SAGRADA FAMÍLIA
Em menino, não sei bem precisar a idade, fui atacado por uma espécie de eczema atrás de uma das orelhas que me incomodada sobremaneira. Um vermelhão com pontos brancos era a parte visível e os seus efeitos uma comichão dos diabos.
O meu pai era entendido em coisas de medicina e não atinava com os pós e as pomadas que, ao tempo, estariam disponíveis nas boticas, certamente. Não acreditando ele em rezas, benzeduras e mezinhas, caseiras, a minha mãe, à socapa, levou-me à tia Rosa Abadinha, especializada nesses saberes tradicionais e à minha tia Leonor (casada com o meu tio João Beioco) que, tanto quanto é da minha lembrança, fez uma cercadura em torno da zona afetada com tinta azul E disse as palavras mágicas do costume, certamente com padre-nossos e ave-marias, pelo meio. Mas o mal não passou e eu continuava com o meu sofrimento. Nem queiram saber o que uma criança sofre quando um mal desse o ataca e logo atrás de uma orelha
.Deve ter sido por isso que o meu pai, amigo dos médicos e farmacêuticos de Castro Daire, resolveu levar-me à vila. E aproveitou a ida à sede do concelho de dois irmãos que viviam perto da Eira da Fraga, que tinham uma burra e eu podia fazer parte do caminho de ida e de regresso a cavalo. Era o tio Manuel Cachopo e a sua irmã tia Mabília, ambos solteiros a viverem sob o mesmo teto, pessoas tão simpáticas quanto solitárias.
O tio Manuel Cachopo era de poucas falas, mas com um sentido de humor apurado. Contava anedotas sem fim e eu prendia-me a ouvi-lo. Nunca me esqueci de uma analogia por ele feita aquando do nosso regresso à aldeia, no dia que fomos juntos a Castro Daire. Não sei porquê, a estada na vila foi mais demorada e a noite começou a cair-nos quando já tínhamos passado Ferejinhas, logo a seguir a Lagoa, o Chão do Irão, a Fonte Fria e, quando chegámos ao Fragão, donde já se avistava Cujó, era noite escura. Dalí começámos a ver-se as primeiras luzes das moradias a espreitarem pelas janelas. Luzes mortiças das candeias a petróleo, pois a eletricidade era um milagre do porvir.
Nesse sítio, indo a tia Mabília montada na burra, eu sentado no colo dela e o Tio Manuel Cachopo tangendo o animal, mal lobrigámos as luzes da aldeia, ele disse naquela sua voz calma e de santo homem, como que cheia de surpresa e espanto: "será Belém!".
Pequeno como era, na altura eu não entendi a analogia. E estranhei que ele não soubesse o nome da aldeia que tínhamos pela frente, pois até eu sabia que era Cujó. Viria a entendê-la mais tarde, pois, naquela minha ingenuidade de menino, ficou-me na memória inscrita a escopro de canteiro. Só uma pessoa de espírito, num quadro humano e rural assim, podia fazer da sua irmã a Virgem Maria, de mim o Menino Jesus e de ele próprio o São José. Os quatro íamos a caminho da terra natal, como a Sagrada Família ia a caminho de Jerusalém, fugidos ao Rei Herodes.
E vem tudo isto a propósito de JOSÉ ANTÓNIO CACHOPO, seguramente um parente ou ascendente de Manuel Cachopo, sabe-se lá fugido de quê, ter passado pela Cadeia de Castro Daire, vindo da Cadeia de Lamego, sem que o auto de prisão, lhe atribua qualquer crime. Ora vejam:
«Aos dezoito dias do mês de Novembro de mil oitocentos e cinquenta e três, pelas sete horas da tarde, entrou nas Cadeias desta vila o preso José António Cachopo vindo das Cadeias de Lamego acompanhado do oficial de diligências José Lourenço e disse que era solteiro natural do lugar de Cujó , filho de António Joaquim e de Joana já falecida. Que tinha de idade quarenta e oito anos e os sinais são os seguintes = rosto redondo, cor trigueira, barba preta, cabelo preto = e fica à ordem do Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito.
O Carcereiro
José Ignácio Costa
Nota à margem direita: "Foi mandado pôr em liberdade a 20 do dito mês de 9bro. Por ordem do Exmo. Sr. juiz".
Entrou a 18 e saiu a 20. Não foi preso por coisa grave, seguramente. E, tal como o tio Manuel Cachopo, (o São José da minha narrativa de infância) que eu sempre admirei pela bondade e humor que espargia em seu redor, senti por este JOSÉ ANTÓNIO CACHOPO, preso em 1853, uma certa admiração. Fosse pelo que fosse, o seu nome, associado ao nome da minha terra natal - CUJO - ficou registado num livro. Ficou para a HISTÓRIA, ao contrário de tantos outros que ali nasceram, viveram e morreram sem deixarem rasto. Não fora a sua certidão de nascimento e a certidão de óbito e nunca eles, homens e mulheres, teriam existido.