CLÁSSICOS
Retomo o tema pois não gosto de deixar penduradas, quais molas esquecidas no estendal da roupa de aldeia serrana, ideias e factos que ocupam lugar no fio cronológico do tempo e são parte integrante da narrativa humana, seja ela carregada de aventuras e surpresas no faroeste americano, rude e selvagem, seja na mais culta e sofisticada corte de imperadores ou reis, formadores de impérios, acompanhados dos seus cavaleiros, nobres e fidalgos de folhos rendados ao peito ou nos punhos das mangas. E bem assim, nas tertúlias literárias onde, com armas diferentes, digamos revólveres diferentes, a mulher, num sítio ou noutro, num tempo ou noutro, era o alvo preferido, o bombo da festa, a pior das criaturas, ou, então, poeticamente, endeusada e dotada de inigualável formosura e objeto de desejos.
Eu falei do papel da mulher, das esposas dos vaqueiros, família constituída, da corrida ao ouro, das bebedeiras de caixão à cova, e da mulher, nem deusa nem demónio, que, por opção ou empurrada para isso, alegrava os saloons das "cidades" na sua qualidade de rameira, ou nos bordéis tão procurados e frequentados como as minas de ouro descobertas recentemente algures.
A primeira crónica foi publicada no dia 11, na sequência do apontamento que fiz no dia 8, alusivo ao dia INTERNACIONAL DE MULHER. Nesse apontamento eu trouxe à colação o nome de ASPÁSIA, a companheira de PÉRICLES e, através da cábula retirada do Google, mostrei o importante e esclarecido papel que essa mulher desempenhou junto daquele governante, cujo legado histórico e cultural foi e é marcante na Antiguidade Clássica. Pretendi deixar uma imagem da mulher diferente daquela que tem vigorado entre nós, nomeadamente aquela que faz recair sobre ela todos os pecados do mundo a partir do momento em que EVA se deixou tentar pela serpente e surrupiou a maçã da árvore da ciência para satisfazer os apetites de ADÃO.
E não é preciso fazer longa cavalgada para encontrar as razões que justificam a luta actual da mulher pela sua emancipação. Dessas razões tenho feito eco nos meus escritos. Sem estar a soldo de ninguém, guiado apenas pelos artefactos que vou encontrando no campo arqueológico do pensamento, das ideias e da "praxis" social, eis o que escrevi no meu livro "Julgamento" editado no ano 2000, baseado no manuscrito "Sermoens Panegíricos e Quaresmais" s/d, que encontrei na Biblioteca Municipal de Castro Daire, reportando-se à decapitação de João Batista. Assim trasladei:
"E sabeis quem fez emudecer esta voz do Céu? Uma mulher dissoluta, uma mulher desenvolta. Uma mulher lascívia. A meretriz do Apocalipse. A Isabel de Samaria. A Semiramis da Babilónia. A Cleópatra do Egito. A Messalina de Roma. Herodíades, enfim, escândalo de Jerusalém e monstruoso aborto do seu sexo. Foi ela a homicida fatal do Grande Batista. Ah! E quantos estragos deste género não tem executado a mão poderosa que se deixa governar por estas detestáveis Círces do Amor desordenado. Ah! Que abismos de males não traz consigo a indignação de uma mulher quando chega a ser idolatrada nos altares da sensualidade".
