HISTÓRIA VIVA
Foi, pois, lá no outro lado do Atlântico, em terras brasileiras, que, séculos depois de Pedro Álvares Cabral as ter «descoberto», desembarcou, um casal de castrenses acompanhado de uma menina que rondava os dez anos de idade. E ali, no Rio de Janeiro, como tantos outros castrenses, fizeram pela vida. Mas nada se sabe desse casal, da vida que levaram, dos trabalhos que tiveram, dificuldades que venceram. Sabe-se é que a menina cresceu, arranjou namorado e, com a idade de 18 anos, ela, e ele de 31, puseram no mundo a filha Júlia e, dois anos depois, o irmão José.
Os pais das crianças, tal como ficaram registadas nas certidões de batismo, eram «António Tereso e Florinda Amélia de Carvalho, portugueses». A cerimónia teve lugar na Paróquia de S. Cristóvão. A menina foi batizada no dia «sete de Maio de mil oitocentos e noventa e três» e o menino, no dia «seis de Outubro de mil setecentos e noventa e cinco». Assim:
Face a estes registos de batismo, atentos aos nomes das crianças batizadas e dos seus progenitores, verificamos que, em 1893 e 1895, na Igreja Paroquial de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, Florinda Amélia de Carvalho, a mãe das crianças, é a mesma Florinda Correia que, em Portugal, dois anos depois, em 1897, casou na Igreja Paroquial de São Joaninho, onde declarou serem seus filhos legítimos aquelas duas crianças, geradas e batizados no outro lado do Atlântico.
Deste enlace matrimonial nasceram mais cinco filhos. SETE ao todo, a saber:
Júlia Amélia de Carvalho. José Tereso. António Tereso. Salvador de Carvalho. João de Carvalho. Maria de Carvalho e Magnífica Tereso.
E põe-se então a pertinente pergunta: porquê a discrepância de identidade verificada no ato solene do batizados dos seus filhos, onde temos Florinda Amélia de Carvalho e, em Portugal, no ato solene do seu casamento com António Tereso, pai dos seus filhos, onde temos Florinda Correia.
Sabemos que o apelido Correia lhe veio do padrinho José Correia, mas de onde lhe veio o adotado apelido Amélia de Carvalho, aquele que ela usou toda a vida, exceto no ato do casamento?
À falta de documentação e de uma explicação dada pela própria em vida, faz-nos entrar no campo da especulação. E eu posso especular que, tal como no ato do batismo, acabadinha de nascer, de forma institucional, lhe colaram o nome e o apelido Correia, ela, em terras brasileiras, pensando já por si própria, dispensou os formalismos burocráticos e adotou o apelido que mais lhe agradou: Amélia de Carvalho. Sabe-se lá se o nome de alguma senhora que, sem ser sua mãe, lhe deu colo ou carinho, ou mesmo lhe estendeu a mão, ajudando-a a levantar-se num daqueles trambolhões que todo as pessoas dão nos degraus da escada da vida. E bem podemos conjeturar que as relações familiares entre mãe, filha e padrasto poderiam ter contribuído para isso. Mãe e padrasto desgostosos pela escolha do namorado, grávida aos 18 anos, mãe solteira, um rol de interrogações adensadas pelo apagamento da vida desse casal nas memórias da filha, que nada transmitiu aos descendentes sobre os afetos do lar nos primeiros anos de infância. E o facto do casamento se ter realizado em Portugal e não no Brasil, na presença de mãe e padrasto, empresta significado a estas conjeturas.
E aqui chegados, envolvidos neste imbróglio todo, um mundo sem respostas, é tempo de voltarmos a Viseu, ao momento em que deixámos Florinda Correia entregue aos cuidados da «ilustríssima rodeira» em busca de uma «ama». E bem se lembra o leitor que, depois disso, dando um salto no tempo, assistimos ao seu casamento e vimos que, no registo escrito desse ato solene do «sétimo sacramento» ficou dito que ela «foi dada a criar em Castro Daire».
As pontas da meada começam a juntar-se já que a narrativa oral e familiar sempre afirmou isso, ligando Florinda Correia à família AMADOR, uma família muito conceituada na sede do concelho. Havemos confirmar isso mais lá para diante, mas para já digo que dois dos seus membros, a saber, António Amador Seabra e Melo e Mário Amador Seabra Dias, filhos de Ema de Jesus Pereira Amador (que tudo indica era meia irmã de Florinda Correia, por parte do pai) apadrinharam em Cujó, António Pereira de Carvalho Amador e José Pereira de Carvalho, filhos de Salvador de Carvalho, na convicção de serem todos primos.
