios, voam campo fora a satisfazerem o que de mórbido sobrevive em cada um de nós.

E, nós, solitários em nossas casas, ou em grupo, nos cafés e restaurantes, saltamos de contentes, agradecemos o bodo, ou, ao contrário, choramos angustiados o estádio humano e civilizacional a que chegamos. E tomamos consciência de que os «mortos» continuam a mandar «nos vivos».

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.