NATAL - 2017
Foi há dois mil anos (mais dezassete) com os históricos enganos de quem se mete a saber quando Jesus veio ao mundo para o mundo mudar, para no mundo fazer jus.
Nascido numa manjedoura envolvido em palhinhas (coitadinho!) aquecido com o bafo das vaquinhas e do burrinho (uns amores!), como se não houvesse pastorinhas nos arredores, não viu Jesus uma só pastora no meio de tantos pastores.
Mal nasceu, no seu natal, logo vira um mundo desigual: reis agasalhados com mantos brocados, em seus camelos montados, carregados de ouro incenso e mirra: sinais de riqueza. E, ao lado, pastores de peles, lã e de linho vestidos, nas mãos os cajados, rotos esfarrapados: sinais de pobreza!
Não podia continuar assim o mundo. E era tempo de lhe pôr fim. Mas como fazê-lo sem guerra, se ele não era nenhum Mandela, nem nenhum Gandi, esses pacifistas do porvir? Cresceu a ouvir profetas, sábios sem letras, hábeis em enigmas, ilusionismo, magia e petas, eloquentes, a malsinar a injustiça que na terra pisavam e a bem dizer do céu estelar inatingível e justo. Sem grande custo, lição aprendida, a lidar com o compasso e o esquadro de carpintaria (aprendiz de carpinteiro era) na vida, dia após dia, fez da palavra goiva, formão ou espada e, munido de tais ferramentas e armas, concebeu um reino seu, que deste mundo não era. E por parábolas, como os profetas anteriores, dizia tudo, dizia nada, fazia sermões de montanha em montanha, de vale em vale, fazia milagres em cabanas, magia de povo em povo que ficava abismado. Com verdade, arte e manha arranjou seguidores, fez doutrina. Pôs os vendilhões fora do templo, mas de que lhe serviu o exemplo? Maldita sina.
Passados dois mil anos, os vendilhões voltaram p'ra dentro e na rua (quem não vê isto?) ficaram sem abrigo esses pobres de Cristo (vejam bem o que digo) à espera das sobras que caem da mesa dos ricos que aliviam a consciência com esmolas. O mundo não mudou de rumo. E tudo quanto pregou, de pouco ou nada serviu. Muitas luzes, muitas estrelinhas, muitas cruzes, tudo, do melhor e do pior, se vende e compra nesta sociedade de consumo. E, face à realidade passada e presente, Senhor, perguntamos já cansados, será diferente o devir? Certo, certo, é que o exemplo e o sermão de Jesus viraram rotina e os seguidores em vez da doutrina servirem, servem-se é da doutrina.
E, se bem me lembro, que dia melhor - chiça - senão o natal (todos os natais em dezembro) para se trazerem aos tempos atuais os mundos desiguais que Jesus rejeitou, morrendo na cruz, lá no Calvário? Passou muito tempo. Houve fome, peste e guerra. Mendicantes em barda vadiando pela terra. Templos, igrejas, capelas em todo o lado. E em seu nome, de que sabeis o critério, se acenderam fogueiras e queimaram "infiéis", se torrificaram gentes, ditas de seitas diferentes. Recentemente, o Mediterrâneo, que banha a Ásia, a África e a Europa, tornou-se um cemitério. E na Palestina, na Galileia, Belém e Jerusalém, terras de Abraão, de David e Josué, chão dito Terra Santa, mas terra Santa não é, não. Lá, a guerra é permanente. Lá onde pulsa o coração de três continentes, matam-se à bala, à pedrada e à facada. O terrorismo, lá e noutros sítios, é escalracho em terra lavrada. Emigrados, refugiados, de todas as religiões, provenientes de regiões diferentes, onde não há paz, fogem da terra natal, fogem dos infernos e carregam consigo a cultura e os afetos paternos. Muitas mortes, muitos lutos, muitos dós.
Cristo morreu, ressuscitou, subiu ao céu, pois na terra não ficou. Pudera! Mas se voltasse a encarnar, se descesse das alturas e viesse até nós ver o negócio das escravaturas (como são e como eram), seres humanos vendidos novamente em leilões, preço feito pelo comprador, ou comprados ao preço de quem se vende, ou aceita ser vendido, ser mercancia na ansa de mercadores, jogadores de futebol, esses campeões da bola e dos relvados, o escol de gladiadores deste tempo que corre, hinos, clamores, ovações e urros coloridos das tribos embandeiradas nas bancadas intramuros, vivas e morras com polegares para cima ou para baixo, todos os gestos e esgares de rosto. Ai, que desgosto, se Jesus visse os festejos, a abastança de braço dado com a fome, a riqueza com a miséria, o consumo embrulhado em papel multicolor com muitas fitas e muitos laços, quadra festiva afogada em beijos e abraços, por força do consumo que se gerou em torno do seu nascimento, em Belém, ou em torno do substituto velhinho de barbas brancas, livre de insónia, oriundo da Lapónia, que, de noite (eu não confundo) por magia, para encanto de crianças, se desloca no céu dentro de uma carroça puxada a renas, sem asas, voando somente com pernas, se visse tudo isso, difundido pela televisão, pela Internet, pelo Facebook e demais tecnologia de comunicação que ele jamais pensou ou sonhou, se visse que o holograma não é um milagre da sua mão, nem a clonagem uma fantasia do mago Simão, que com ele competia em tais artes, longe do "penso, logo existo" de Descartes, se ele visse tudo isto, dizia eu, Cristo, imediatamente morria e refugiava-se no Céu, sem ser crucificado.
Abílio/dezembro/2017