HISTÓRIA VIVA
GRANDEZA E DECADÊNCIA DE ROMA» mutatis mutandis «GRANDEZA E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO PORTUGUÊS». Foi o perder de teres e haveres, foi o desfazer de lares e a dispersão de familiares e amigos, companheiros de profissão ou de estudo, alguns dos quais nunca mais se viram, nem souberam do paradeiro uns dos outros. De um dia para o outro, campos abandonados, cidades e habitações desertas, medo, fuga, mobílias metidas em contentores, «Cais Gorjão» abarrotado de vidas desfeitas, à espera de embarque. E muitas dessas vidas crentes na propaganda política e na operação «NÓ GÓRDIO», elas que ignoravam, em absoluto, o que isso era e desconheciam a existência de ALEXANDRE MAGNO. Ali, em Moçambique, não lutavam GREGOS e PERSAS, ali lutavam PORTUGUESES e MOÇAMBICANOS.
E sabido é pelos meios de comunicação social que, espoliados de haveres e empregos, uns encontraram a terapia no álcool; outros nos fármacos receitados pelos médicos; outros, na ida às bruxas, curandeiros e cartomantes; outros deixaram-se morrer lentamente, algures por aí, sem abrigo, enquanto os seus sonhos de retorno à Pátria, apodreciam encaixotados no cais de Santa Apolónia, sem sítio para onde pudessem ser recolhidos. Parte significativa do Império Humano Português apodreceu ali.
Eu, fugindo aos fármacos e ao muro das lamentações em que se tornou o Lago do Rossio nesse tempo (1974-1975-1976) onde se congeminavam contrarrevoluções e o regresso em força, ao Ultramar, proclamando «morte aos traidores» e «vivas a Salazar», em cada mesa de café, de esplanada ou banco de jardim exisita um RAMBO a expor técnicas e estratégias militares de vitória (nós tínhamos aquilo na mão, mas os traidores entregaram tudo aos pretos, que nem cabeça têm para se governarem), aquilo só visto e ouvido. Não falo dos militares graduados e soldados rasos que, imbuídos se sentimentos patrióticos, arriscaram a pele e a vida, ignorando (ou, alguns deles, fingindo ignorar) que, do outro lada da barricada, os seus inimigos estavam imbuídos do mesmo sentimento patriótico em defesa do território que era seu, antes de ser nosso. Face a tudo isso eu optei, conscientemente, por não frequentar mais aquele espaço de desilusão e sem retorno. Deixei de ver os amigos e votar ao esquecimento acontecimentos e emoções vividos e lágrimas choradas. Dediquei-me à investigação e ao ensino da História. Conscientemente. Só que no cérebro humano não há compartimentos estanques que se fecham ou que se abrem, segundo os interesses e conveniências de momento. E se de dia eu ocupava o meu tempo nesses quefazeres esquecido de tudo, à noite, o subconsciente dava asas aos fantasmas aferrolhados de dia e punha-os a esvoaçar livremente por espaços e nomes registados nos pergaminhos dos afetos, do companheirismo, da luta travada no campo do saber e da descoberta. Enfim, da vida toda. Assistência "pós-traumática? isso era para militares, em resultado das embuscadas sofridas. Civis? Esses que se amanhassem pelos seus próprios meios.
Eu escolhi o meu. Uma longa metragem em formato cinemascope. Não foi tempo fácil. Mas contra ventos e marés, mantive a sanidade mental e aquela réstia de humanidade que me fez enfrentar de novo a vida e manter a família nuclear unida, criar dois filhos e, conjuntamente com a minha esposa Mafalda, sua mãe, dar-lhes o que de essencial os pais devem às crianças que põem no mundo: alimentá-las, vesti-las, educá-las, ajudá-las a crescer, a terem asas e, chegada a idade de voarem, deixá-las ir pelos espaços da sua escolha e onde se sintam felizes. E ambos, com família constituída, voam lá pelos céus de Lisboa, formigueiro de onde eu sempre fugi a sete pés.
Em Portugal, logo após a Descolonização, eu e o Guedes encontrámo-nos algumas vezes em Lisboa e trocámos alguma correspondência, depois. Mas, morando afastados, ele na sua lufa-lufa, lá pela capital, e eu na minha lufa-lufa, cá pela província, só nos encontrámos pessoalmente uma vez em Britiande, por iniciativa minha.
