JUIZ DE BARRELAS (SÉCULO XXI)
Em 2009, na presença de um processo judicial que me foi apresentado pela pessoa lesada por um boato posto a correr denegrindo a sua imagem de cidadão, assumi o papel do antigo JUIZ DE BARRELAS e produzi o texto que se segue, publicado na imprensa local, depois de ter o aval do advogado a que o visado recorreu, com vista a penalizar o presumível autor do boato. Assim:
COMO O JUIZ DE BARRELAS VÊ AS DECISÕES TOMADAS NOS DOUTOS TRIBUNAIS DO PAÍS
Em tempos que lá vão, nestas «terras do demo», levantou-se um boato que punha em causa a dignidade e seriedade de um cidadão que habitava Vila Nova de Paiva. Revoltado com as mentiras que se diziam a seu respeito nas tavernas e lugarejos do concelho o cidadão recorre à justiça tentando, por essa via, apurar quem fora o responsável pela difamação. Tinha, à partida, uma testemunha jurando a pés juntos que um vizinho lhe dissera, em primeira mão, tudo o que publicamente corria em seu desabono. A primeira coisa a fazer era apresentar queixa junto das autoridades locais. Assim o pensou e assim o fez. As autoridades, como lhes competia, procederam a um inquérito, ouvindo várias pessoas, entre as quais aquela que “reproduziu ou transmitiu” o que se tornara público e notório nas redondezas, bem como aquela que isso mesmo soprara ao ouvido do queixoso. Eis o que, em transcrição livre, dizem os autos relativamente a estas duas pessoas:
1ª - É verdade que o meu vizinho, tendo-me procurado junto da minha casa me disse: “já sabes o que se passa por aí? É uma bomba. Fulano esteve preso por andar metido em negócios sujos e para ser libertado teve de fazer uma caução dos diabos.”
2ª - “É mentira ter dito algo em desabono dessa pessoa. E quem tal afirma é um mentiroso e aldrabão, merecia é que lhe dessem um tiro no peito por andar a dizer o que eu não disse. Eu nunca ouvi qualquer boato acerca da pessoa visada. Desconheço toda a matéria dos autos e se dela tivesse conhecimento, eu próprio o diria ao lesado, pois é pessoa que conheço há muito tempo...”
O leitor já está a ver: palavra contra palavra. Uma pessoa afirma que sim, outra afirma que não. Qual delas diz a verdade? Qual delas estará a mentir? Acresce dizer que o Tribunal ouviu mais oito testemunhas e todas elas afirmam que sim, que têm conhecimento do boato, que ouviram na taverna tal... a tal ou qual pessoa. Mas quem estivera na origem do boato? Caso difícil este para qualquer juiz poder fazer justiça e não condenar um inocente. Perante os dados e segundo a sua leitura, o que é que resolve fazer o Juiz? Decide pura e simplesmente mandar arquivar o processo nos seguintes termos:
“Dos autos não resultam quaisquer indícios que permitam, com o mínimo de probabilidade e razoabilidade, imputar ao arguido a autoria dos referidos comentários, limitando-se o mesmo a retransmitir ou a reproduzir o que vinha sendo voz corrente na região”.
Descontente com isto o queixoso recorre para a Relação e eis que, vistos os autos, este douto Tribunal lavra um acórdão onde pode ler-se:
“O que, nos termos indiciados no inquérito, nunca pode configurar um crime de difamação, pois, como é consabido, ocorrerá difamação se alguém, dirigindo-se a terceiro, imputar ou reproduzir, em relação a outra pessoa, factos ofensivos da sua honra e consideração, ainda que meramente suspeitos, querendo, com o seu comportamento, ofender a honra ou consideração do visado, ou prevendo essa ofensa de modo a que a mesma lhe possa ser imputada a título de dolo direto, necessário ou eventual, com consciência da reprovabilidade da sua conduta”.
E ponto final. Não podendo haver recurso a partir daí, o queixoso, que teve de pagar ao advogado e as custas do processo, resolve apresentar cópia de tudo ao Juiz de Barrelas. Este, que de jurisprudência letrada conhecia muito pouco, passa os olhos pelo processo e coteja demoradamente os depoimentos de todos os intervenientes nele e também as decisões dos juizes de 1ª Instância e da Relação. Fica apreensivo. O juiz da 1ª instância diz que o arguido apenas se “limitou a retransmitir ou a reproduzir o que vinha sendo voz corrente na região”. E em face disso mandou arquivar o processo, pois não havia crime de difamação. Os juízes da Relação dizem, pelo contrário, que “como é consabido, ocorrerá difamação se alguém, dirigindo-se a terceiro, imputar ou reproduzir, em relação a outra pessoa, factos ofensivos da sua honra e consideração” etc. etc, nada mais, nada menos do que aquilo que levara o visado a recorrer à via judicial.
Afinal em que é que ficamos? E em que declarações se baseou o juiz da 1ª instância para dizer que o arguido se limitou a “retransmitir ou a reproduzir o que vinha sendo voz corrente na região”, se este negou, desde a primeira hora, tudo o que lhe era imputado? A serem verdadeiras as afirmações deste juiz e de acordo com o douto parecer dos juízes da Relação, afirmando que, “como é consabido, ocorrerá difamação se alguém, dirigindo-se a terceiro, imputar ou reproduzir, em relação a outa pessoa, factos ofensivos da sua h0ona e consideração” como era o caso, havia razões para levar o arguido a julgamento e responsabilizá-lo pela difamação que fizera relativamente ao queixoso.
Mas o Juiz de Barrelas não se ficou por estas contradições. A ele, pouco afeito à letra e ao espírito dos códigos, não lhe passou em claro uma coisa muito simples, uma coisa que decorre, liminarmente, de todos os depoimentos que constam dos autos: todas as pessoas ouvidas dizem ter conhecimento do boato, que o viram aqui ou ali, que era verdade, sim senhor, que se dizia isto e aquilo por toda a banda em desabono do queixoso. Ao contrário, no universo dos depoentes, só o arguido, que vivia no mesmo sítio, que frequentava os mesmos lugares, que falava com as mesmas pessoas é que disse “nunca tal ter ouvido, desconhecer em absoluto a matéria dos autos e, se tal soubera, ele próprio o iria dizer ao visado”.
Aqui havia gato. Se todos tinham conhecimento do boato, por que razão havia de ser o arguido o único que dizia não saber de nada? Andaria ele na Lua? Estaria fora do mundo? Ou seria a forma de encobrir negando o que realmente afirmara? Subtil raciocínio e comportamento!
Com estas interrogações o Juiz de Barrelas fechou o processo. Riu-se ironicamente dos jurisconsultos, letrados, tirou as suas ilações de tudo o que lera e, perturbado com tudo isso, em vez da sábia sentença que lhe era tão habitual, pensou antes que o jogo de palavras (travado entre os advogados, os juízes e os mais intervenientes no processo) devia ser substituído pelo jogo do pau, à maneira do Malhadinhas. Talvez assim a honra e a dignidade se sobrepusessem à difamação. Talvez assim o difamador não se ficasse a rir de tudo e de todos, sempre pronto a repetir a façanha, sem sofrer qualquer pena. O queixoso não pagaria as custas do processo nem ao advogado. Não ficaria difamado, nem depenado. As terras do demo fariam jus ao seu nome. Para grandes males, grandes remédios. Homem simples e sábio sempre se divertiu com o jogo do pau. E se nas suas sábias sentenças entrava o jogo de palavras era um jogo com sentido... o sentido da justiça.
Fareja, 05-05-2009