Trilhos Serranos

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sexta, 09 fevereiro 2018 14:27

REI VAMBA

Escrito por 

BELA LENDA

Aquilino Ribeiro, sempre que se refere ao velho carro de vacas e outras ferramentas e apetrechos agrícolas, remete o seu uso, em Portugal, para os tempos lendários do rei «Vamba». Eu próprio, no recente vídeo que fiz sobre no Museu dos Coches, evoquei essa figura, a fim de dizer que, no mundo camponês, nomeadamente por estas bandas das serras da Nave e do Montemuro, os coches eram outros, ou seja, eram os «carros de vacas».

 

 

Carro-3Convém, pois, saber algo mais sobre tão enigmática figura. Hesito em usar o nome Vamba, como escreveu Aquilino Ribeiro e Bamba , dado o bailado que o "V" e o "B" sempre fizeram no terreiro da evolução fonética da língua portuguesa, seguido ou em paralelo com o bailado dos eruditos a explicar uma coisa e o povo falante a praticar outra. Nado e criado na Beira Alta, onde vaca=baca, vai=bai, bem=vem, povo=pobo, vinho=binho decido-me  por escrever Bamba,  pois sinto que, por estas bandas,  vinho ou binho é a mesma coisa, tanto faz, e para mulher, homem ou rapaz, quer-se é copo cheio, de branco ou tinto. 

Seja pois Bamba.

Com "V" ou com "B", trata-se de um rei, cuja lenda anda por ai contada e escrita ao gosto de quem a conta e escreve. A versão que aqui deixo é um excerto de uma daquelas disponíveis Google. Eu a transcrevo enroupada, como convém, do maravilhoso lendário que a caracteriza. Assim:

Miniatura-1a«Aconteceu que, após o falecimento do rei Recesvinto e dada a falta de herdeiros naturais, a sucessão ao trono se tornou tão complicada, que uma delegação de nobres visigodos se dirigiu ao Papa, pedindo-lhe auxílio. Este, sem saber o que decidir, pôs-se a rezar a Deus, pedindo-lhe uma solução. E o Senhor revelou-lhe a existência de Vamba, e que o encontrariam a lavrar as suas terras com um boi branco e outro vermelho. Retornando os embaixadores ao seu país, logo enviaram diversos mensageiros pelo reino, à sua procura.

 AconteceU que ao passaram por um lugar chamado de Idanha a Velha, ouviram uma voz de mulher vinda de uma quinta próxima, dizer:


- Vamba, deixai os bois e vinde comer!


Então, os mensageiros foram ter com ele e disseram-lhe que teria de os acompanhar pois tinha sido eleito rei dos visigodos. Contrariado, Vamba que já era de uma idade avançada, recusou e pegando na vara de tanger os bois que tinha na mão (aguilhada) espetou-a na terra, dizendo que só seria o rei deles, quando a sua vara desse flores e frutos…e, para espanto de todos, a vara imediatamente se encheu de lindas flores e frutos perfumados!

Vendo este milagre, todos ajoelharam e Vamba, pegando na sua mulher, foi-se com eles para a Corte».

Cujó-Coche-1Ora aqui temos como um agricultor, da Idanha a Velha, a lidar com o arado, com carros de bois e vacas, munido de uma aguilhada, foi promovido a rei dos visigodos e, lá na corte, assistiu à "Guerra dos Tronos" e os seus sucessores, senhores e donos de reinos e de impérios, aos seus gostos e critérios, esquecidos do velho carro de bois ou vacas, caraterizadamente rural, esse meio de transporte de estrume, lenhas, madeiras e gentes para romarias, passaram a usar os coches de bancos acolchoados de veludo, feitos de talha dourada, ornamentados com esculturas humanas tão eróticas quanto angélicas. Neles não assentavam cu as famélicas e escanzeladas mulheres do camponês, do labroste, mas tão somente, o cu de reis, rainhas, princesas e gente fidalga. A mesma gente que, detentora do poder central e local, sujeitou esse rústico carro de vacas, esse meio de transporte indispensável ao labor do campo, do lavrador, rendeiro, enfiteuta, cujas décimas e foros eram pagos religiosamente pelo São Miguel, ou na data assinalada nas escrituras das terras "emprazadas", essa mesma gente, dizia eu, sujeitou esse meio de transporte a pagar Licença-carro-1uma licença municipal para poder circular nas "estradas reais" que, de terra batida, rasgavam Portugal de lés a lés. Digamos que só com livrete passado em nome do proprietário e uma chapa metálica oval com o mesmo número fixada numa cheda do lado exterior, o "bólide" podia circular na via pública, fora dos caminhos vicinais. As fotos que ilustram esta crónica reproduzem os documentos que foram pertença de José Telhado Morgado, do Rossão, freguesia de Gosende e datam de 28-03-1949. Tinha eu dez anos.

