Trilhos Serranos

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quarta, 11 outubro 2017 08:37

FACEBOOK 7 (b)

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FACEBOOK 7  (11-10-2013)

Eu pensava que ao SÉTIMO descansava. Enganei-me. Com  a ideia ferrada na cachimónia de que as pessoas no FACEBOOK não apenas se desnudam, mas se põem do AVESSO, entrei consultório dentro e perguntei: ó senhor dr. já viu uma pessoa do avesso? Eu não, tenho passado a vida profissional a tentar vê-las por dentro, mas do avesso, isso não. Já tenho visto ideias e pensamentos arrevesados, retorcidos, falsos, meadas difíceis de desenrolar, mas pessoas do avesso, isso não.

Pois eu esta noite vi o mundo todo do avesso. Todas as pessoas, sem as formas e feições costumadas, passeavam-se nas ruas com todos os músculos, vísceras e órgãos internos à mostra. Tudo virado ao contrário. Coisa horrível de ver e de cheirar. Uma chocalheira de rebanho perdido na selva humana, clac, clec, clic, cloc, cluc, todos os sons das vogais acentuadas ou não, ligadas às consoantes ou não. As plantas recurvavam as folhas, as flores fechavam-se em botão, as aves voavam para longe, assustadas, agoniadas, medrosas de caírem intoxicadas pelo ar empestado. Tudo em fuga. Era um bafo a bofes que tresandava a léguas e os corpos tinham formas e cores nunca vistas. Só nos programas científicos de anatomia, da Odisseia e canais congêneres, até onde chegam as sondas, algum dia a vista humana tal viu. Uma coisa, é uma coisa. Um órgão é um órgão, mas já viu o mundo inteiro assim do avesso, tudo o que o invólucro da pele esconde dentro de si? 

Começando na cabeça, sem crânio, o cérebro esbranquiçado tinha a forma de noz gigante, mas feita de massa mole, cheia de refegos a imitar um outeiro depois de uma enxurrada, cheio de regueiras por todo o lado. Nalguns deles era como se estivéssemos ainda no meio de uma trovoada. Havia relâmpagos cruzados em todas as direcções. Eram os neurónios, biliões deles, em equipa com as sinapticas, os axónios e as células, a chisparem ideias, pensamentos. Nalguns a intensidade da luz era tal que o Dr. Damásio para mapear este órgão produtor da razão e da consciência, teve de usar a máscara dos soldadores, com óculos escuros para não lhe ferirem a vista, para poder tirar apontamentos e fazer um estudo luminoso. Tá-se a ver que tais cérebros eram os dos pensadores, dos filósofos, daqueles homens de acompanhar e ouvir em passeios peripatéticos, admirados por uns tantos seguidores, e maçudos de arrepiar para outros que fogem deles a sete pés. Outros cérebros, tal era a trovoada e acumulação de faíscas, tal era a confusão, que o neurocientista desistiu de tomar apontamentos. Dali não saía nada. Afastou-se por momentos. Outros, por preguiça ou inactividade mental, deixaram de produzir qualquer faísca, cristalizaram, pareciam feitos de argila e para que não fossem dados como mortos, obrigaram o neurocientista a fazer o papel de pedreiro, a usar o escopro e a maceta, pica aqui, pica ali, pim, pim, até que do contacto instantâneo do aço com a pedra saísse uma faísca, uma centelha de luz, que não chegava a ser uma ideia conectada que fosse com a centelha do neurónio próximo. Uma trabalheira. Mapear o cérebro, localizar as zonas do pensamento, da consciência, do alfacto, da audição, do paladar, do equilíbrio, dos afectos, ó Dr. Damásio, viu bem onde se meteu?

Deixando a cabeça, passando pelo pescoço, goela e traqueia, caiam-nos os olhos nos pulmões. Dois ramos de frondosa árvore invertida. Aquilo era um mapa de rios, ribeiros e ribeirinhos cheios de sangue e de ar. Chamam-lhe vias respiratórias e vasos sanguíneos. Em vez de água, sangue e ar. Assim, ao léu, é vê-los encher e esvaziar, inspirar e a expirar, a lembrar-me o fole do ferreiro dos Ramalhos, em Cujó, tenda onde na juventude me recolhia com os rapazes da minha idade nos frios dias de inverno, de chuva e de neve, para, agarrados ao malho, ajudarmos o mestre a fazer trilhos para carros, ferraduras, enxadas e demais ferramentas agrícolas e também chapas e testeiras para tamancos. A entrada e saída do ar soa a saúde ou de doença. Com tosse ou sem tosse. Uns, os dos fumadores, pretos, parecem as paredes da casa da cozinha de uma aldeia serrana, no tempo em que não havia chaminés. Paredes a luzirem, envernizadas pelo fumo de séculos. Outros, limpos, bonitos de ver, mas o som da entrada e saida de ar, sempre comparado aquele resfolgar das máquinas a vapor, quando o combóio parado, está a meter água nas estações "pfam...pfam...pfam". Som que se mistura com o pum, pum, pum, pum do coração, mesmo à sua frente, um pião que em vez de rodopiar no terreiro, palpita no peito, pum, pum, num ritmo pendular de relógio suíço, em passada normal ou balanço de relógio de bolso, passo apressado, bomba encarregada de levar até aos confins do edifício humano o líquido que o irriga, e não irrigado deixa de ser. Uma máquina perfeita. Uma máquina, vejam só, que se diz ser a sede do amor, donde saem os afagos, os beijinhos, as carícias e até os sorrisos que soe verem-se nas bocas de lábios rosados e carnudos das mulheres bonitas, dispostas a beijaram-nos, quando os corpos não estão do avesso. 

E descendo ao abdómen e por aí abaixo, uma miséria, só vista e cheirada. Formas e cores muitas. Não têm conta. Não cabem na paleta do pintor mais pintado. Novelos de intestinos que lembram aqueles montes de cobras que tanto assustavam o Indiana Jones. Bandulhos que são autênticas fábricas de merda e gases, sempre a escaparem-se para o exterior logo que encontrem ocasião e orifício para tal, tal como se escapava desses antros escuros e malcheirosos o arqueólogo detective. Um mundo do avesso. Um mundo repugnante. Repugnante só para mim ou para toda a gente. Será que se tudo fosse assim desde a CRIAÇÃO esse mundo desconforme, fosse conforme e normal, nestas suas multiformas, multicores e multicheiros? Acordei. Um mundo do avesso, um mundo podre e malcheiroso, sem palavra de honra, sem dignidade, a mentira e a verdade fundidas no cadinho da conveniência, uma e outra tanto faz. Salve-se quem puder. Um mundo do avesso. Isto só num pesadelo. E logo no SÉTIMO DIA que devia ser uma noite bonita, descansada e bem dormida.

Abílio/2013

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.