BUROCRACIA, 2 (*)
Depois do trabalho, o estudo.
Depois do estudo, o trabalho.
Num só dia eu faço de tudo
Num só dia apanho e malho.
Lutando para ser o que não sou, seguindo a natural tendência que só agora se concretizou, trabalho e estudo ao mesmo tempo. E, contra a vontade dos chefes, misturo artigos, decretos-leis, despachos, expediente de secretaria com sonetos, redondilhas, poesia, batalhas, dinastias de reis, nobreza, clero, escravos, magarefes, literatura, história, filosofia, matemática, química, ciência e grandes correntes do pensamento.
Sou um estudante trabalhador, não gosto da burocracia! E, porque antes não pôde ser, tive de esta opção tomar já fora da idade escolar. A sabedoria dos carimbos quis deixar aos burocratas, ciosos de um saber recheado de ofícios, despachos, publicações nos diários oficiais, circulares e notas confidenciais dos chefes zelosos e «normais» sobre os subordinados rebeldes e não capachos.
Férias, praia, lazer, onde estão?
Cansado sim, mas não vencido, a vontade serve-me de aguilhão à recuperação do tempo perdido. E lá foram o primeiro ciclo, o curso geral, o complementar, a universidade, tudo de seguida. Todos me consumiram anos de vida sem de cábulas e cunhas me servir. A minha luta não foi inglória. Estudei a economia, a ordem social dos humanos e dos símios. Casamatas, palácios, mosteiros, templos, castelos, sinantropos, pitecantropos, homo eretus, homo sapiens, a vida sob todos os aspectos, muito saber encadernado em livros, sebentas e separatas.
Durante anos, meses, semanas a estudar queimei as pestanas confiante na minha caminhada. E sem dar passo nem cancha à toa, hoje uma batalha, amanhã uma vitória, acabei licenciado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa.
Satisfeito por me ter libertado, do mar de carimbos, da papelada e de toda uma hierarquia incomodada por cada passo que dava em frente, cantei hinos, cantei hosanas à minha libertação. Finalmente mudei de emprego e de Ministério, profissão onde todos os meus colegas e superiores, pois então, se arrogam o título de doutores.
Satisfeito por me ter libertado duma chusma de mangas de alpaca? Sim, mas que erro meu! Num país de burocratas onde todos impõem o seu critério - «inda falta esta papelada!» - onde em qualquer ministério, com ministro ou com ministra, um requerimento dirigido a Sexa, pedindo um direito e não um tacho, chega à coisa sinistra de passar um ano sem despacho - e no serviços ninguém se vexa - devo concluir, de bom siso, que não me libertei, afinal, da terrível máquina infernal da burocracia. Antes e depois, sempre, enredado estou, numa floresta imensa de papéis onde se misturam artigos e leis porque outra coisa não presta aos seus agentes. Enredado estou, como toda a gente, na sabedoria dos pataratas, já que estes nossos sapiens burocratas, na floresta da burocracia em que vivem, saboreando os papeis, coisas tais, iguais e tantas, só me lembram os primatas a deliciarem-se com o arroto a folhas e plantas, depois de abarrotadas as insaciáveis panças.
(*) Texto escrito em 1997, cuja publicação me foi sugerida, agora, pelo «Simplex» do atual Governo.
NOTA: os meus amigos, inteligentes que são (eu só escrevo para pessoas inteligentes), não tardarão a saber as razões por que eu trouxe agora à colação estes dois textos (BUROCRACIA, 1 e 2) já publicados há muito tempo. Tenham atenção às datas em que foram publicadas e desta sua reposição, pois talvez seja necessário reiterar esta minha aversão aos que "não fazem, nem saem de cima"