Alvo escolhido, pontaria feita, tão certeiro tiro não dispensava, seguramente, espaço de treino. Espaço onde os pistoleiros eram os intelectuais moralistas e as balas eram as letras, as palavras, o verbo. E rápido no gatilho era o Padre Manuel Bernardes, homem de letras, ao conceber e desenhar o campo de tiro a que chamou «Nova Floresta ou Silva». E também ele foi buscar aos distantes corgos, rios e ribeiros do pensamento, da história e da cultura clássica, os ditados, os apotegmas, os princípios filosóficos e morais para, girando em torno deles, discorrer e construir doutrina edificante com que tentou moldar o comportamento humano. E, pontaria assestada na mulher, não se mostrou parcimonioso a metralhar a luxúria, os adornos, os enfeites e a beleza dela: uma «nau» levada pelo «vento», personificada em Pelágia. Assim::
"Dos reinos do Decão e Bisnagar e de Colocondá, na Índia Oriental, leva esta diamantes; dos reinos de Pegu e da cidade de Calecut e da Ilha de Ceilão, safiras; do Seio Pérsico entre Ormuz e Bassor, da Samatra ou Taprobana, da ilha de Bornéo e em Europa, de Escócia, Silézia e Boémia, leva pérolas; do porto de Jusfar, na Pérsia, leva aljôfar (que daí se derivou este nome); da cidade de Siene, no Egipto superior e do mar Tirreno, leva os corais, que se desterraram já dos rosários e braceletes, ainda se admitem em brinquinhos e verónicas; dos campos de Pisa e dos Montes Alpes, leva cristais; do mar da Suévia e de Lubeca, leva alambres, que são de fabulosas lágrimas da Irmã de Faetone, choradas solenemente cada ano pela sua desgraça; dos reinos do Monomotapa e Sofala na Cafraria e da região de S. Paulo na nossa América, leva outro; do Cerro do Patosi, nas conquistas del-Rei Católico, leva prata; da Alemanha, os camafeus; de Moscóvia, as zebelinas e martas e do Palatinado as mais aperfeiçoadas; da Helvécia, região dos Suizaros, os arminhos; do Brasil, os saguins para manguitos; e os coquilhos para contas; da cidade de Tiro, em Fenícia, a púrpura; da Serra da Arrábida grã; de Portugal e Castela a cor; de Veneza e Holanda, os espelhos; de Provença e de Roma, a pomadas para fazer as mãos macias e cheirosas; de Córdova e Hungria ao menos a receitas para as águas odoríferas destes nomes; das Índias de Castela a Almeida e óleo dela para as mães; de Tunquemo almíscar; do Maranhão e Seará, o âmbar; de Angola, Guiné e Cabo Verde, a algália; das nossas Índias o calabunco e aguila, os canequins e paninhos de coco e os toribios; da Africas, penas dos avestruzes para os cocares de plumas; da China os lós, os leques e as chitas; de Granada os tafetás; da Flandres, as rendas; da cidade de Cambraia, as teias finíssimas e candidissímas que têm este nome; de Guimarães, as linhas; de Leão, de França., as primaveras; de Modaba, na Pérsia e de Itália, as telas; da mesma Itália, os damascos; de Florença, Génova e Nápoles, os chamelotes; de França, as luvas, os sinais para o rosto e também os leques, uns maiores para o Verão, outros mais pequenos para o lar no tempo de Inverno; de Inglaterra as meias, fitas e relojinhos de algibeira; da Arábia, a goma, que também serve ofício neste mundo; da Batalha, os azeviches, para dar figas aos maus olhos».
(...)
Que tira ela, enfim, em ser formosa? Vaidade. Não mais nada. Tira também enfermidades de corpo, perigo da alma, enfados, murmurações e depois tanto em penas do outro mundo, quanto este lhe deu em glórias: com uma diferença entre outras muitas: que as glórias foram falsas e as penas serão verdadeiras. Poisa não pudera esta mulher com quatro lágrimas choradas debaixo do seu manto com um crucifixo diante dos olhos em lugar de espelho e com amar a verdade, que é a lei de Deus, deixando-se ajudar da sua graça; não pudera, digo, deste modo mais fácil, mais útil, mais honesto e deleitoso ser formosa nos olhos de Deus? Pudera e na mesma Pelágia temos o exemplo cuja alma, depois de convertida, viu o mesmo S. Noono em figura de uma candidíssima pomba, vendo-a de antes sórdida e feia».
Foi, portanto, neste estilo e com balas deste calibre que Manuel Bernardes comparou a mulher a uma «nau», que falou sobre ela e dos seus adornos, semelhando-a ao «Mundo». E todo o mundo fornecia os produtos com que ela se embelezava e ostentava luxúria e vaidade. E, na linha do pensamento do Profeta Isaías, não se esqueceu de enunciar a proveniência dos mil produtos que abarrotavam a «nau» de que falava.
Digamos que o seu livro é um autêntico tratado de geografia comercial e humana, uma autêntica «livraria». Eis, pois, os produtos e lugares da terra onde a «nau» se ia abastecer. Digamos que não há cantinho do Mundo, continentes e cidades, das mais conhecidas e próximas, às mais distantes e exóticas (excluído fica, por razões óbvias, o oeste americano que deu pretexto a este meu texto) que não desse o seu contributo à carga. E que o Padre Manuel Bernardes não se vai ficar pelos produtos da terra. A metafórica e literária «nau», isto é a mulher, o alvo da pontaria ao alcance da sua arma, vai estender-se também ao mar. E ele navega, ele rompe de vaga em vaga.