Posto isto, com a meada ainda bastante enrolada, o tecelão da história, neto do pisoeiro António Tereso, marido de Florinda, vê-se obrigado a juntar todas as pontas soltas que encontrou, com vista a apresentar um tecido digno de ser consumido, ainda que não isento dos defeitos de fabrico ou qualidade do fio. E tal como a tecedeira que, sentada no seu engenho, lança a naveta da direita para a esquerda e vice-versa, a toda a largura da teia que tem armada e ...pum...catrapum... pente à frente, pente atrás, peanha abaixo, peanha acima, a dar comprimento a sua obra, também eu sou obrigado a lançar a naveta do raciocínio entre os anos de 1875 e 1958, com vista a ampliar e esclarecer a teia em que me meteu o meu primo Amadeu Duarte Pereira.
Retorno, pois, a 1875 para ir buscar o nome de Emília de Jesus, a menina solteira que, como bem se lembram, foi pessoa indicada para madrinha da recém-nascida «Felorinda» e vou ao ano de 1958 para, pela primeira vez, trazer o nome de Felismina de Jesus, dita mãe «ilegítima» da Florinda na declaração de óbito feita no Posto do Registo Civil das Monteiras., pelo seu filho (meu pai) Salvador de Carvalho. Assim:
«Registo n.º 285: Florinda Amélia de Carvalho
Posto do Registo Civil de Monteiras
Maço n.º 2
Às quinze horas do dia vinte e seis do mês de Dezembro do ano de mil novecentos e cinquenta e oito, no lugar e freguesia de Cujó, deste Concelho, faleceu de nefrite crónica um indivíduo do sexo feminino de nome Florinda Amélia de Carvalho de oitenta e seis anos de idade, de profissão Doméstica, natural desta freguesia e concelho de Castro Daire, domiciliado no lugar do seu falecimento, filha ilegítima de Felismina de Jesus, natural desta mesma freguesia de Castro Daire, já falecida.
A falecida era viúva de António Tereso, falecido no referido lugar e freguesia de Cujó haverá trinta anos.
A falecida não deixou descendentes ou herdeiros sujeitos à jurisdição orfanológica, deixou bens, não fez testamento e o seu cadáver vai ser sepultado no cemitério de Cujó.
Foi declarante no Posto de Monteiras, às dez horas do dia vinte e sete do corrente mês, Salvador de Carvalho, casado, agricultor, residente no mesmo lugar e freguesia de Cujó.
Este registo, depois de lido e conferido com seu extrato, vai ser assinado por mim, João Duarte de Oliveira, Conservador do Registo Civil e a declaração foi assinada pelo declarante e ajudante do Posto.
A importância dos emolumentos é de vinte escudos e a dos selos devidos pela parte é de um escudo.
Castro Daire e Conservatória do Registo Civil, aos trinta e um de Dezembro de mil novecentos e cinquenta e oito.
João Duarte de Oliveira».
Dito e lido isto, parece-me que foi preciso chegar-se ao falecimento de Florinda Correia, isto é, Florinda Amélia de Carvalho, para percebermos os contornos do seu nascimento, achamento e condução ao hospício, com o «presumido» envolvimento de pessoas bem conhecidas no burgo citadino e, seguramente, conhecidas entre si.
As pessoas indicadas para padrinhos, no bilhete anónimo, um homem e uma mulher, ambos solteiros, eventualmente namorados, compareceram religiosamente ao batizado da criança, sem qualquer notificação administrativa. Ela chamava-se Emília de Jesus e Felismina de Jesus se chamava a mãe da criança, como vimos agora na declaração do seu óbito.
O leitor acompanha-me no raciocínio? Não é preciso ter as «celulazinhas cinzentas» de Poirot para, juntos, concluirmos que se tratava de duas irmãs (ou primas) e que a Emília vendo a Felismina em apuros, conivente com o seu namorado, José Correia Mendes do Rego, correram em seu auxílio. Conhecedores das instituições de assistência existentes e do seu funcionamento, congeminaram tudo, por forma a que, cumpridos os trâmites em uso, a mãe da criança, com conhecimento ou não da senhora rodeira, viesse a ser a ama escolhida. Ambas receberiam as «alvíssaras» prometidas no «bilhete anónimo» e a criança passaria a mamar nos seios da própria mãe. Agindo assim, apesar de pisarem ínvios caminhos, todos os coniventes antecipavam quase um século, aquilo que, em defesa da criança, viria a ser consignado na «Declaração dos Direitos da Criança, de 1959».
E até poderia acontecer que o pai viesse, posteriormente, assumir a paternidade, como acontecia em muitos casos. Parece que não veio a acontecer isso, sendo curioso até que ele (o que julgo ser o pai «natural» da Florinda) tenha casado com outra menina também ela de apelido Jesus. Pelo que, balouçando-me eu na corda bamba da plausibilidade, e não na corda rígida de certezas infundadas, direi que bem pode ter acontecido na altura, tal como acontece hoje e acontecerá sempre, um rapaz namorar duas irmãs, ou primas, engravidar uma e casar com a outra.
Convém, pois saber quem era o pai «natural» de Florinda Correia, isto é, Florinda Amélia de Carvalho, e conhecer o nome e o perfil do «cavaleiro de bela figura».
CONTINUA