Trilhos Serranos

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quarta, 29 junho 2016 15:56

DESABAFO

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DESABAFO

Solitário, sentado à mesa, espero a refeição da noite. Cumpro a obrigação de me alimentar, para manter a carcaça viva, andante e pensante.

Ali ao lado, meia dúzia de amigos, bebericando o seu copo de vinho, picando a moela com o palito, falam alto, discutem, bebem, copo sucede a copo e, em cada gargalhada avinhada, eu confirmo a felicidade rural que via nos homens dos meus tempos de criança, encostados aos balcões das tavernas, tampos salpicados de rodas vermelhas, desenhadas pelos copos virados ao contrário, código que o taberneiro entendia como "encher de novo", pois a rodada continuava.

Solitário, neste meu comportamento urbano (digamos que quase bisonho) atento a todos àqueles jeitos e trejeitos, neste minha posição de espectador, das coisas, dos tempos e das gentes, vejo-os virados de costas para a TV, alheios totalmente ao noticiário, às informações, às intervenções inflamadas dos políticos, uns a contradizerem outros, a propagandearem as formas diferentes de resolverem a crise, o desemprego e a fome já entrada em alguns lares do país.

Solitário no meu canto (nesta minha atitude urbana e bisonha) comendo, ouvindo e observando, constato que o mundo desse grupo de amigos, tem os seus limites nas coisas pessoais, quotidianas e próximas, sendo que a mais próxima e ao alcance da mão que os faz juntar ali em convívio alegre, é o copo de vinho que não se quer vazio. E vê-se bem que a cor "rubi" do líquido já subiu ao rosto e aos olhos de todos eles.

Solitário, acabei a refeição, dirigi-me ao balcão e discretamente disse ao proprietário que incluísse na minha conta uma rodada destinada aquele grupo de amigos. Foi a forma que encontrei de participar na sua alegria, de prolongar o seu convívio, com pena de não poder ser um deles.

 Feito isso, solitário, retiro-me com o sentimento feliz de ainda me sentir gente, de não estar totalmente desumanizado e compreender as motivações e os comportamentos desses amigos, tão distintos dos meus.

São os baldões da vida. E chego a pôr em dúvida o caminho percorrido em busca do bem estar e da felicidade. O que é isso, afinal?

8 comentários 3 partilhas

Amadeu Homem Um grande, grande texto, pela sua forma literária e, sobretudo, pelo Humanismo construtivo que ele destila. Vou "roubar" ... Parabéns ! Está aqui um Escritor ! 29 de Junho de 2013 às 11:05 ·

Manuel Ferreira Solitário, sempre atento e solidário. 29 de Junho de 2013 às 12:22 ·

Dulci Ferreira Uma rodada para si e seus amigos. Agora pago eu, ainda que seja um copo virtual, porque a solidão é relativa. Depende da vontade que se tem em fazer parte desse mundo comunitário, de como nos vimos através de outros reflexos; se enquadramos neles a própria alma. Um bom fim de semana, Dr. Abílio. Abraço :) 29 de Junho de 2013 às 12:40 · 

João Duarte um grande texto Sr Abílio digno de se ler obrigado um abraço. 29 de Junho de 2013 às 13:07 · 

José Ribeiro Uma rodada para a mesa do lado ... pois também me falta goela para tanto! Não fará bem à saúde (deles), mas basta o sentido de pertença àquele grupo para lhes saltar a tampa. Quando não entram mesmo em competição para provarem que aguentam, aguentam ...29 de Junho de 2013 às 14:21 · 

Pedro Santos Antunes Abílio Pereira de Carvalho! Sempre atento, bom observador e melhor narrador, de tudo o que te rodeia! Afinal, quem é mais feliz, os que viram as costas à TV e bebem uns tintos, ou os outros??? Eis a questão, como diria o outro!!! Abraço e continua a escrever, como tão bem sabes... 29 de Junho de 2013 às 15:49 · 

Dulci Ferreira Reparo, contudo, no copo vazio em cima da mesa... penso que a questão não é o observar o outro, mas a si mesmo... o copo vazio em cima da mesa é mesmo uma questão humanitária... um problema de "solidão". 'Aproxegue-se', caro amigo :) Não está só :) 29 de Junho de 2013 às 16:02 · 

Alice Lucas FANTÁSTICA TODA A NARRAÇÃO: "(...) atento a todos àqueles jeitos e trejeitos, neste minha posição de espectador, das coisas, dos tempos e das gentes, vejo-os virados de costas para a TV, alheios totalmente ao noticiário, às informações, às intervenções inflamadas dos políticos, uns a contradizerem outros, a propagandearem as formas diferentes de resolverem a crise, o desemprego e a fome já entrada em alguns lares do país(...)" ....:( ... QUASE ME APETECE JUNTAR A ESTE GRUPO DE AMIGOS.......29 de Junho de 2013 às 22:03 · 

 

NOTA: PUBLICADO NO FACEBOOK EM JUNHO DE 2013,  E NESTA MINHA PÁGINA COM O TÍTULO "Diálogo Íntimo", aqui o publico novamente, desta vez com os COMENTÁRIOS que mereceu de quem o leu.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.