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sábado, 24 junho 2017 13:28

CONTO DOMÉSTICO - 3

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TERCEIRA PARTE

Estávamos no ano de 1986 e, ao tempo, se não sabeis, digo-vos agora mesmo, não havia ainda saneamento básico na aldeia, nem abastecimento de água ao domicílio. Não fazia mal, cá o Abílio viu o fontanário público por perto, pelo que com água próxima e uma fossa séptica resolvia a situação até que essas marcas da civilização chegassem à povoação sita a dois quilómetros da sede do concelho. Ela que, por sinal, sofria de igual carência.

 

Dera-se, havia poucos anos, o 25 de abril e anunciava-se para breve a chegada dessas melhorias civilizacionais. Isto em pleno século XX, senhores, em Castro Daire, em todo o concelho e arredores, para não dizer em Portugal inteiro. E venham cá dizer-me que "antigamente é que era bom". E dizerem-me isso não é assim coisa tão rara, mas, aos que mo dizem, eu espeto-lhes com esta merda na cara. Ademais, a minha mulher, professora como eu,  foi nada e criada num monte alentejano e estava habituada, tal como eu, na minha aldeia de Cujó, a irmos à fonte para termos água em casa. E a ter de fazer isso, seria temporário, pois o projeto camarário estava em marcha e, mais dia, menos dia, a sua execução ali chegaria.

1A-FRENTEHavia, pois, que arriscar. Negócio feito, foi tudo a eito. Perto de dois anos em obras e cuidados. E para abreviar a narrativa, dispensando-me de fazer contas (quem sabe ao certo o investimento físico, anímico, mental e monetário que se faz numa obra?) vou fazer de conta e à maneira do Zorro que chamava o seu Tornado com um assobio, melhor dizendo, à minha maneira de pastor, habituado que fui na serra a juntar os lábios e assobiar ao gado, ou simplesmente para me entreter, prático em tal arte, dei um assobio e apareceu o dinheiro para pagar a casa no estado em que estava e a escritura que a fez mudar de dono. Dei outro assobio e chegou um empreiteiro e o dinheiro para lhe pagar o ajuste da obra, segundo o projeto que lhe apresentei, feito por mim, com a prática e jeito que tinha a manejar o compasso, a régua e o esquadro.

Mas, claro está,  antes de construir, houve que destruir, que demolir. E nem queiram saber o trabalho que foi tirar o velho barrete à casa: as telhas, a armação, as traves, os caibros e as ripas, de mistura com nuvens pó e de fuligem. Desfazer as divisões de tabique, arrancar o soalho, as traves e os caibros de castanho onde  ele assentava. 

Nessa azáfama, ele era o roncar da motosserra a traçar as traves com métrica assinalada, por forma a que dos troços de madeira velha se pudessem fazer os aros das portas novas e as escadas. Ele era o pé de cabra a arrancar pregos e cavilhas, daqueles que, bem se via, tinham saído da craveira da forja de ferreiro próximo. Ele era o acamar das telhas partidas a servirem de entulho para nivelarem as lojas das vacas e porcos, outrora cheias de carquejas, excrementos e estrumes para as terras. Ele era o derrubar as paredes necessárias por forma a adaptar os espaços às suas novas funções. Ele era a deslocação para o quintal dos materiais aproveitáveis, espaço onde aguardariam a reciclagem. Ele era o suor a correr pelo rosto dos operários ao serviço do empreiteiro que era o primeiro a suar na companhia deles. Ali trabalhava-se. E trabalhavam todos. Ele era o palavrão e a praga instintivas proferidos ao mais pequeno percalço de trabalho. Sobretudo e frequentemente a palavra que rima com esta, ou seja, para quem lê, o meu apelido sem V, que é o sítio para onde me apetece mandar, sem qualquer urbanidade, todo o citadino que, no seu pedestal urbano, olha com sobranceria a ruralidade. E vem a talhe de foice, para esses tais, apetece-me armar em burro e dar um valente e seguro coice à sua manifesta incultura e desumanidade. Com ferradura e tudo. Com ares de superioridade eles ignoram a valentia e a heroicidade de todos os que, contrariando a maré da migração,  a eles se deve estarem de pé as aldeias e poviléus da nação, em grande parte desertificada.  E trago à colação um texto que publiquei em 2011 relativo à «Influência da Cultura Clássica na Cultura Portuguesa» . Falava do regresso de Ulisses à sua pátria Ítaca e do convencionalismo que constituiu a espinha dorsal de toda a poesia bucólica renascentista, essa obra de cortesãos saudosos das belezas do campo. Cortesãos que, «à semelhança dos turistas atuais, cansados dos tormentos da vida citadina, dos grandes burgos, para desenfastiar saem deles em férias mensais ou fins de semana, e, chegados ao campo, extasiam-se, embasbacados, com a paisagem rural, com a arquitetura de aldeias exóticas, gente bisonha, com as hortas, leiras e vinhas que atapetam os vales ou, a muito custo, vencem os socalcos das encostas, sem eles, citadinos, terem a menor ideia de que as formas e as cores dessas telas rurais, tão divulgadas hoje, nas páginas dos livros, jornais e folhetos  turísticos, estão indissoluvelmente ligadas ao estrume dos animais, aos calos das mãos do pintor e ao suor do seu rosto».  Mas, dado o coice, patas no chão,  prossigamos a caminhada. Retornemos ao trabalho dos pedreiros, essa gente camponesa trabalhadora, gente honesta e sã que profere a imprecação e a praga sem maldade alguma nelas contido. Naquele afã, valia haver ali, um quintal espaçoso, bem diferente de uma quintã, com acesso amplo pelas traseiras, e lá se poderem empilhar as madeiras e demais materiais de construção velhos e novos. Uns a sair e outros a entrar. Um reboliço, tudo isso.

