Respondi que ignorava a sua existência, mas, graças a tal chamada de atenção, passei a não ignorar. E pensei: se ele foi catedrático, por certo teria obra científica publicada, daí que não tardasse, via Internet, a entrar na Biblioteca Nacional e apurar o «resultado da pesquisa»: ao todo 19 registos de obras suas, umas em nome próprio e outras de parceria.
Para não maçar o leitor destaco apenas «Garcia de Orta pioneiro da Farmacognosia», obra publicada em 1963.
Seguem-se todas as outras referências e entre elas o seu «Curriculum Vitae», em três edições, referidas aos anos 1949, 1961 e 1970. Face aos dados recolhidos decidi contactar a mestranda Pilar Dias, uma jovem conterrânea nossa, com ascendência a Picão, a residir em Lisboa, também ela metida nos caminhos da investigação ligada a plantas medicinais, a fim de me fazer chegar o texto integral do «curriculum vitae», mais recente do aludido Doutor Albano, cujo excerto ilustra este texto.
Ela não regateou esforços e, servindo-se da via de que me servi, rapidamente me fez chegar o texto solicitado.
Trata-se, pois, de um cidadão nascido em Santa Margarida, a 13 de Julho de 1917, filho de Albano Pereira e de Bernardina Ferreira. E ficámos a saber que só aos 16 anos pôde iniciar os estudos liceais, no Liceu Afonso de Albuquerque, na Guarda.
No ano lectivo de 1937-1938 frequentou o liceu Camões em Lisboa e, em Setembro de 1938, matriculou-se na Escola de Farmácia da Universidade de Lisboa, onde concluiu o curso em 1941. Em Julho de 1943 concluiu a licenciatura em Farmácia.
Do curriculum constam os seguintes e diferentes graus académicos:
1º - Licenciado em Farmácia pela Universidade de Lisboa em 1943.
2º - Doutor em Ciências pela Universidade de Basileia, em 1948.
3º - Professor Agregado II Grupo (História Natural e Farmácia) pela Universidade de Lisboa, 1950.
4º - Professor Extraordinário II Grupo (História Natural e Farmácia) pela Universidade de Lisboa, 1961.
Neste mesmo ano, em 6 de Junho, perante um júri constituído por Professores de Farmácia das Universidades de Lisboa, Porto e Coimbra e um professor de Medicina da Universidade de Lisboa, prestou provas de concurso público para um lugar de Professor Extraordinário do II Grupo (História Natural e Farmácia) da Escola de Farmácia de Lisboa, tendo sido aprovado.
Ora aí temos, como é que um menino nascido em Santa Margarida, aqui, nas faldas do Montemuro, filho de gente humilde, humilde se mantendo pela vida fora, tanto quanto me disseram aqueles que com ele privaram, tendo iniciado o ensino liceal aos 16 anos, se tornou professor universitário, perante um júri constituído por professores de todas as universidades portuguesas.
Mas isto é o que diz o seu «curriculum vitae» depositado na Biblioteca Nacional.
Mas fora dele, falando com pessoas que o conheceram em vida, soube que, lá pela capital do reino, ele nunca esqueceu o nome do concelho que o viu nascer. Com laboratório próprio a que deu o nome «Daire», dali saíram xaropes e mais fármacos com essa referência toponímica.
Sabido isto, devido à minha relação de parentesco com os proprietários da Farmácia Galénica, em Vila Nova de Paiva, nomeadamente Manuel Carvalho Soares e esposa Drª Maria Jacinta Soares, o primeiro, iniciado na artes dos «remédios» na Farmácia Gastão Fonseca, de Castro Daire, quando ainda era menino, a segunda licenciada em Farmácia pela Faculdade de Coimbra, depois de ter sido docente do Ensino Primário, sabido isto, dizia, recorri aos seus bons serviços e conhecimentos a fim de, através dos «Simpósios Terapêuticos» dos seus arquivos me dizerem que produtos tinham saído do laboratório «Daire». A sua disponibilidade e cooperação mostraram-me que no «Simpósio» em vigor no ano de 1978 aparecem referenciados os seguintes fármacos:
a) «Vagolítico»
b) «Vagalítico-papaverina»: «indicado para situações espasmódicas em geral (espasmos do esófago, gastrintestinais, das vias biliares uretrais, vesicais, vasculares periféricas e coronárias, laríngeos e brônquicos, trabalho de parto, etc. Asma, Hiperemese; cólicas renais, crises dismenorreicas dolorosas, etc.
c) Ginodaire.
d) Dairefedril: «xarope», indicado para afeções das vias respiratórias, tosses bronquites crónicas, catarros, as ma, gripe, etc.
E no «Simpósio» de 1997 apenas aparecem somente os seguintes:
a) Dairefedril
b) Daireflux, «rebefaciente e analgésico local».
II PARTE
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E posto isto, num tempo em que tanto se promove a mediocridade e se menospreza ou ignora o mérito e a excelência, foi para mim um privilégio discorrer sobre a trajetória de vida deste cidadão de Castro Daire que, não tendo, embora, qualquer protagonismo local, se dedicou à ciência e divulgou o nome de Castro Daire, por boticas e farmácias do país.
