O MAR E A SERRA
Não precisei de ler “O Malhadinhas” de Aquilino Ribeiro, para, menino ainda, associar as relações comerciais entre o mar e a serra. À aldeia de Cujó, concelho de Castro Daire, desde que tive olhos na cara e aprendi a olhar o mundo (nasci em 1939) vi chegar os burricos dos sardinheiros de cangalhas sobre as albardas, a trocarem sardinhas por ovos e outros produtos da terra v.g. milho, feijões e centeio. As malgas de louça grosseira serviam como medida e, combinada a troca, os géneros passavam dos sacos dos residentes para os sacos dos sardinheiros. À falta de dinheiro, desse “metal sonante” que eu, nas minhas investigações académicas posteriores, viria a ler nos manuscritos de aforamento e testamentos de fim de vida, a lei do comércio era a “troca directa” e eu sou do tempo, desse tempo, em que, na serra, uma sardinha era dividida por três bocas.
Mas, para mim, mais do chegarem a Cujó peixes vindos do mar (esse ondulante gigante estranho que, até aos 18 anos de idade, eu nunca vira, apesar dos livros escolares me dizerem que eu estava num país de marinheiros) o que me intrigava sobremaneira, por ser coisa única e de um só proprietário, também proveniente do mar, era o BÚZIO. Arrancado ao fundo de um qualquer baú, só de ano a ano ele dava conta sonora da sua existência. Era no tempo das MALHADAS de centeio, fossem elas feitas com os manguais da Idade Média, ou com malhadeiras, produtos da Revolução Industrial, chegadas tardiamente a estas bandas. Ao seu “som” inconfundível (hoje comparado à sirene dos Bombeiros) as pessoas acorriam às eiras para executarem mais uma tarefa coletiva no fabrico do pão: a malhada. As sardinhas e o búzio, umas para comer com pão (não raramente cruas) outro para “tocar” naquela fase do fabrico do pão, provinham da outra banda da serra do Montemuro, cujo dorso, recortado na linha do horizonte, lobrigado do alto dos montes onde eu apascentava o gado, era para mim o fim do mundo. E quando a bola luminosa do sol se escondia por detrás dessa linha, só as asas da imaginação me levavam para mundos e fundos, lidos nos livros da QUARTA CLASSE, mas nunca vistos por mim e tantos outros habitantes que, entre montes, nasceram e morreram sem jamais o verem. Mas carreiros, veredas e caminhos ligavam o litoral ao interior. E quem rasgava, noite e dia, tais trilhos e caminhos eram os almocreves que, todos, o Mestre Aquilino Ribeiro personificou num só, “O Malhadinhas”, esse andarilho e aventureiro que alguns aquilinianos, conhecedores profundos da obra do Mestre, tomam por figura real, de “carne e osso”, chegando mesmo a colar uma BIOGRAFIA, com laivos de GENEALOGIA, a um tal Malhadas que existiu em Vila Nova de Paiva.
Nunca aderi a tal colagem e julgo ter boas razões para isso. Nos meus tempos de criança, um almocreve da Penajoia, pernoitava, de quando em vez, em casa dos meus pais. Homem de certa idade, careca, pele de mármore, voz arrastada, pálpebras inferiores caídas, aqueles dois quartos de lua em carne viva a contornarem meio globo ocular, impressionavam-me sobremaneira e faziam-me desviar olhar do seu rosto. Mas não acontecia o mesmo com a sua voz e os meus ouvidos. Estes registavam, ao pormenor, todas as “estórias” que os dois (o meu pai e ele) contavam pelos caminhos andados do mundo. E, como me lembro, nessas suas andanças, caminhos cruzados, ora se assumiam como protagonistas, ora como figurantes, desta ou daquela zaragata que metia bengalas, faias e navalhas num qualquer “ajuste de contas”, por razões havidas pelos contendores, ou por “dá cá aquela palha”, respostas dadas por homens de “mau vinho”, em feiras e romarias, sempre ébrias convívio, negócios, religião e pancadaria a eito.
Nenhum deles tinha lido “O Malhadinhas” pelo que, ao ouvi-los, me levou, por antecipação, a conhecer as narrativas e as figuras picarescas que só muito mais tarde viria a ler nas narrativas do Mestre, nomeadamente na obra literária que tem esse significativo título: era só malhar de cima para baixo. Desse modo, na cozinha do meu pai, ao calor da lareira, paredes reluzentes do verniz de felugem acumulada, ano após de ano, ali, naquele palacete camponês, onde a literatura oral era rainha, sem ler Aquilino, já eu sabia o que era um “varrer de feira” a cacete, o “fim de uma sarrabulhada” sangrenta, com ou sem intervenção das autoridades policiais, mas sempre com ferimentos bastantes, capazes de marcarem para a vida inteira o calendário da feira ou romaria onde teve lugar a sarrafusca.