1-TRASEIRASE vieram os invernos. Dois. E veio o frio e a necessidade dos pedreiros fazerem fogueiras para se aquecerem, ali mesmo abrigados dos ventos pirenaicos carregados de carujo. Lenha não faltava. Com autorização minha arderam ali tábuas de forro partidas, alisares canelados, arrancados a pé de cabra, ripas do tabique e tudo o que a reconstrução dispensava. Retirado todo o miolo, o que restou da velha moradia foram as paredes mestras interiores e exteriores. Mais nada. Vista assim, sem teto, janelas e portas sem guarnição, todas aquelas aberturas pareciam os olhos e a boca de uma caveira a aflorar da terra. No silêncio da noite (eu acompanhei as obras noite e dia, pois era ali a minha nova moradia) aquela peça de esqueleto, despida de músculos e de vida, como se fosse gente, pedia, com clemência, para lhe mudarem aparência, rapidamente. E tê-la-ia.

Retirada a parede dos fundos que separava as duas lojas das vacas, com entrada e saída separadas para o pátio, aberto um portão para o Largo S. João, esse amplo espaço fundeiro foi convertido em garagem e na sua cabeceira uma banca de trabalho, com martelos, alicates, serrotes, chaves de fenda e mais ferramentas que não raro tomam o lugar do giz e da caneta, nas mãos de quem entende a tenda. Atrás de si um sítio de arrumações. O Escada1espaço da adega foi mantido com acesso ao logradouro do quintal, nas traseiras,  acesso à rua da frente que sempre teve e acrescentou-se uma porta de ligação à garagem que não existia. 

O soalho deu lugar a uma placa e sobre ela se levantaram as paredes de tijolo que separam as divisões condicionadas,  à partida, pelas janelas pré-existentes com as respetivas seixas. À casa primitiva somou-se uma segunda placa, destinada a "águas furtadas"  com quartos para dormir e casa de banho completa.

E com mais um assobio meu apareceram as escadas que lhe dão acesso, a partir do hall de entrada. A fotografia que aqui se junta, como ilustração (tal como as anteriores, sem explicação)  foi tirada já depois da reconstrução e nos degraus vemos em decoração pequenas esculturas africanas, compradas numa das Feiras de S. Mateus, em Viseu. E o homem de bigodinho e bengala não precisa apresentação. Na parede, ao lado, a acompanhar a subida, dentro de caixilhos, as fotos da família: pai, mãe e filhos. E ao lado esquerdo as fotos de dois castanheiros centenários, lorcados, pois o cerne foi-se em castanhas. E escondida dentro das paredes, ficou a canalização pronta a receber a água quando a distribuição chegasse ao domicílio, semelhantemente ao sistema elétrico, tomadas, interruptores e pontos de luz no sítio. 

VARANDA-JANELAS-E as grades das varandas e janelas que não entraram no orçamento ajustado? Mais um assobio e a grade de ferro forjado que existia numa comprida varanda da vila de Castro Daire, na casa onde em 1949/50  funcionava o Posto Policial, tal como mostra uma fotografia publicada no ORÇAMENTO MUNICIPAL editado pela Câmara, em 1951, voou dali para uma oficina de serralharia, onde foi retalhada à medida dos novos sítios em que seria aplicada. Modelo antigo em ferro forjado. E as grades das janelas do mesmo quilate a condizerem com a obra em restauro, e com o gosto dos novos donos, ambos formados em HISTÓRIA?  Essas vieram de Viseu onde eu as fui procurar e tive a glória de encontrar num vendedor de ferro velho. Foi isso mesmo. Entre tanta obra de arte de ferro forjado, ali amontoada a esmo, saída das forjas da região, sei lá se da tenda de mestre Malho tão falado por Aquilino Ribeiro, com curvas e contracurvas cravejadas, rematadas nas pontas com a simbólica flor-de-lis em chumbo fundidas, ali estava aquilo que eu procurava, aquilo que, chagado de ferrugem, de velho volveria a novo, de inútil volveria útil, de morto ressuscitaria. Levanta-te Lázaro e anda! E levantaram-se e andaram quilómetros em cima da bagageira de alumínio improvisada sobre a capota da Dyane, a viatura que jamais se negou a dar conta do recado. Uma sacrificada. Nessa altura o acesso à aldeia, na subida até ao Largo da Capela, hoje Largo S. João, era um caminho estreito de carro de vacas, chão calcetado à maneira rural. E a Dyane, coitada, sempre fiel, foi obrigada a gatinhar todo esse trajeto, mais adequado aos trilhos dos carros de vacas do que às rodas de pneus de automóveis, por modestos que eles fossem. (Continua)

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.