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É tempo, pois de regressar ao seu «Curriculum Vitae» e repescar para aqui a afirmação que nele deixou nas primeiras linhas: «por motivos alheios à sua vontade somente depois dos 16 anos pôde iniciar os estudos liceais».
Como é que tudo começou, então?
Ele não quis ou não pôde dizer que isso se deveu ao facto de, ao tempo, no que respeita à instrução, o país ser Lisboa e o resto ser paisagem. Escolas e liceus, na província, que era deles? Sem possibilidades de ir além do 2º grau do ensino Primário, valeu-lhe o irmão mais velho, José Albano Pereira, com botica assente em Vila Franca das Naves, distrito da Guarda. Levou para lá o «pequeno» e ele, que de vasilhame doméstico conhecia apenas o penico, as panelas de ferro e de barro, saídas da olaria de Ribolhos ou de Fazamões, conhecia as almotolias do azeite e as garrafas de vinho, as malgas e pratos saídos de rústicas olarias nacionais, estamos mesmo a vê-lo deslumbrado frente a um sem número de recipientes de vidro, de porcelana, vasos, potes, frascos, garrafas, espátulas, alguidares e todos os mais tarecos necessários a uma botica que se prezasse de manipular xaropes, pomadas e mais mezinhas, para furúnculos, betas, inchaços e outras maleitas e andaços do mundo.
E se o acordo ortográfico da 1ª República, de uma só penada, retirou o «H» da Farmácia, com que a palavra se vinha escrevendo havia séculos, nem todas as farmácias se desfizeram da tralha que há séculos constituía o património técnico dos seus «laboratórios». Estamos a ver o petiz, de olhos esbugalhados, frente àquela tralha toda, frascos alinhados nas prateleiras, qual coro de meninos a cantar um hino de glória à ciência, à caminhada do homem feita nos trilhos da vida em busca de remédios, de saúde, de bem estar e de felicidade.
E ele que tão bem conhecia a atrevida picada da urtiga e a irritante comichão dela derivada, inebriava-se com o aroma da camomila e outras plantas odoríferas armazenadas ali, alcance da sua pituitária.
O recipiente que mais gostava de destapar, fosse qual fosse o seu conteúdo, era o albarelo. Mal tirava a tampa, hum!...que cheirinho!...tão diferente daquele que exalava o vapor da panela onde a mãe cozia as castanhas no tempo delas.
Ao contrário da caixa de Pandora, donde saíram todos os males quando a destaparam, todas as vezes que destapava um dos frascos ou um dos potes com que lidava, evolava-se do interior deles a esperança de vir a conhecer todos os segredos aprisionados naquela louça, naquela frascaria, naquela vidralhada.
Mas no conjunto da tralha, uma peça o intrigou logo à chegada. Colocada sobre a mesa de boca para cima, não era, seguramente, a caldeirinha da água benta que tantas vezes viu na Igreja da sua freguesia. Faltava-lhe a pegadeira ainda que dentro dela estivesse uma espécie de hissope. Pegou nele e bateu no rebordo. Soou-lhe um toque parecido com a campainha que o sacristão tocava em dias de Visita Pascal, mas isso também não era, pois o badalo estava solto e não tinha o manípulo para se poder baloiçar com a mão, dlem, dlem, dlem. Veio a saber depois tratar-se do almofariz de bronze onde se moía a linhaça e outros produtos afins, destinados às mezinhas receitadas pelo médico, pelo barbeiro ou pelo ferrador da região.
O irmão mais velho responsável por tê-lo arrancado de Santa Margarida, povoação que em 1258 se chamava Covelinhas como historiei em tempos (texto que o leitor poderá ver noutra parte deste site) atento à curiosidade do petiz não tardou a ver nele um boticário em potência. Mandou o moço matricular-se no Liceu da Guarda, pagou-lhe os estudos e o resto já o leitor conhece. Foi uma carreira académica e científica em ascensão. Podemos dizer que Albano Pereira Júnior, saído das berças, subiu ao topo do Everest Farmacopeico para lá colocar a bandeira «Daire».
CONCLUSÃO
Foi, portanto, para mim, soldado raso, um privilégio aceitar o desafio do General José Agostinho Melo Ferreira Pinto, outro cidadão de Castro Daire digno, também ele, de uma crónica deste tipo. Ficará para outra vez se ele tal consentir e me fornecer o indispensável curriculum vitae. Até lá fiquemo-nos com o Doutor Albano Pereira Júnior, um nome que não desonra, nem deslustra a nossa terra, bem ao contrário de outros que por aí há que têm dado sobejas provas públicas de serem a vergonha dela. Ele, seguramente, não se sentiria académico no seio de certas academias, «encademias» «empademias», «epidemias», que, com pompa e circunstância, se vão por aí lançando e a que nem sequer faltam paladinos e paladinas que, a troco de um qualquer diploma para pendurarem na parede ou exibirem no seu curriculum como troféu de intelectualidade, não se cansam de cantar loas a tais inutilidades.
Abílio Pereira de Carvalho
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