E foi ela, essa capela, e estas palmeiras que me trouxeram à memória, a Sansão e Dalila, às duas figuras bíblicas. Estas duas larvas, a torcerem-se a retorcerem-se, a estrebucharem pela vida, lavraram e lavraram o interior, a alma, o miolo, das palmeiras das carrancas e de muitas tantas que existiam por hortas, avenidas, quintais, adros e capelas do país inteiro, segundo se diz.
Estas duas colunas de Salomão, (e quantas mais?) aprumadas e imponentes, com tanto ano no seu bilhete de identidade, em cuja copa bandos de pardais cantavam o gregoriano ao fim da tarde, antes de dormirem, não resistiram à poderosa força destas larvas na sua metamorfose de vida a evoluírem para o escaravelho vermelho, aquele que vindo da Ásia, da Oceânia invadiu o ocidente. Muitos anos, muitos dias, muito tempo. E a analogia de David e de Golias, não tem noutro sítio melhor exemplo. Também ele bíblico.
Sansão e Dalila. Esquecida a força do nazareno e a astúcia da filisteia, só vemos estas coisas pegajosas e feias, estas viscosas larvas sem esqueleto, sem espinha dorsal, morcas aneladas, abarrotadas de mal. E nestes tempos das novas tecnologias, esta praga programada não estava nos compêndios da ciência. Nem feito, nem dito. Digamos que foi uma inesperada e nova praga do Egito.
Ali, naquelas larvas, morcas aneladas, está a força da natureza sem asas, um inseto, o escaravelho vermelho, a malina que por aí corre no reino vegetal, da natureza, a dar-nos a certeza que tudo nasce, tudo cresce e tudo morre, até, do reino vegetal, as princesas.
II PARTE
DA PRAGA AO MILAGRE
Secas, atiradas ao chão, por força do escaravelho vermelho e da motosserra, traçadas, excluída a opção dos troncos ficarem de pé, como sentinelas da capela das Carrancas ou de S. José... à praga seguiu-se o milagre. O padre Carlos Caria - o abade - usando da sua sensibilidade, do seu gosto e sabedoria, atento à doutrina e à liturgia do seu múnus, mortas as palmeiras, essas «princesas do reino vegetal», (tal como foram batizadas pelo o botânico suíço Carlos Lineu) , de mãos postas ao céu, foi rápido a compensar a falta delas. Da noite para o dia, ele plantou ali dois ciprestes italianos, já crescidos, da sua espécie natural sempre verdes. E ambos, agarrados ao chão, dispostos estão a enfrentar centenas de anos. E para quem olhe o mundo e o mundo veja, para quem não dorme sobre a história, ciente está por estudo e por memória, que eles estão mais conforme a doutrina da Igreja, símbolos que são da tristeza, da melancolia, da morte e, todavia, também da vida eterna. A alegria da guitarra e da cantoria dos poucos clérigos (quais cigarras no inverno) que apostam na mudança de rituais e liturgias, alegrando templos e palcos, depois do Vaticano Segundo, são pirilampos de luz na noite escura, são moda, e num mundo que roda parado, a sua postura alegre e descontraída, contrasta com a agonia, com a paixão, com a amargura e com a dor de Jesus Cristo na cruz crucificado.
Árvores, portanto, mais adequadas ao espaço e à semântica doutrinal do que as palmeiras, as princesas do reino vegetal, algo pagãs, doentes ou sãs, estes dois ciprestes foram plantados no mesmo adro, mas mais chegados aos cantos, mais ao lado, deixando o edifício mais desafogado e ainda bem, pois se um templo é feito para orar, é também feito para se ver. E estou em dizer que muito embora, histórica e simbolicamente estas árvores se liguem à morte, à vida eterna e aos cemitério, andou bem o abade Carlos Caria nos seus sacerdotais critérios.
Este é o juízo que faz agora o historiador que assina este registo, o mesmo que registou a morte das palmeiras. E dito isto, faço votos que ao sacerdote preste a escolha que fez, que lhe preste o zelo manifestado na Paróquia, pois seguro estou que os ciprestes, de vida garantidamente longa (ai o que eu penso e digo) bem podem vê-lo subir à dignidade de cónego de cabido e, sei lá, de arcipreste. E, sendo isto feito no adro da capela que, no século XVIII, foi de um Bispo, também isso. E, evoluindo sempre na hierarquia, dando o mundo tantas voltas, quem sabe se um dia, neste currículo de folhas soltas, breviário sem capa, este abade chega a cardeal e ....até a papa.
Nós, que do mundo pouco sabemos e no mundo somos «terra, pó, cinza e nada», temos, por agora, uma certeza. Das palmeiras ficaram as fotografias para os nossos vindouros. Elas deram lugar aos ciprestes. E isto feito e dito, se não vier outra praga do Egito, gerações sucessivas de gente verão estes prodígios da natureza, tais quais são: altos, esguios e belos, na sua postura vertical de verdade, de verdura e de milenar tristeza ligadas à morte e à eternidade.
ver vídeo https://youtu.be/pormGvz1I1Q