E, no que respeita à circulação desses veículos no concelho de Castro Daire, não vou falar da animosidade existente entre os camponeses, moradores nas aldeias e os vilãos, moradores na sede do concelho, da qual nos dão conta as várias notícias publicadas na imprensa local, dos fins da Monarquia e princípios da República. Não raro os agricultores tinham necessidade de atravessar a vila com os seus carros, indo buscar lenhas e madeiras, além do rio Paiva, atravessando a vila. Incomodados com a chiadeira desses carros, os vilãos queixavam-se ao Administrador do Concelho pelo não cumprimento das Posturas Municipais que obrigava os lavradores a colocaram sabão nos eixos dos carros, a fim de evitarem a sinfonia que tanto incomodava os cidadãos de gravata e mangas de alpaca. 

Chapa-1Munidos da licença camarária de circulação, na frente das vacas, aguilhada na mão, os lavradores, os bambas cá das redondezas, vestidos de burel e chapéu de palha na cabeça,  com ares de provocação, atravessavam a vila assobiando para o ar e quem não quisesse ouvir a chiadeira dos carros resultante do aperto das "estreitoiras" contra o eixo, que tapasse os ouvidos.

E eu, que trouxe à colação o nome de Aquilino Ribeiro, o escritor beirão que tão bem retratou os labrostes serranos e o seu modo de vida, as suas habitações, os seus trabalhos, vestires e comeres, eu que apreciei a forma didática, pedagógica, científica e interativa patentes no Museu dos Coches, em Lisboa, conjugando-se ali o passado distante com as novas tecnologias, sem as quais não poderiam projetar-se lateralmente os filmes encenado esse velho passado histórico, eu bem gostava que nesse Museu, usando a mesma didática, pedagogia e ciência, fosse aberta uma nova e nobre ala, onde o visitante, natural ou estrangeiro, o estudante, o curioso ou estudioso da HISTÓRIA, pudessem ver a outra face da moeda. Pudessem ver os "carros de vacas", esses meios de transporte do mundo rural, o mundo sem o qual, seguramente,  não existiriam as relíquias douradas e aveludadas que são o encanto de todos aqueles nunca ouviram o canto, a chiadeira destes outros veículos, com chedeiro de castanho e/ou de  carvalho e eixo de amieiro ou de freixo. Explico melhor.

Roda-1Fazê-los implicava o exímio manejo da serra, do serrote, da enxó, da plaina, do formão, do compasso, do esquadro, do metro e do trado. Coisa para mestres no ofício. As rodas,  de diâmetro diferente, com o seu miúl (peça essencial) e cambas adaptadas à orografia, de diâmetro mais pequeno para terrenos de grande inclinação e de diâmetro maior para os terrenos mais planos, são uma enciclopédia de mecânica, de técnica e de saberes dominados somente por bons artífices, carpinteiros e ferreiros. Primeiro uns, e depois os outros.

Tudo começa na escolha de madeira. Necessário é que seja resistente quanto baste à dureza e irregularidades dos trilhos e caminhos serranos, empedrados ou de terra batida. Caminhos há que, atravessando rochedos naturais lajeados, neles vemos vincados os rodados dos trilhos, quais pergaminhos a contar-nos a história longa das gentes que por ali passaram a lutar pela vida. E se na serra não faltam documentos destes, também  não faltam castanheiros e carvalhos, nem serrões, nem serras nem traçadores disponíveis para serrá-los e dar-lhes forma e utilidade.

Nas rodas temos duas cambas, em forma de meia lua, fixadas lateralmente ao miúl por travessas, ao centro do qual se abre, à força de trado e de serrote,  um orifício retangular, onde entrarão e se fixarão as extremidades do eixo, por forma a que, sob o chedeiro, rodas e eixo rodem em simultâneo, sem auxílio de rolamentos.

Acabada a primeira parte do trabalho do carpinteiro, as rodas seguem para o ferreiro. 