«Que mais é? É necessário que concorra também o mar, não só com as suas ostras que se esbulhem das pérolas, senão também com as tartarugas que desarmem as costas para pentes e cofrinhos e com as baleias que empenhem as barbas para sair um justilho ou prepõem, bem desarrugado; são necessários de várias partes vários materiais para bucetas, escritorinhos, baús, guarda-roupas, para recolher nos camarins e escaparates este mundo abreviado; são necessários vidrinhos e garrafinhas e rodomas e bucetas, curiosa e ricamente forradas para toda a farmacopólia de ingredientes líquidos e secos, simples e confeccionados que servem de estender o dia da formosura, quando já vem caindo maiores as sombras dos altos montes da anosidade e de dizer na cara ao desengano, que mente. Que mais? São necessárias até as nuvens do Céu para a primeira água de Maio que opinaram, fazia o carão lustroso; são necessários, arte, os mortos para as cabeleiras, se as não quiser o luxo antes tiradas das entranhas dos bichos, fazendo-as de seda. Estava para dizer que são necessários até os demónios, porque assim como a mão de Deus ajudou (como diz o texto sagrado) a formosura de Judite porque se ordenava a intento santo e de sua glória: «cui etiam Dominus contulit splendorem, quoniam omnis istacompósito, non ex libidine, sede x virtute procedebat», assim tenho para mim que sem a mão do demónio não poderá o apetite humano inventar er diposr e aplicar tanta vaidade e curiosidade.
Enfim, eu me acho cansado de peregrinar por este mundo imundo, como lhe chamou Tertuliano.
Dizei-me agora a Caio Ópio que chegue a bordo desta nau com a sua premacia; verá com que salva de artilharia o recebe; dizei ás rendas do morgado mais Atlante que sustentem este mundo. A mulher prudente, sisuda e amiga da sua casa é comparada por Salomão à nau mercantil; porém não, que de longe traz pão: «facta est quasinavis institoris de longe portans panem suum»; mas a mulher vã e amiga de enfeites e galas é nau que de longe traz a fome, porque a todas as partes do mundo faz desembolsos. Aquela o pão que traz é seu: «panem suum», porque sobre ser bem ganhado é bem conservado; esta a fome que traz é sua e de seus filhos e criados e servos, porque quanto se põe no supérfluo, tanto se tira ao necessário.
Recolhendo-nos agora ao nosso principal ponto donde saímos, pergunto: para que é necessário a uma mulher todo este mundo? Para parecer formosa. Concedamos-lhe que o parece; e ainda mais, que o é: que não é pouco barato, pois sabemos com S. Gregório Nazianzeno, que aquilo não é rosto, senão máscara: «non fácies, sed personas»; bem sabemos com Propércio que daquelas formosuras se mercam nas lojas e tendas e boticas e talvez para deitar a perder o natural:
«Naturaeque decus mercato perdere vultu».
E com Ovídio, que o menos que ali há naquele composto é a mesma pessoa porque quasi se sumiu entre tantos atavios sobrepostos:
«Auserimur cultu; gemmis, auroque teguntur omnina: pars mínima est ipsa puelasui».
Que tira ela, enfim, em ser formosa? Vaidade. Não mais nada. Tira também enfermidades de corpo, perigo da alma, enfados, murmurações e depois tanto em penas do outro mundo, quanto este lhe deu em glórias: com uma diferença entre outras muitas: que as glórias foram falsas e as penas serão verdadeiras. Poisa não pudera esta mulher com quatro lágrimas choradas debaixo do seu manto com um crucifixo diante dos olhos em lugar de espelho e com amar a verdade, que é a lei de Deus, deixando-se ajudar da sua graça; não pudera, digo, deste modo mais fácil, mais útil, mais honesto e deleitoso ser formosa nos olhos de Deus? Pudera e na mesma Pelágia temos o exemplo cuja alma, depois de convertida, viu o mesmo S. Noono em figura de uma candidíssima pomba, vendo-a de antes sórdida e feia».
«Mas cheguemo-nos já especificamente ao caso de Pelágia e das que se parecem com ela nos estudos dos enfeites, ainda que se não parecem na gentilidade, nem na gentileza, nem professem mau viver, senão somente bem parecer. Quanto é necessário de tempo, de estudo, de cuidado, de despesas, de trabalho e aflição de espírito para se pôr à vela uma destas naus? Bem lhe chamei nau, porque já Plauto disse: «Navis etmulier nunquam fatis ornamantur». A nau e a mulher nunca se dão por bastantemente equipadas. E concorda o adágio de Terêncio: «Dum moliuntur, dum comuntur, annus est». Mulheres enquanto se apercebem, enquanto se enfeitam, lá vai o ano.
