E não descuremos também o lugar onde a criança foi deixada e as instruções dadas à «Ilustríssima Rodeira», visando que a «recém-nascida» fosse entregue a uma «boa ama», ação essa pela qual as duas, «rodeira e ama», receberiam «boas alvíssaras».
Com esses e outros cuidados, a menina foi deixada à «porta de um quarto particular, em Viseu, na Ribeira» com os pertences identificadores próprios das crianças expostas (não confundir com «enjeitadas») e o passo a seguir foi levá-la ao «Hospício do Círculo de Viseu», instituição que, nesta cidade e em todo o Reino, veio a substituir as RODAS, que foram extintas em Portugal, entre finais dos anos 1860 e 1888.
Visto e lido esse bilhete, vejamos agora a GUIA DE ENTREGA no Hospício e os respetivos dizeres, que, diferentemente do «Bilhete», estão escritos em letra escorreita e sem erros. O Administrador do Concelho deixou provas de manejar bem a pena. Assim:
«Administração do Concelho de Viseu
Guia N.º 132
Vai ser entregue no Hospício do Círculo de Viseu uma menina recém-nascida, que apareceu, pelas 6;30 horas da noite de ontem, exposta à porta de um quarto da casa de José Joaquim António, tamanqueiro, da Ribeira, onde mora António Nunes, casado, carpinteiro, da Ribeira, freguesia Oriental de Viseu. Foram-lhe encontradas 3 camisas novas de morim, 1 saia branca, 1 de riscado velha, 1 casaco de baeta velha branca, 4 lenços, três brancos e um de seda amarelo velho. A menina traz no braço esquerdo 16 contas azuis enfiadas num cordão. Um bilhete que vai junto a esta, dentro de uma bolsa de seda verde escura.
É condutora da menina Leonor Augusta, casada, da Ribeira, freguesia Oriental, a qual tem de ser paga a gratificação de 120 réis.
Viseu 29 de Outubro de 1875
O Administrador do Concelho
João Ribeiro Nogueira Ferrão
Nota: «Florinda Correia
Pag. 120
Lançada ao livro 30.º do hospício a fls. 79»
Na presença deste documento ficámos a saber que a menina «exposta» e os pertences que junto dela foram deixados, estava entregue no Hospício. Que ela não foi abandonada na rua, mas sim «à porta de um quarto de casa» particular e que a pessoa incumbida de a transportar até ao destino foi Leonor Augusta, casada, da Ribeira, freguesia Oriental, a qual tem de ser paga a gratificação de 120 réis».
Temos assim a identificação de todas as pessoas relacionadas com a ação humanitária que envolve a recolha no Hospício de uma recém-nascida de progenitores desconhecidos. E se os nomes constantes nesta «Guia» não nos despertam qualquer interrogação, o mesmo não acontece com aqueles que ficaram registados no «bilhete» encontrado nos pertences da menina, a lembrar: o nome do padrinho, José Correia, de quem ela recebeu o apelido, e o da madrinha «Emília de Jesus» à qual retornarei em devido tempo, pois parece-me, desde já, que nenhuma destas pessoas estaria inocente, relativamente à «exposição», à recolha e ao «encaminhamento» da menina para o Hospício. Nisto tudo, parece-me que inocentes não eram nem os adultos nem as instituições pilares do regime político vigente. Elas serviam esse regime e autosustentavam-se com os comportamentos sociais em que só as crianças «expostas» eram, verdadeiramente, inocentes. (*)
Feito o respetivo registo, numa sociedade «católica, apostólica e romana», se o sacramento do «matrimónio» andava pelas ruas da amargura, decorrendo daí a necessidade da recolha das muitas crianças expostas, primeiro nas Rodas e depois nos Hospícios, o mesmo não acontecia com o sacramento do batismo, o primeiro de todos eles. E se o matrimónio (o sétimo) era coisa de adultos, se a Igreja não tinha mão na bastardia a eito praticada por nobres, reis e príncipes, se os Abades tinham as suas amásias e aos filhos "naturais" chamavam afilhados, se as festas e romarias religiosas proporcionavam encontros amoros de namorados e de outros ocasionais, em resultado dos quais apareciam muitas crianças sem pai passados nove meses, a Igreja, dizia eu, se nisso não tinha mão, impunha, categoricamente, a realização solene do batismo. E foi assim que, mal a criança chegou ao Hospício, se deu cumprimento imediato a esse preceito e, ao mesmo tempo, se cumpriu, religiosamente, o que estava escrito num bilhete anónimo. A criança foi conduzida à Catedral onde o Pároco José de Abreu Castelo Branco a baptizou, conforme manda a Santa Madre Igreja. Assim:
«Aos trinta dias do mês de Outubro de mil oitocentos e setenta e cinco, nesta Catedral de Vizeu, baptizei solenemente um indivíduo do sexo feminino a quem dei o nome de Florinda Correia, que entrou em o Hospício desta cidade no dia vinte e nove do dito mês, recém-nascida. Foi padrinho José Corria Mendes do Rego, caixeiro e madrinha Emília de Jesus, ambos solteiros, moradores nesta cidade, os quais sei serem os próprios. E para constar lavrei em duplicado este termo que assignei.
Era ut supra
O Parocho José de Abreu Castelo Branco
Cumpria-se assim o primeiro sacramento da Santa Madre Igreja. A partir daqui, a criança exposta podia enfrentar o mundo. Mas para isso era preciso que a «Ilustríssima rodeira» encontrasse primeiro uma «boa ama», cientes ambas de que receberiam «boas alvíssaras» pelo religioso zelo demonstrado.
______________
(*) Esta minha asserção tem respaldo no trabalho levado a efeito sobre os “EXPOSTOS EM CASTRO VERDE-1887-1899” por Marta Páscoa, editado em 1998, onde diz explicitamente:
“Das 144 crianças estudadas, 56 foram encontradas por amas ou por um seu familiar, o que dá uma percentagem de quase 39 % (…) Sabemos, por exemplo, que Manuel Joaquim Lagartinho era marido da regente do Hospício, Christima Maria e que muitas crianças foram encontradas por ele”. (pp. 44) (..) “em quase todos os casos há uma proximidade entre os sítios de encontro da criança e o local de residência da ama e/ou prximidade entre a ama e a pessoa que encontra a criança, que às vezes é ela própria”. (pp. 55).