Posto o que, estou em dizer que eles, esses aquilinianos, tomando por figura real de “carne e osso” o protagonista dessa obra literária, esquecem as palavras do próprio autor, escritas no Prefácio da segunda edição do “Volfrâmio”. Assim:
“O romancista vai de indivíduo em indivíduo, como a abelha quando forrageia o pólen, e a um pede o físico, a outro a índole, a este uma anedota, aquele um pormenor característico, e assim amassa por aglutinação os seus figurantes. Feita a dosagem com inteligência e obtido um bom ajustamento, ninguém dirá que não foram copiados do natural e que não “falam”. E o orgulho do criador estará em dar a ilusão de que são cópias exactas do mundo de carne e osso”.
Dito isto, e marcada a minha postura face à leitura desses aquilinianos, volto ao BÚZIO, este elo de ligação entre mar e serra, com protagonismo sonante, exatamente, nas malhadas serranas. Ele também se usava na povoação de Cotelo, freguesia de Gosende, segundo apurei nestas minhas andanças pela serra do Montemuro.
Em Cujó, era seu proprietário a tio Tibério Teixeira, aquele que, na povoação, introduziu a primeira malhadeira mecânica. E, sendo pioneiro nessa arte de debulha, pioneiro e único foi também na utilização do búzio, como forma de chamar o povo às eiras. Nessa altura havia tarefas camponesas que exigiam entreajuda. E a malhada era uma delas.
Assente que fosse a malhadeira na eira, tocado o búzio, ali afluíam as mais diversas pessoas de famílias diferentes. Umas para ajuda e certas de terem ajuda por troca. Outras, com beira, mas sem eira, para beberem e comerem, pois comida e bebida tinham por recompensa do trabalho prestado.
E de eira em eira, desfeitas as medas, molhos metidos na boca da malhadeira, homens, mulheres e crianças, munidos de engaços e forquilhas, palha para um lado, colmo para outro, centeio metido nos sacos de linho, erguedeira em ação, o pó e as praganas, de mistura com muito suor, se encarregavam de pôr a pele de um cristão a formigar de tal modo que, quem tal tarefa fez uma vez, jamais o esqueceu de a ter feito.
Recentemente adquiri um búzio numa casa de antiguidades. Ele me fez voltar à mocidade e relembrar esses tempos idos. Pela função desempenhada tornei-o protagonista de um vídeo, tal como o é deste texto. Creio que, como elo de ligação entre o mar e a serra e pela função desempenhada, bem mereceu que eu o adquirisse e lhe dispensasse algum do meu tempo de vida.
Um amigo meu, de seu nome António Martinho Teixeira, natural de Cujó, neto do tio Tibério, sempre atento aos meus trabalhos, a residir nos arredores de Viseu, dedicou-lhe algumas linhas, explicando como se tocava e a dificuldade que havia em fazê-lo, visto ele ter um rombo no lombo, gasto pelo uso, e ser necessário tapar o buraco com a mão em concha. Donde se pode inferir dos muitos anos que esse filho do mar já levava de vida na serra, naquela sua faina de chamamento às eiras, à força de sopro humano e jeito bastante.
Outro amigo, de seu nome Bártolo Ferreira, igualmente atento ao que vou dizendo e escrevendo, natural de Mões, mas a residir em Lisboa, igualmente conhecedor da realidade campesina, passada e presente, diz não ter memória de tal bicho marítimo ter aportado naquela povoação, mas encarando com humor inteligente o “dito e o feito”, prendou-me com as singelas, mas significativas palavras:
“Bom, agora vamos esperar pelo pino do verão, subir a um lugar alto, encher o peito até o máximo da sua capacidade e de búzio assestado espalhar o som ao redor. Quem sabe, uma alma antiga se aproxime e indague: «senhor professor, onde é a malhada?». Não faz mal reinventar sonhos...”
Ao que eu retorqui sensibilizado, já que, como historiador, para falar com as “almas actuais”, lembrando-lhes tempos idos, habituado estou, há muito, a falar primeiro com as “almas antigas”, através dos documentos e objectos que nos deixaram. assim:
“Diz muito bem, amigo. Inventar os sonhos das searas de centeio, tantas pela serra fora, onde hoje só há pastos, fieitos e silvedos. Que mais não seja o BÚZIO permitiu-me deixar mais um “documentário histórico” e referir a parceria que, em anos de seca, permitia haver farinha em Cujó e povoações em redor. Os Tibérios forneciam o motor da malhadeira e o meu pai as instalações da moagem, mós, engrenagens e correias”.