CLÁSSICOS
Quanto tempo decorreu desde o bíblico Profeta Isaías até ao tempo do Padre oratoriano Manuel Bernardes? Quanto tempo decorreu até à chegada dos colonos americanos às terras do oeste "com um arado e com uma bíblia?" (Ver foto) O tempora! O mores!»
E porque nos tempos que correm, neste mar magnum das redes sociais do século XXI, a «nau» a que se reporta Manuel Bernardes, é levada por ventos bem diferentes dos que sopravam nos tempos bíblicos, nos tempos dos romanos e nos tempos oratorianos, retornemos ao cais onde ela aportou e, mãos no baraço, ajudemos a arrear o pendão nela içado, durante séculos, ostentando a significativa legenda latina:
«Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quid muliere? Nihil.
O livro "Nova Floresta e Silva" como já disse, é um autêntico tratado de geografia comercial e moral, com recurso ao saber e figuras da Antiguidade Clássica. Estávamos no século XVIII, mas no século XIX, quer nos círculos religiosos e cultos, quer nas rústicas tertúlias laicas, nas tertúlias árcades das letras portuguesas, o perfil da mulher não diferia muito desses tempos longínquos, cujo retrato vemos na prosa e na poesia.
E dito isto, conhecido o perfil da mulher - da CIRCE DO AMOR - desenhado nos "Sermões Panegíricos e Quaresmais" e na "Nova Floresta e Silva" através das citações feitas, proponho o seguinte exercício aos meus leitores:
Tomem assento na "nau" do tempo histórico e naveguem até ao passado distante e próximo. Entrem num qualquer templo cristão, abobadado, virem-se para o púlpito e ouçam as palavras do pregador, naquele tom recriminatório ampliado pelo eco caraterístico dos espaços abobadados. Atentem nos nomes extraídos do sermão que sábio plumitivo escreveu sobre João Batista e ouçam em voz inflamada, os nomes de «Herodíadas, o escândalo de Jerusalem, a meretriz do Apocalipse. A Isabel de Samaria. A Semiramis da Babilónia. A Cleópatra do Egito. A Messalina de Roma.»
Anotem os estragos causados pela mão poderosa destas detestáveis Círces do Amor desordenado. Atentem nos abismos e males resultantes da mulher, quando chega a ser idolatrada nos altares da sensualidade.
Juntem ao sermão as palavras extraídas da "Nova Floresta e Silva", onde a mulher é comparada a uma nau, carregada de luxúria, de vaidade, jóias e perfumes, nau calafetada com frases latinas aqui e além, balas disparadas por hábeis pistoleiros no manejo das letras e das ideias. Sublinhemos o seguinte:
"Para que é necessário a uma mulher todo este mundo? Para parecer formosa. Concedamos-lhe que o parece; e ainda mais, que o é: que não é pouco barato, pois sabemos com S. Gregório Nazianzeno, que aquilo não é rosto, senão máscara: «non fácies, sed personas»; bem sabemos com Propércio que daquelas formosuras se mercam nas lojas e tendas e boticas e talvez para deitar a perder o natural" .
(...)
"No capítulo terceiro de Isaías está lançado um bastante aranzel, ou rol destas galas e adereços femininos. Porque indignado Deus de tanta vaidade e luxo ameaçou castigá-lo com terríveis demonstrações e por princípio delas, diz que há-de deitar abaixo as fivelas e topes de calçado, as luas, os colares, as gargantilhas ou afogadores: «In illa die auferent Dominus ornamentum calceamentorum & lunulas, & torques, & monilia», os braceletes, as mitras, os pentes e fitas que servem de apertar as tranças, os frandelins, os cordões de ouro, as pomas e frasquinhos de águas de cheiro: «Et armillas, & mytras & discriminalia, & periscelidas, & murenulas & olfactoriola»: as arrecadas e chuveiros, os anéis e memórias, as jóias de pedraria preciosa pendentes sobre a testa, as galas de festa, os capotinhos, os volantes e velilhos, as espadinhas, os espelhos, as toucas, os listões, vendas e faixas e os mantos finos: «Et inaures, & annulos, & gemas in fronte pendentes, & mutatória, & palliola & linteamina, & acus, & specula, & sindones, & vittas & theristra». Porém neste rol não está a centésima parte do aparelho que pede esta grande nau (chamemos-lhe Libertina que era a Deidade de fazer cada um o seu gosto) para velejar vento em popa nas cerúleas planícies do aplauso público.
E mais é de advertir que o profeta fala das mulheres que andam em seus pés: «Ambulabant pedibus suis, & compósito gradu incedebant»: que as que andam nos pés alheios necessitam de muito mais enxárcia, enfrexadura e amantilhos de muito mais flâmulas e galhardetes, de muito mais grinaldas e faróis e de melhores pavezas a um e outro bordo.
E a maravilha é que quanto a nau vai mais carregada, mais levezinha vai, porque a mesma carga lhe faz ganhar vento; suposto que só em ser mulher tinha já bastante, conforme aquele dito:
«Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quidmuliere? Nihil.
