As ombreiras e torças (padieiras) das portas e janelas eram em cantaria lavrada e por elas se aquilatava a largura das paredes, a rondar os 70 centímetros. Largura bastante para os ratos se passearem dentro delas e nelas fazerem ninho, procriação e celeiro. As cascas das castanhas e das bolotas a espreitarem nas frinchas entre pedras denunciavam a olho nu que bem se justificava a "gateira" aberta em arco redondo, na base de uma ou outra porta, a dar livre trânsito aos gatos domésticos e caçadores. E nos buracos das paredes não se escondiam somente os ratos e os alimentos que eles surripiavam aos hospedeiros. Os buracos eram também cofre recatado e precatado dos senhorios e senhorias. E isso se viu quando, durante a limpeza para fazer o rústico, de lá saiu, caiu e se ouviu «tlim...tlim...tlim», o som identificador de dinheiro a bater no cimento. E mesmo quem tivesse apurado dom acústico, só depois de ter a moeda na mão veria tratar-se de um cruzado de prata de D. Maria I, do ano de 1795, tempo de realeza. No anverso tinha cunhado o valor de 400 reis, o escudo, o nome da Rainha e a data. No reverso a Cruz de Cristo e a histórica legenda "IN HOC SIGNO VINCES".
Janelas de guilhotina, vidros partidos e caixilhos com pústulas visíveis de tintas queimadas e velhas, ali estava ela havia anos à venda sem aparecer quem a comprasse. Coisa estranha essa. Assombrada não deveria estar, não, pois à sua frente tinha S. João, atento e firme, no altar da sua capela.
Um grande portão de castanho, com duas folhas, uma delas com fechadura e aldraba argolada de ferro, dava acesso a um pequeno pátio, donde subiam duas fileiras de escadas, uma fileira de cada banda, até uma varanda de pedra resguardada por grade de corrimão e balaústres de madeira.
A porta principal da varanda dava para um corredor assobradado aberto a todo o comprimento da moradia. Nele desembocavam as portas de todas as demais divisões laterais, também assobradadas, que se estendiam do princípio ao fim, seja, os quartos de dormir, os espaços de arrumações e outros necessários à vida de lavradores e gentes de lides camponesas. As divisões desses espaços eram feitas de tabique, que vem a ser barrotes de madeira a pique e ripas atravessadas, tudo revestido com massa de barro misturado com palha ralada e cal. Um luxo doméstico, pois na maior parte das aldeias serranas tais divisões faziam-se com tábuas de forro devidamente acasaladas, graças ao "cantil" e ao "guilherme" dos carpinteiros que as faziam macho e fêmea conforme as necessidades da obra. O mesmo para as tábuas do soalho.
A meio do corredor, do lado esquerdo, ficava a "casinha" com um assento de madeira que tinha ao centro, recortado em círculo, um buraco, onde se sentava criança e adulto, senhora e senhor, o analfabeto e o culto, quando cada qual necessitava de expelir do corpo - rua - os sólidos, os líquidos e os gasosos que o organismo rejeita para saúde sua. Isto escrito em estilo perifrástico, pois se fosse dito pelo camponês que ignora o suco gástrico que circula nas volutas cerebrais do escritor, diferente do que circula nas suas volutas intestinais, dizia sem mais, sem hesitar: ali, onde se ia cagar.
Por baixo, nas lojas, estavam a habitar os animais, os indispensáveis companheiros de trabalho de todos os que vivem da terra, sejam proprietários, enfiteutas ou rendeiros. Sim, a terra estrumada com excrementos de animais e gentes, terra semeada ou de pousio, já foi, no arco da história humana, a principal fonte de riqueza e tabela de estatuto social.
Esta casa de que vos falo, foi moradia de gente rica, pessoas de muitos teres e haveres da aldeia, de muitos bens aos luar, nomeadamente terras de semeadura e de pousio, de montes e de pinhais, a que se juntava uma cadeia de moinhos no Rio Paiva, a montante da Ponte Pedrinha.
Gente crente, Católica, Apostólica e Romana. Nas paredes de taipa marcavam presença duas gravuras antigas. Uma da Nª Senhora dos Remédios, em Lamego e outra de S. Cândida, Moimenta da Beira. Em bom estado de conservação, nesse estado foram religiosamente preservadas, com tratamento moderno dos caixilhos de madeira, não fossem as térmitas corroer esses ilustrados documentos históricos.
Gravuras a preto e branco, legendadas no rodapé, essas legendas mostram bem como os responsáveis pelos templos faziam pela vida. Ora leiam, tresleiam e compreendam. Comecemos pelo texto relativo à imagem da Senhora dos Remédios.
NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS
QUE SE VENERA NA SUA REAL CAPELLA JUNTO Á CIDADE DE LAMEGO, TOMADA SOB A REAL E EMMEDIATA PROTECÇÃO DE SUA MAGESTADE EL-REI O SENHOR DOM PEDRO V, POR ALVARÁ DE 30 DE NOVEMBRO DE 1858.