Recentemente, com o FACEBOOK à disposição, tentei encontrá-lo, mas nada. Não estranhei. Eu tive colegas que se aposentaram por não quererem aderir às novas tecnologias. Ele teria feito o mesmo. Fiz um teste indagando nas redes sociais por nomes conhecidos e ... nada. Desisti. Mas, há dias, montei a mota e rumei novamente a Britiande. Sabia-o ligado à casa onde se diz ter vivido Egas Moniz e algo descobriria. E assim foi.
Ali chegado, um senhor natural da terra, cujo nome não fixei, dirigindo-se a mim, indagou: «procura alguém?» Sim. Um senhor que conheci em Moçambique e que era daqui. Disse-lhe o nome. Respondeu: «não mora cá, mas tem cá um irmão que mora assim, assim..assim....» e pôs-se a explicar. Mas vendo a minha hesitação em dar com o sítio, avançou: «deixe lá, venha atrás de mim». Meteu-se no carro e levou-me ao destino. No percurso, atrás dele, lembrei-me de gesto semelhante ocorrido em Castro Daire comigo. Um casal perguntou-me onde podia tomar a A24. Eu estava montado na mota e disse-lhes simplesmente: «sigam-me». E levei-os à rotunda de entrada. Adeus. Este mundo cão tem destas coisas bonitas e humanas. Esse casal, em qualquer sítio que esteja, dirá de mim o que eu digo, aqui e agora, desse senhor de Britiande. Eu não retive o nome dele e o casal nunca soube o meu, mas que importa isso, se o que conta são as ações?
Ele bateu à porta, apresentou-me ao morador como sendo amigo do irmão Joaquim e foi à sua vida. Devo dizer que lhe fiquei muito agradecido. Em povoados antigos, cujas ruas, becos e quelhos, os tornam semelhantes a «madrigueiras de raposa», na designação de Aquilino Ribeiro, eu teria a dificuldade em chegar lá.
Muito bem recebido, soube novas do meu amigo e mais: o irmão, António, com um filho ao lado, um jovem professor (portanto meu colega), puxou do telemóvel, ligou para o irmão e disse-lhe quem tinha sentado à frente da sua secretária. E, ato contínuo, passou-me o aparelho. Do outro lado uma voz que já não ouvia há muitos, muitos anos. Ficámos em encontrar-nos brevemente, mas, pelo sim, pelo não, aqui deixo este apontamento, rematado com o último parágrafo do PREFÁCIO assinado em Turim, no dia 1 de dezembro de 1901, por GVGLIELMO FERRERO, autor da obra «GRANDEZA E DECADÊNCIA DE ROMA», que me foi ofertda, como acima disse:
«Esta ampla pesquisa intenta descrever uma das mais esplendorosas existências históricas, do nascimento à morte; dos distantes dias em que um pequeno povo de pastores e camponeses derrubava as florestas sobre o Palatino para nele erigir os altares dos próprios deuses, inconsciente da longa história a que dava princípio, até os trágicos dias em que o sol da civilização greco-latina descambou por sobre os campos desertos, as cidades abandonadas e as populações esparsas, embrutecidas e atemorizadas da Europa latina».
Não sei porquê, mas apetece-me sublinhar as últimas palavras do texto, suprimindo algumas delas. Assim:
«O sol da civilização (...) descambou por sobre os campos desertos, as cidades abandonadas e as populações esparsas, embrutecidas e atemorizadas da Europa (...)».
Parecem-me fotogramas de um filme de grande metragem, formato cinemascope, daqueles que com 22 anos de idade, eu projetava no Cinema Santiago, em Tete, cujo «THE END» nunca mais chegava para eu poder ir dormir. E creio que foi essa minha experiência de projecionista na juventude que, aos 78 anos de vida, melhor me faz ver a «grande metragem humana» que continua a desbobinar-se no CINE MUNDO e na qual figuram ainda, passados tantos anos, os mesmos fotogramas: "campos desertos, cidades abandonadas, populações esparsas, embrutecidas e atemorizadas da Europa (...)".
"THE END", que é dele?
FIM