Os Romanos antigamente, vendo que por opulentos que fossem os pais e maridos não havia pano para tão largo cortar (porque nelas seu giz e tesoura é o seu apetite e teima) saíram com a lei Oppia, sendo cônsules Q. Fábio e T. Sempronio, assim chama de C. Ópio seu instituidor em que mandavam moderar estes excessivos gastos. Porém tal foi a impaciência com que as matronas reclamaram, tal o motim que levantaram ao redor do palácio dos Brutos que dali a poucos anos já a prematica estava antiquada.
No capítulo terceiro de Isaías está lançado um bastante aranzel, ou rol destas galas e adereços femininos. Porque indignado Deus de tanta vaidade e luxo ameaçou castigá-lo com terríveis demonstrações e por princípio delas, diz que há-de deitar abaixo as fivelas e topes de calçado, as luas, os colares, as gargantilhas ou afogadores: «In illa die auferent Dominus ornamentum calceamentorum & lunulas, & torques, & monilia», os braceletes, as mitras, os pentes e fitas que servem de apertar as tranças, os frandelins, os cordões de ouro, as pomas e frasquinhos de águas de cheiro: «Et armillas, & mytras & discriminalia, & periscelidas, & murenulas & olfactoriola»: as arrecadas e chuveiros, os anéis e memórias, as jóias de pedraria preciosa pendentes sobre a testa, as galas de festa, os capotinhos, os volantes e velilhos, as espadinhas, os espelhos, as toucas, os listões, vendas e faixas e os mantos finos: «Et inaures, & annulos, & gemas in fronte pendentes, & mutatória, & palliola & linteamina, & acus, & specula, & sindones, & vittas & theristra». Porém neste rol não está a centésima parte do aparelho que pede esta grande nau (chamemos-lhe Libertina que era a Deidade de fazer cada um o seu gosto) para velejar vento em popa nas cerúleas planícies do aplauso público.
E mais é de advertir que o profeta fala das mulheres que andam em seus pés: «Ambulabant pedibus suis, & compósito gradu incedebant»: que as que andam nos pés alheios necessitam de muito mais enxárcia, enfrexadura e amantilhos de muito mais flâmulas e galhardetes, de muito mais grinaldas e faróis e de melhores pavezas a um e outro bordo. E a maravilha é que quanto a nau vai mais carregada, mais levezinha vai, porque a mesma carga lhe faz ganhar vento; suposto que só em ser mulher tinha já bastante, conforme aquele dito:
«Quid levius fumo? Flamen. Quid flamine? Ventus. Quid vento? Mulier. Quidmuliere? Nihil.
Tenho reparado em que os Latinos a este ornato e adereços da mulher chamaram Mundo: «Mundus muliebris» e quer-me parecer que este nome não só quadra ao seu significado enquanto quer dizer limpeza; senão enquanto quer também dizer o mesmo mundo; porque de todo o mundo leva esta nau géneros e todo o mundo é necessário concorrer para ornar uma mulher. Por onde se S. Gregório achou com verdade que a criatura humana era todo o mundo, porquanto com umas criaturas convém no ser, com outras no crescer, com outras no sentir e com outras no entender; participando também o ornato de uma mulher de cada região do mundo alguma coisa, com razão e verdade se chama esse ornato Mundo. Vejamos mais em particular».
A transcrição foi longa, demorada. Cansativa foi a travessia do mar encapelado, mas não há jornada fácil para todo o pistoleiro que, no rio, terra ou mar, por conta própria ou a soldo de qualquer instituição, se disponha a perseguir os "fora da lei" todo aquele que desobedeça aos preceitos sociais e morais. E chamá-lo à obediência, prendê-lo, enforcá-lo ou queimá-lo, se necessário for, dá trabalho. E o padre Manuel Bernardes, filiado na velha tradição bíblica, olho recriminatório fito na mulher, foi buscar ao profeta Isaías a sua inspiração, foi buscar aos clássicos as flores latinas com que enfeita o ramalhete do pecado humano e concluiu, depois, que a mulher é o mundo e o mal do mundo.
(Continua)