Do Monomotapa e Sofala na Cafraria e da região de S. Paulo na nossa América, leva ouro; do Cerro do Patosi, nas conquistas del-Rei Católico, leva prata; da Alemanha, os camafeus; de Moscóvia, as zebelinas e martas e do Palatinado as mais aperfeiçoadas; da Helvécia, região dos Suizaros, os arminhos; do Brasil, os saguins para manguitos; e os coquilhos para contas; da cidade de Tiro, em Fenícia, a púrpura; da Serra da Arrábida grã; de Portugal e Castela a cor; de Veneza e Holanda, os espelhos; de Provença e de Roma, a pomadas para fazer as mãos macias e cheirosas; de Córdova e Hungria ao menos a receitas para as águas odoríferas destes nomes; das Índias de Castela a Almeida e óleo dela para as mães; de Tunquemo almíscar; do Maranhão e Seará, o âmbar; de Angola, Guiné e Cabo Verde, a algália; das nossas Índias o calabunco e aguila, os canequins e paninhos de coco e os toribios; da Africas, penas dos avestruzes para os cocares de plumas; da China os lós, os leques e as chitas.
E braço estendido, gesto largo em redondo, a este rol de adornos femininos claramente condenáveis e desnecessários, identificação feita dos lugares da sua proveniência, entusiasmado na sua oratória, o pregador repete a pérola:
"Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quid muliere? Nihil".»
Atentem no auditório, de boca aberta, a ouvir tão eloquente e erudito sermão. Um auditório maioritariamente analfabeto, homens e mulheres, desconhecedores, em absoluto, do latim e dos nomes históricos referidos, pasma. Assim como assim, olhos nos crentes atentos á sua palavra, o pregador encanta-se consigo próprio. Palavra certeira é tiro certeiro. Tiro e queda. Todavia, no meio de tanta gente ele não descobre nem sonda o pensamento de um jovem mancebo que o fita e ouve atentamente. De tamancos e casaco de burel, chapéu de palha na mão preso pela aba, copa frente ao baixo ventre virada para a frente, congeminava: "estas mulheres não são santas. E se não são santas, assim tão bem vestidas e perfumadas, só podem ser putas".
Ouviu? De facto, em todas as minhas leituras (e já não são poucas) nunca encontrei, mesmo em livros da especialidade, enumeração tão exaustiva dos atavios da mulher e a identificação das terras da sua proveniência. Isso me faz estar grato ao padre Manuel Bernardes. E com ele concordo na condenação de tanto atavio feminino. Sim. Perdia a nudez no Éden, a Eva e todas as mais mulheres do mundo, bem deviam contentar-se com a folha de parreira. Para encanto não era preciso mais.
E dito isto, o leitor dê em salto em frente, participe numa tertúlia literária e escute o poeta sadino Bocage a declamar, em tom brejeiro e satírico, o soneto cuja matéria plástica, semelhantemente ao eloquente pregador, foi buscar à Antiguidade Clássica. E constatará, então, como uma composição poética, saída da pena libertina e mundana de um livre pensador, complementa o sermão congeminado por um plumitivo distintamente beato. Um e outro de pena na mão, isto é, de revólver em punho apontado mulher:
Não lamentes oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita boa gente
Putíssimas fidalgas tem Lisboa
Milhões de vezes tem reinado.
Dido foi puta, e puta de um soldado.
Cleópatra por puta alcança a c'roa.
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa
O teu cono não passa por honrado.
Essa da Rússia, imperatriz famosa
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa.
Todas no mundo dão a sua greta
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isto de virgo e honra é tudo peta.
Depois de tudo isto, mente solta e arejada, faça-me companhia e veja comigo os últimos dois CLÁSSICOS DE OESTE que os responsáveis pelo canal FOX MOVIES escolheram para rematar a série exibida entre o dia 3 e 11 de Março. Dois filmes cujo protagonista é John Wayne, tanto em "O Atirador" como em "McLintock, o Magnífico".
Fixemo-nos somente no último, o "clássico" que interessa para remate desta minha deambulação pelo faroeste a fazer uso do meu revólver. Trata-se de um rancheiro, senhor de largos domínios de terra destinados a pastos e criação de gado. Narrativa entremeada com assunto sério e cómico, um dia, este criador de gado, familiarizado com índios, confronta-se com uma avalanche de colonos para ali manados por políticos que nada conhecem do território. Chegados com arado e Bíblia vêm a mando de políticos que, ignorando em absoluto, as aptidões do solo, baseados naquilo que «aprenderam numa universidade qualquer» tomaram a decisão errada de destinar à agricultura terrenos unicamente aptos para pastos. Parece que esse vício da ignorância e incompetência não se ficou pelas Américas de John Wayne e chegou até nós. Recentemente, aquando dos fogos em Portugal, não faltou quem dissesse na televisão haver ministros da agricultura que não distinguiam uma azinheira de um chaparro. Adiante.
O comboio é o elo de ligação entre o campo e a cidade. Interesses vários se cruzam ali. Políticos, afetivos, económicos. Muita gente. Muito gado. Pradarias sem fim. Os Comanches, perdida a terra, recusam-se a perder a dignidade, postura levada a Tribunal pela boca do rancheiro, seu intérprete. O desentendimento entre o casal culmina com a mulher de bruços nos joelhos do marido e ele a bater-lhe no rabo com uma sertã e, de seguida, entregá-la ao futuro genro dizendo: «talvez precises dela um dia». Assim como assim, nesta série de CLÁSSICOS DO OESTE vimos que o rabo da mulher tanto foi objecto de afago como de castigo. (Ver fotos)
Foi mais uma saga humana posta na tela. Mais uma vista por mim. Muitas horas seguidas envolvido na trama, sentado no sofá, a ver TV. Assim, quando apareceu a palavra END, eu apressei-me a ir abrir as janelas. Tal era o intenso cheiro a gado e a quantidade de pó que me empestavam a sala.
FIM