Trilhos Serranos

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terça, 19 setembro 2017 12:32

TEMPO DE AMIZADE, DE GRATIDÃO E DE ESQUECIMENTO (1)

Escrito por 

HISTÓRIA VIVA

 Já lá vão muitos anos. Mas, este meu apontamento, passado que foi tanto tempo, o tempo terapêutico do esquecimento  necessário a uma mente sã,  o tempo que esvaneceu o sofrimento de recomeçar do nada a vida no meio da vida, agora que esse tempo passou (o tempo tudo cura!) tinha de ser escrito, agora, que as «amizades interesseiras e descartáveis» proliferam por aí  como cogumelos, quer vividas e sentidas, quer vistas e presumidas no Facebook, tu cá, tu lá! 

É um «apontamento-testemunho» que se reporta a outros tempos, preservado não só na minha MEMÓRIA encarquilhada, mas também registado no texto de um «cartão de visita», sem rugasmanuscrito por um amigo e colega na Faculdade, em Lourenço Marques, hoje Maputo, guardado no lado interior da capa de um livro de História.

 

 Eu vos conto. Sentados lado a lado, no primeiro dia da Universidade, dois homens adultos, sem se terem visto em lado algum, dão-se ao conhecimento recíproco. Eles têm um objetivo comum: tirar o Curso de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lourenço Marques. Adultos que eram, trocaram cartões de visita (estava em moda esse início de relacionamento pessoal) e, vistos os nomes, JOAQUIM PEREIRA GUEDES e ABÍLIO PEREIRA DE CARVALHO, passaram a tratar-se pelos apelidos: ele era o Guedes e eu o Carvalho. Ele era natural de Britiande, às portas de Lamego e eu de Cujó, uma aldeia do concelho de Castro Daire. A bem dizer conterrâneos, encontrados ali, do outro lado do mundo, assim, fortuitamente. 

Conhecidos desse modo, passámos a frequentar a Universidade e os cafés da cidade conhecidos por todos os trabalhadores-estudantes, não importava o grau de ensino que frequentassem. Lourenço Marques era outro mundo. Para benefício dos estudantes e prestígio e honra dos empresários, havia cafés com espaços reservados à estudantada de qualquer grau de ensino: PreparatórioComercial, Industrial, Curso Geral dos Liceus, Curso Complementar dos Liceus Universidade.

Lembro o café «MANUEL RODRIGUES», com cinema ao lado. Lembro o «SAFARI», com um cortinado a separar a parte do restaurante do café. Lembro a «PASTELARIA ATNEIA», bem perto do cinema Gil Vicente. E lembro a «COOPERATIVA AGRÍCOLA DO MALHANGALENE», onde somente se serviam e consumiam produtos lácteos. Aquele salão, de portas abertas ao público,  era uma espécie de ESCOLA sem diretor nem serviços administrativos. Ali os alunos de grau mais elevado de ensino, tiravam as dúvidas aos alunos de grau inferior que lhes solicitassem ajuda, em qualquer momento. Uma autêntica sala de estudos. Bastava chegar à mesa de um deles: «sente-se, sente-se, então o que é?» Posta a dúvida, era imediatamente tirada e bastava um simples «obrigado» para ambos retomarem os estudos em mesas diferentes, em graus diferentes e se sentirem mutuamente felizes. Aquilo chamava-se cooperação e solidariedade.

Pois foi num ambiente assim que eu e o Guedes convivemos os primeiros tempos da Faculdade. Ele, não podendo estar presente em todas as aulas, por razões profissionais, encontrou em mim o apoio que necessitava, usando os meus apontamentos e debatendo depois, com os demais colegas (entre os quais a minha esposa Mafalda)  a matéria dada, nos encontros que tínhamos nos espaços acima referidos. 

cinco-RedzUm dia, durante uma das sabatinas sobre a matéria agendada para o teste que se avizinhava, ele disse-me que não iria: «não me sinto preparado, não vou». Era matéria da cadeira gerida pelo Professor Doutor Humberto Baquero Moreno e tratava das «invasões bárbaras» contra o «Império Romano». Eu, que já era professor e à experiência de aluno juntava alguma experiência docente, eu, que via no Guedes uma pessoa inteligente, empenhada e de rápida aquisição de conhecimentos, achando que, naquele momento, ele estava errado na sua autoavaliação, ripostei-lhe: «amigo, pense bem! Se for fazer o teste, pode sair-se bem e avançar. Se não for, perde essa oportunidade e perde outra cumulativamente:  não conte mais com os meus apontamentos, nem com a minha ajuda, nestas sabatinas».