O EXMº RVº SNR. BISPO DE LAMEGO CONCEDE 40 DIAS DE INDULGÊNCIA A TODOS OS QUE NA PRESENÇA DESTA IMAGEM REZEM DEVOTAMENTE HUMA AVE MARIA PEDINDO PELO BEM DA IGREJA E DO ESTADO.
Pois, quem é que não comprava a IMAGEM para beneficiar dos 40 dias de «indulgências» concedidas pelo Bispo de Lamego, rezando na presença dela? Por essa razão chegou e permaneceu em Fareja, desde não se sabe quando. Mas seguramente só depois de 1858, exatamente cem anos antes de eu assentar praça no RI.14 em Viseu.
E assim é, também, o de S. Cândida, que difere da primeira por estar escrita em letra cursiva. Assim:
S. CANDIDA
VERDADEIRA IMAGEM DO VENERÁVEL E MILAGROSO CORPO DE SANTA CANDIDA, VIRGEM E MÁRTIR POR CUJA INTERSECÇÃO OBRA DEUS IMENSOS PRODÍGIOS, O QUAL SE VENERA NA VILLA DE MOIMENTA DA BEIRA NA CAPELA DE CAETANO ALEXANDRE DA FONSECA PINTO DE ALBUQUERQUE, FIDALGO DA CASA DE SUA ALTEZA REAL E PRINCIPE REGENTE, NOSSO SENHOR E CAVALEIRO DA ORDEM DE CRISTO.
Idem, idem, aspas. O Fidalgo da Casa Real, CAETANO ALEXANDRE DA FONSECA PINTO DE ALBUQUERQUE, com nome e apelidos a condizer com o seu estatuto de Cavaleiro da Ordem de Cristo, sabia que vender a «gravura» rendia para a sua capela privativa.. E por isso ela também chegou a Fareja, onde foi e é preservada.
Casa herdada dos seus avoengos, as últimas senhoras donas dela, antes de a transmitirem aos seus herdeiros, eram alcunhadas de PRECATADAS, mas de seus verdadeiros nomes, uma chamava-se Adelaide e outra Cândida. Solteiras, não sei se «virgens», «mártires» não foram, seguramente, ainda que se justifique a devoção pela Santa da qual uma delas tinha o nome e cuja gravura deixaram para a posteridade pendurada numa das paredes. Eram isso sim, senhoras endinheiradas, pois toda a gente das redondezas as conhecia por emprestarem dinheiro a juros.
Elas, enquanto vivas e donas disto tudo, com criadas domésticas e assalariados nos campos, passearam-se por aquele soalho de castanho, vezes sem conta, ano após ano, a rodaram os trincos das portas de madeira almofadadas e ornamentadas com as ferragens, de espelhos terminados em flor-de-lis ou cabeça de víbora. Passearam por ali os seus vestidos compridos e rodados, à moda do seu tempo, (ver foto ao lado) e a romperam os chinelos na varanda onde agora se pavoneavam galináceos, como donos e senhores. Mudam-se os tempos, mudam-se os valores. Um regalo, ali, agora as galinhas punham os ovos a esmo e ali cantava o galo, já que por conta deste gado asado estava mesmo a vivenda inteira: as lojas, a varanda e o sobrado. Só lhes estava vedado o espaço da adega, pois essa, com porta defronte à capela de S. João, manteve-se intacta com barris e pipas em linha. Ali se guardava ainda o produto da vinha que restava da ramada encostada às traseiras da casa (ver foto acima) ou em bardos aramados em esteios de granito, no quintal das traseiras e outras terras em redor dos sucessores, herdeiros e herdeiras.
Como disse acima, um dia cheguei ali com a minha mulher e perguntei a quem pertencia aquela casa de pedra, naquele seu mau estado. Foi-me indicado o nome do proprietário que estava ausente na Inglaterra e logo pela sua esposa diligente me foi mostrada por dentro e por fora.
Observámos, mirámos, remirámos e assentámos que restaurada e melhorada, de corpo e alma transformada, sim senhores, tornar-se-ia a residência condigna do casal de professores recém-chegado a estas bandas, vindo do Alentejo.
Fechámos negócio.
Não perguntámos a ninguém a razão por que aquela moradia que estava à venda já ia para sete anos, não aparecia ninguém para a comprar. Não falámos de fantasmas, em casa assombrada, nem tão pouco de almas penadas, pois com penas ou prontos a depenar, não faltavam ali galináceos e respetivos carimbos de propriedade dispersos por tudo quanto era chão e poleiro. E se coisas estranhas havia, ligadas à casa, delas nada sabia quem de longe chegava, como era o nosso caso.
Negócio feito, escritura lavrada na Conservatória do Registo Predial de Castro Castro Daire, servidões de acesso garantidas pela frente e pelas traseiras, quintal e logradouro espaçosos, parreiras encostadas às paredes das traseiras, aquilo, para quem tem uma noção concreta do espaço, prometia, em abstrato, vir a ser uma excelente moradia com todas as condições dignas de nela se viver. Um excelente espaço de habitação, de agricultura e de lazer. Terra livre bastante para jardim, batatas, morangos, salsa e coentros. O Alentejo, o dito celeiro do pão, tinha ali chão.