O QUE SOMOS
Ainda pequenino - quanto tempo já la vai? - agarrado à mão do meu pai, com toda a vida pela frente (que longe estava a velhice! ) era isto que eu ouvia - que chatice, que ameaça feia - na proclamada homilia do cura da minha aldeia, ou na boca do pregador encomendado em dia de sermão e missa cantada, num domingo ou num feriado.
Era a versão abreviada da Escritura Sagrada, do versículo bíblico que, depois de lido, era logo seguido do aviso: "palavra do Senhor". Mas esta expressão era uma abreviatura transformada pelo exegeta sacripanta que julga ser o único que penetra no sentido da letra santa. E o que diz tal letra não é bem isso. Querem ver? No texto bíblico "Genesis: 3, 19", assim chove: "comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste formado, porque tu és pó e em pó te hás de tornar" com esta redação ou com outra similar.
Ora terra, ainda que a contragosto, era aquela que eu, em moço, lavrava e dela tirava o pão com o suor do meu rosto. O pó eu bem o sentia entrar pelas narinas em dias de vessada feita em tempo seco e de ventania. A cinza, retirada da pilheira, apagada a fogueira, desfeito o borralho, dava-me o trabalho de ir espalhá-la pelas hortas para adubar o chão e afugentar a bicharada. Era o produto final da fogueira, cujo calor e cor no inverno me fizeram perder o medo do inferno, outra ameaça ensinada na catequese, pois nele cai todo o pecador que não reze. Mas entre o frio, a chuva e a neve, corpo ensopado ou gelado no solo lá fora, eu, chegada a hora, prefiro ter o consolo de ser cremado, quentinho em pó tornado. Tudo verdade. Mas o "nada" (que maldade!) onde estava? esse da frase abreviada, que era dito pelo cura ou pelo pregador como "palavra do Senhor?" Esse "nada", que ideia? da TERRA ao CÉU, por mais que me esforçasse, não encontrava eu. Onde punha os pés, as mãos, os olhos, fosse perto ou longe, sentia e via sempre algo, só não sentia, nem via o "nada". Que eu fosse feito de barro amassado, de cinza amassada, de pó ajuntado, saído das mãos de qualquer oleiro experimentado, eu compreendia, mas essa coisa do "nada" dava-me volta ao miolo, deixava-me perturbado, punha-me tolo.
Menino, lá no fundo inocente, no princípio do caminho da vida, não entendia o que dizia o Criador do mundo, das plantas, da gente e animais, pois não conciliava o "nada" com a terra, o pó e a cinza" que eu todos os dias, descalço ou de tamancos, pisava e repisava, anos tantos. No meu entendimento o "nada", por mais que procurasse, estava a mais na frase, não tinha lógica e longe vinha o dia de eu ir estudar a linguagem simbólica e metafórica, o significado escondido nas parábolas, a filosofia escatológica, o princípio e o fim do mundo, o princípio e o fim da humanidade.
Cheio de interrogações e ansiedade, ouvia dos adultos as adivinhas, as lengalengas, palrava sem gaguejar os trava-línguas ("o rato roeu a rolha...", "perguntei ao tempo quanto tempo o tempo tem...") tudo o mais com que, então, se entretinham as criancinhas, sem tabletes, sem telemóveis nem Iphones. Não me acomodei sossegado na certeza contida na "palavra do Senhor". Algo contradizia o que eu via em meu redor, cheio de vida e de vigor. Chiça, ser "nada" o meu fim? Pouco dado a mistérios, dizia para mim: venho eu à missa para ouvir coisas assim? E, nos meus critérios, interrogava-me quem era esse senhor que, muito seguro e si - dizia-se - escrevia direito em risco torto, aquele que punha e dispunha do passado e do futuro do mundo vivo e morto.
E cresci a ver nascer, crescer, envelhecer e a morrer gente. A ver crescer e a morrer animais, árvores, ervas, plantas e tudo o mais que a natureza punha à minha frente e eu podia ver, sentir, palpar e saborear. Encantar-me e deslumbrar-me com a capacidade da sua renovação, estação após estação, outono, inverno, primavera e verão. As flores e os frutos. Ano após ano a subir às cerejeiras, ora solitário, ora com outros companheiros, todos meninos, qual bando de estorninhos a vindimar ramo, após ramo. A debicar tudo. Das cerejeiras, das ameixeiras, das pereiras o fruto. Não o da árvore do Paraíso, pois Cujó Paraíso não era. Nos carvalhos e pinheiros sempre a desafiarem o nosso instinto trepador (aqui o meu irmão Zé levava sempre a melhor) todos subíamos a roubar os ovos dos passarinhos. Mal acabavam as aulas da primária todos corríamos em algazarra à descoberta dos ninhos. Lembranças! Nós éramos o diabo disfarçado de meninos, pois dizia-se que "o que ao diabo esquece lembra às crianças".
