«(...) O Papa não é o senhor civil ou temporal de todo o orbe, falando de domínio e poder civil em sentido próprio (...) ainda que os infiéis não queiram reconhecer domínio algum ao Papa, nem por isso se lhes pode fazer guerra, nem tomar seus bens»(2).
O Renascimento era, com efeito, o regresso aos tempos antigos, com todas as suas consequências positivas e negativas. De facto, os Romanos, tendo chegado à P. Ibérica no ano 218 a.C. e saído em 409, depois de Cristo, foram vencidos pelos Bárbaros e estes, os Visigodos, vencidos pelos Árabes. Entre a saída dos Romanos e o Renascimento passaram cerca de mil anos. Só ao fim desse tempo é que os letrados laicos beberam livremente a cultura greco-latina.
E deixando, por agora, as influências que esses estudos exerceram nas instituições políticas e judiciais, é sabido que os humanistas, no âmbito da cultura, logo estabeleceram a diferença entre «artes liberais» e «artes servis».
Bem podes, pois, pedir-me, a mim, Paivatea, divindade que os homens e o tempo apearam do Panteão Ibérico, para dar-te, não verbo eloquente para «cantares as armas e os varões assinalados», mas verbo simples para, em prosa-chã, lembrares os usos, costumes e tradições do povo iletrado ou semi-analfabeto, povo onde não deixarás de encontrar algumas marcas da herança clássica já que, assim como a semente lançada no campo, mais cedo ou mais tarde, germina, também ela merece emergir da alma camponesa onde foi lançada ao longos dos tempos e florir, agora, no campo das letras e da Cultura. Usos, Costumes e Tradições que, forçados, embora, a mudar de feição e ataviados que foram com adornos cristãos por força dos valores e interesses dominantes, algo terão a ver com Fenícios, Gregos e Cartagineses e, mais vincadamente, com cerca de sete séculos de dominação romana. E que, não obstante os mil anos de silêncio institucional que se seguiram à queda do Império dos Césares, aberta ou disfarçadamente permaneceu na alma dos povos como resquício da caminhada que latinos e peninsulares fizeram juntos. Caminhada em que fundiram sangue e cultura. Caminhada durante a qual a experiência da vida era a «madre de todas as coisas», experiência sempre ilustrada com adágios oportunos e pedagógicos.
Mas voltemos ao tema inicial, pois dou-me conta de estar a afastar-me. E se foram alguns dos burgueses letrados, saídos do povo, que arrancaram dos Mosteiros e Abadias as relíquias greco-latinas, legítimo é aceitar que ao fazê-lo, sobretudo os que não se envergonhavam das suas origens, estavam tão só a divulgar e a dar estatuto de nobreza ao saber retalhado que, durante gerações, hibernou ou, então, à espera de tempos mais favoráveis, se manteve timidamente na memória das comunidades camponesas, aflorando aqui ou além em manifestações culturais que não tardariam a receber o epíteto de «folclóricas» de mistura com resquícios do paganismo.
Procura o saber clássico historicamente pouco rigoroso, difuso e partilhado que se arrastou durante toda a Idade Média, entre o povo, sob a capa de uma sátira, de uma canção de gesta, numa romaria, numa festa religiosa ou em folguedos de ocasião. Isto, quando o saber contido nos autores clássicos não era mal interpretado e ou distorcido, chegando ao povo, através dos monges...
«Como figuras alegóricas de verdades cristãs, em especial Virgílio, quase convertido em profeta de Cristo. O próprio Ovídio, o mestre da sensualidade amorosa, foi «moralizado», isto é, interpretado como alegoria moral»(2).
E convém não esquecer que...
«Nos meados do século X, Odo, abade de Cluny, experimentou esta visão: um vaso de prodigiosa beleza apareceu-lhe inundado de serpentes. A alegoria explicava-se deste modo: o vaso representava Virgílio e os encantos da sua arte, as serpentes significavam a doutrina aliciante e perigosa dos poetas antigos»(3).
Vistas as coisas assim, eu, Paivatea, em verdade te digo, como vais embrenhar-te na floresta onde se albergam as influências clássicas e cristãs na cultura portuguesa e através duma vereda tortuosa, pouco vincada, cheia de silvas a barrarem-te a passagem. Dou-te um conselho. Vai! Mete-te no meio do povo, observa o que ele faz, as técnicas que utiliza para sobreviver, os rituais que pratica, vai às festas e romarias, atenta nas suas atitudes e comportamentos quotidianos, não descores do conceito de família, o papel da mulher na sociedade, descortina os princípios orientadores da educação, lê e ouve os poetas populares, vai às bibliotecas, às tavernas, aos bares, às discotecas, às eiras, e não deixarás de encontrar algo do que procuras. Não explores tudo, que isso daria para uma enciclopédia de vários volumes. Não defendas tese direccionada, compacta, consequente. Mas faz alguma coisa. Traz à mesa da reflexão dados polémicos, contraditórios se necessário, pois estarás a contribuir para o esbatimento do...
«fosso entre o Portugal histórico e o Portugal quotidiano, que faz com que o Português pertença simultaneamente a duas pátrias diferentes e, embora, sendo ambas Portugal, não se sinta, no íntimo, contemporâneo nem de uma nem de outra, mas órfão das duas»(1).
Entretanto, pelo caminho, ri e faz rir. Confronta a mentalidade da Idade Média com a mentalidade clássico-renacentista e posterior. Não receies assumir o papel do bronco Estrepsíades e bater, sem maneiras, à porta do luso pensadoiro e dizer o que pensas, mesmo fora de portas. Se alguns dos pensadores-lusos se mostrarem escandalizados contigo, faz pior ainda: levanta o braço, mostra-lhe o dedo médio (com o indicador e o anelar dobrados), como fez Estrepsíades a Sócrates quando falavam sobre o dactílico(2). Não receies, como ele não receou, que o teu trabalho, ribombando entre as nuvens, visto pelas divindades do saber, seja comparado a «um bom par de peidos»(3). Não receies ser o campesino bobo da corte, o vaqueiro vicentino, não receies receber «sete repelões (...) à entrada», pois bem pode acontecer que, face ao monólogo periférico que na História e na Cultura assumes, sejam outros, que não tu, a dizerem embasbacados:
«Mas está feito, está feito;
e se se for a apurar
já que entrei neste lugar
tudo me sai a proveito:
Té me regala ver cousas
tão formosas
Que me fico parvo a vê-las»(4)
E à circunspecção das universidades, e académicos, à austeridade medieval dos Mosteiros e Abadias, ao «vale de lágrimas» e símbolos conexos, espalhados por templos e lares, tão apregoados e divulgados no sentido de levarem as pessoas a aceitarem passivamente o sofrimento e a dor, contrapõe o riso de Aristófanes, o sarcasmo de Gil Vicente.
«Ao capuz, ao toucado característico da mentalidade medieval traduzido na pintura e na escultura, capuz que remonta à noite dos tempos, pois o capuz medieval não é mais do que a romeira com capucho dos celtas, nossos antepassados»(1).
Abílio/1995-96