Colocado entre a espada e a parede ele resolveu ir fazer o teste e tirou uma nota satisfatória. A partir daí creio que, para além do colega amigo, ele passou a valorizar mais a minha função de professor em início da carreira. E, sem alguma vez lhe ter perguntado, estou certo que se deve a essa minha atitude a oferta que ele veio a fazer-me da obra com o título «GRANDEZA E DECADÊNCIA DE ROMA», obra de cinco volumes, encadernação de luxo, cujas fotografias ilustram este apontamento. (ver foto ao lado)

Aconteceu no ano de 1973 e, visto o título da obra, eu a associei imediatamente ao teste das «invasões bárbaras» que ele fora fazer graças ao incentivo dado por mim, não sem o aviso de que perderia a minha colaboração, se não fosse.

Era o mês de Dezembro, noite de Natal, e eu tinha ido ao cinema com a minha mulher. De regresso a casa deparámos com um embrulho à entrada da porta. Convém lembrar que, nessa  altura, não havia telemóveis nem as comunicações se faziam com as facilidades que se fazem hoje. Entrámos e vimos que, colado ao embrulho, estava um «cartão de visita», cujo rosto e verso aqui reproduzo na íntegra: 

«O Guedes, pretende manifestar, através desta pequena lembrança e em quadra de sentimento particularmente comunitário, a sua gratidão pela ajuda no êxito encontrado no 1º Ano do Curso de História e contribuir, ainda que modestamente, para o vosso recheio bibliográfico, base dum futuro feliz que, do coração, vos auguro, com um abraço amigo. 

LM, Dz. 73»

 

 

guedes-1

 

 

 

Do texto sobressai claramente o sentimento de «gratidão» e o reconhecimento pela ajuda dada no «êxito» alcançado. Ressalta o «mérito» da nossa ajuda e, reconhecido assim, ele reverteu imediatamente para o subscritor do texto, pois sempre tive para mim que o «reconhecimento do mérito a terceiros reverte, proporcionalmente,  para a pessoa que o reconhece». 

Ambos iniciámos o Curso de História na Faculdade de Letras de Lourenço Marques, mas ambos o terminámos na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Eu fiquei-me por esse curso, mas ele, depois da HISTÓRIA tirou também o curso de DIREITO.

 E porque foi assim? Digamos que premonitório foi título da obra que ele teve a gentileza de nos oferecer: «GRANDEZA E DECADÊNCIA DE ROMA».  Premonitório, sim senhores, pois à porta dessa oferta, feita em 1973, apesar de ser obra antiga, estava também a «GRANDEZA E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO PORTUGUÊS», cujo primeiro capítulo de «GRANDEZA E FORMAÇÃO DO IMPÉRIO» começou com a Conquista de Ceuta, em 1415 e a «DECADÊNCIA» na forma como foi governado  esse IMPÉRIO até ao despertar da GUERRA COLONIAL e o seu fim com 25 DE ABRIL 1974, seguido do processo da DESCOLONIZAÇÃO.

E ler os cinco volumes da «GRANDEZA E DECADÊNCIA DE ROMA» neste contexto passou a ter para mim um significado muito mais amplo, não só do ponto de vista do espaço e tempo, mas também dos protagonistas envolvidos na narrativa.  Passaram a ser lidos não apenas numa perspetiva de saber académico, mas de conteúdo imbuído de sentimentos e emoções vividos por vencedores e vencidos. Pena é que, nem sempre a HISTÓRIA fosse ensinada como devia, isto é,  a história da Formação e Queda de Impérios, Formação  e Queda do Império Português.  Digamos, «história com gente dentro». 

Da parte que me toca, como professor que fui e historiador que sou, procuro não descurar essa vertente formativa da disciplina e, quer a estudá-la, quer a escrevê-la, tenho-o feito com a lupa usada por um dos meus professores, Barradas de Carvalho, vendo nela uma disciplina imperialista, propensa para abarcar outras disciplinas e na sua elaboração incorporar os saberes desenvolvidos por especialistas noutras áreas científicas.

(continua)

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.