Aí, ora a abrir, ora a fechar, vai a baixo, vai a cima, acionado manualmente pelo mestre ou pelo aprendiz,  o fole sopra para o braseiro da forja. Metido nesse braseiro está o ferro destinado à moldagem dos trilhos, das meias luas com cabeça de víbora nas pontas, das braçadeiras e mais gataria necessária à segurança e durabilidade das peças. Não é trabalho para aprendizes. Estes fazem uso do malho e o mestre, com a tenaz numa mão e martelo na outra, vira que torna, protegido com avental da cabedal, espalma, sobre a safra ou bigorna, o ferro incandescente retirado do braseiro, ciente de que  as peças terão de ser cravejadas no seu sítio ainda quentes, para melhor assento. Nada se faz sem suor.

Nos tempos mais recuados, os trilhos (ou pisos) tinham a forma de meias luas, mas ultimamente eram anéis inteiriços, fixados na madeira com sovinas, isto é, grossos e compridos pregos de cabeça espalmada feitas previamente na craveira de ferro, uma espécie de régua com vários furos de diferente bitola, grandes e pequenos, desde a sovina, à cavilha, ao prego e até ao cravo de ferradura de cavalo, desse quadrúpede  de cavalgar, ou chapa de tamanco, desse ser humano cavalgado.

Assentes as ferragens, as rodas voltam à oficina do carpinteiro. Ele as fixará no eixo, peça, em geral, feita de amieiro ou de freixo. Preferivelmente de freixo. Depois segue-se o assento do chedeiro que é composto por um estrado (sobrado) assente nas travessas que fixam as duas chedas acopladas, em curva dianteira, a uma cabeçalha, ao centro, em cuja extremidade, através de um tamoeiro e de um chavelhão o carro se atrela ao jugo assente nas molhelhas encaixadas entre os cornos da junta de bovinos, os animais de tração que deram nome à viatura. E apeiro se chama ao conjunto de peças referidas, às quais, para nada ficar de fora, falta juntar as sogas, fitas de cabedal que, em X, contornando os chifres,  fixam  as  molheiras e jugo nas cabeças dos animais.

TULHA-CARROMas falta referir um pormenor importante, ligado a um "saber fazer" decorrente da experiência, da perícia e da sabedoria acumuladas. Nos tempos do lendário rei Bamba, ou dos Celtas, para recuarmos mais uns séculos, povos que receberam por herança dos seus antepassados a roda, o mesmo não aconteceu com os "rolamentos" necessários a tudo o que rode facilmente. E num veículo que se pretende a rolar (sem rolamentos) por trilhos, caminhos, e estradas, forçoso é que o engenho humano dê resposta às dificuldades encontradas. E foi assim que a experiência aconselhou a fixação na parte inferior das chedas, em lugar apropriado, dois cepos de madeira macia, alongados, geralmente de amieiro, denominados "couquilhos" prontos a neles assentar o eixo  abraçado por duas "estreitoiras", que tem a forma de pontos de interrogação  invertidos, isto é, de curva para baixo e de pé para cima, moldados em resistente pau de piorneira ou de carvalho, que, mantendo o eixo no lugar, o deixavam rolar sem esforço. A afinação é feita através dos  «precalços» justapostos  a elas do lado inferior, que se vão batendo e segurando, conforme o desgaste, tempo e uso. Da parte superior, a fim de não deslizarem para baixo e saírem, o problema resolve-se com uma pequena cunha e um prego de través.

Mas desses veículos não se conhece, no país, Museu de atração turística e cultural.   Rurais, ligados às tarefas camponesas, tarefas de trabalho e não de passeio, ainda que para passeio servissem, tal Museu não existe porque, não apareceu ainda um cidadão que, à semelhança do Rei Bamba, neste Portugal rural e periférico, espetasse no solo a aguilhada com firmeza e, distinguindo HISTÓRIA de LENDA, em vez de esperar pelo milagre de vê-la vestida de  "lindas flores e frutos perfumados", fizesse ele o milagre de vê-la parir  ideias contra a centralização, contra os bimbos que, apegados à manjedoura do orçamento central do estado, ou do orçamento municipal, alimentam a mentalidade mendicante e medieval, servindo-se do erário público e das instituições em vez de servi-las. E não é com mentalidades e atitudes mendicantes, subsídio atrás de subsídioque o Portugal que aqui se denuncia e se mostra, queimado, ardido, abandonado, deixa a cepa torta. Aquela cepa que pode dar bom binho, mas que leva, seguramente, a mau caminho. Eu não vou por aí. E o tempo que gastei a rescrever esta crónica, digo-o sem receio,  distinto é daquele que esses bimbos gastam, sentados ou de pé, a entornar copos de binho. Olhe cá, branco ou tinto? Cheio! 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.