Veio a idade adulta, das leituras, de trepar à plataforma culta do conhecimento, do entendimento do não entendido. Viajei por todas as religiões antigas, outros mundos, outras vidas, todas elas diferentes nos livros sagrados, com muitos deuses e deusas nos altares adorados e lidos nos templos da poesia, da literatura, da ciência, da filosofia, donde o pensamento profundo religioso e profano se arranca. Um certo ano, num certo dia, li Florbela Espanca e vi-a de si própria à procura e a desejar ser uma radiante alvorada depois de ser terra, pó, cinza e nada. Oh, tinha que ser! A noite ressuscitaria em dia transformada. Este soneto fez-me voltar a menino. Quantos anos já lá vão? Eu ouvira a mesma charada que tanto me interrogava, mas ela, agarrada à sua lira, pusera em verso, em literatura a ameaça que o Criador fizera à criatura: "serás, nada, cinza, pó e terra", a mesma que o exegeta traduzira. Outra vez o "nada" depois de tanto ano a lidar com os artífices do pensamento religioso e profano. Alto lá, pensei! Aqui há marosca! Hoje, no meu entendimento, assim de maneira muito tosca, olhando para trás, deixando todos os bíblicos ensinamentos, penso, de forma nua e crua, que a palavra do Senhor não passa de uma ameaça feita pelo Criador à criatura. E na lura da minha mente, sem piedade, sem clemência, ecoa ainda a suspeita de outra receita: a proibição de Eva e Adão, os pais da humanidade, comerem o fruto da árvore da ciência. Mas comeram, tentados pela serpente, o diabo disfarçado com fala de gente a dizer-lhes em cirílico, aramaico, grego, latim ou naquela edénica língua estranha a mim: "Deus sabe que se em qualquer dia comerdes dele, se abrirão os vossos olhos e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal" (Genesis, 3:5).
Qual árvore da ciência, qual serpente, qual fruto proibido, qual bem, qual mal, qual nada!
O homem, habitante da Terra (grão de areia no universo dos planetas, estrelas e cometas) observa o espaço infinito e curioso, ávido de conhecimento, metido no foguetão do pensamento impulsionado pela energia das ideias, incapaz de entender o espaço e o tempo em que navega, rompe as peias da ignorância e, estratega, frente a mil mundos e céus, ciente da sua pequenez (tal é o seu fadário) num momento de lucidez ou o contrário, inverte o mistério da criação e cria deus. Palavra do pensador. Num só instante o temerário navegante em vez de ser criado volveu ser criador. A seguir descansou. Almocreve afeito a maus caminhos, veredas, trilhos, carreiros e a maus tempos, meteu o cavalo na alquilaria, subiu à estalagem, repousou no travesseiro os pensamentos da noite. No dia seguinte prosseguiu viagem. Faltava-lhe a solução da eterna equação matemática: como é que, na prática, numa operação se soma ou subtrai o nada? Certo de vir a ser terra de campo semeado ou de pousio; cinza da horta plantada regada com água de limar ou de rio; pó no ar espalhado, átomo invisível sem história, matéria e memória, o almocreve das palavras e das ideias, pensativo e mudo, de olhos no mundo, certo disso tudo, percebe e chegou ao momento em que do nada se fez tudo. Um, dois, esquerdo, direito, alto! No princípio da criação não há Paraíso, não há Eva nem Adão. O mundo judaico-cristão do Velho Testamento é fruto da imaginação, do pensamento, de uma criativa, infantil e bem sucedida IDEIA. E o meu pai, que conhecia a Bíblia, mas ignorava a PAIDEIA, zelava pela minha educação. Fazia o que sabia. Ensinava, com carinho, o que aprendeu. Fê-lo por bem. Porém, largada a sua mão, desse caminho me desviei eu e longa vai a caminhada. Aqui chegado, cansado, rompidos os tamancos, barba e cabelos brancos, sem desejos de regresso, confesso que nulo tem sido o esforço de ao tudo somar nada.