Trilhos Serranos

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quarta, 22 junho 2016 09:11

JUÍZES E CONDENADOS

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"JUÍZES, TREMEI DO HOMEM..."

Nos tempos que devorava livros, passou-me pelas mãos "Breve Notícias de Sines" de Francisco Luis Lopes, editado em 1850. Dele destaco as linhas que dedica aos presos do tempo, dentro da cadeia daquela vila. Será que o texto tem algum sentido nos tempos que correm em Portugal, nas cadeias e fora delas? Assim: 

"Sois Povo e pobre? Imaginai-vos só, preso ali, devorado por insetos hediondos, famintos como vós, empestado pelos gases mais pestilentos de excrementos repostos em fermentação activa, diariamente reforçada num poço cego, cujo respiradouro é o vosso ar de vida, numa tarimba nua, com a única roupa que possuís, esfarrapada pela pelo tempo e pela sarna, fétida e imunda, desfeito de fome e de sede, transido de frio, a grenha hirsuta, empastada de lixo e suor oleoso, o olhar ardente e profundo de miséria, a fisionomia héctica, lívida, esquálida, selvagem, indefinível de urso e de homem, as unhas acaireladas, aduncas, quase garras, as mãos crassas de malhas e efélicas verde-negras das mais asquerosas excreções; o cancro da fome no estômago, a flama da sede no sangue - da vingança na alma - e a noite que vem, que mais vos transe nas trevas, que vos apavoram, e o dia que vem estampar-vos por céu apenas uma grade de luz frouxa no horror de vossa lôbrega curujeira, e os anos e os meses amaldiçoados. E o óbolo esmolado à compaixão insultante, um mugido de feroz gratidão, pão e água que minam. Juntai a isto vossa mulher adorada, de bruços vil rameira, já sem pranto e sem pejo, porque a miséria devora lágrimas de vergonha, prostituída pelas tavernas e mangalaças, embebedando em aguardente um resto de memória - vossa filha a bem amada, se adulta, também infamada de lodo e crápula, se criança semi-morta aos baldões da populaça mais feroz que os cães da rua, que a não mordem, que a lambem de dó: vossa mãe velha idiota, que morreu de dor e de fome.
(...)
Qual é o vosso crime? Pensar a vosso modo em política, ter pegado em meia onça de tabaco de contrabando!
Sois, enfim, livre. Sem família que já não podeis amar, frios com os últimos raios de vida, que vos vai desamparar, sem moral, sem físico, ulcerado no corpo e na alma, endividado insoluvelmente, espectro idiota ou tigre... Juízes, tremei do homem que saiu solto neste estado e que sinta como eu!"
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.