ARTESÃO DAS LETRAS
Como bem me lembro daquela expressão de Ramalho Ortigão que deu título à lição "Mãos que prestam, mãos que não prestam". Iniciava eu os meus estudos de liceu. E essa lição fez-me remontar aos tempos de menino e ver a minha mãe a fiar, a transformar a rocada de lã ou de linho em fio, à custa de muita saliva, à de força saber e jeito a rodar o fuso entre os dedos, aquele objeto oblongo, para mim um pião suspenso por um fio a rodar, sempre a rodar, cada vez mais barrigudo, mais atraente, graças ao jeito, torce que torce, dos dedos médio e polegar.
Que arte aquela da fiandeira! que arte aquela da minha mãe e de todas as fiandeiras que, "mãos que prestam", por este Portugal além, de aldeia em aldeia, depois da ceia, serões inteiros à luz da candeia, roca carregada da lã ou de linho, davam início à fase de tecelagem, princípio dos panos que cobriam e vestiam os povos da serra.
Início da tecelagem. E antes disso? O burel resultava da lã. Vinha de longe a experiência acumulada. Lã tosquiada, lavada, escarpeada, cardada, mancheias dela cintadas numa roca por meio de um fio ou de uma correia com uma espátula na ponta, arte de mãos e navalha - na lareira a lenha arde - boneca enrocada em forma de 8, forma de clepsidra, vim a sabê-lo mais tarde. O exemplar que aqui deixo fotografado foi feito pelas mesmas mãos que escrevem o presente texto. Roca feita para a minha irmã Maria dos Prazeres, antes de eu partir para África, ela devolveu-ma quando da África regressei e aqui a deixo para os meus filhos e netos não esquecerem que antes de abalar para aquelas partes, antes de me agarrar aos livros, cultivei outras artes.
E o linho? Sementeira feita em terra de regadio era vê-lo crescer basto. Não há vila ou aldeia serrana que ignore o topónimo LINHAR, no singular ou plural. Crescido procede-se à arranca. A raiz integra a fibra que vai a ripar, a atar, a mergulhar numa levada ou num rio, em água corrente (algumas posturas municipais na área concelhia proibiam esse alagamento à gente), após o que se estendia nas eiras a secar. Depois era a maçada, de noite, ao luar. Que tormentos passava o linho para se ver livre dos tomentos. Depois de maçado, espadanado. Era a ocasião em que entrava em ação a espadana, essa peça de madeira com a forma de uma gigante faca de talhante. Uma mancheia de fibra posta sobre o rebordo de um cortiço de abelhas posto a preceito, a outra mão, com força e jeito, tasca que tasca, ia deixando a fibra limpa e o chão, salpicado de tomentos, era um pergaminho escrito onde um povo sem letras lia saberes, experiências, técnicas e conhecimentos de séculos.
Como me lembro bem, das "mãos que prestam" de Ramalho Ortigão. Como me lembro bem da minha mãe, tesoura numa mão, retalho de roupa velha noutra, tric...tric...tric...tric.... a fazer tiras destinadas à manta de trapos que, no inverno, posta sobre os lençóis de estopa ou linho, aconchegava o calor dos corpos da ninhada de filhos metidos na cama de ferro que tinha fundido um ramo de flores nas cabeceiras. Outras havia que tinham uma coroa real.
Como me lembro bem a "tia" Joana, sentada ao tear, pentes no sítio, urdida a teia, posta no lugar, peanhas prontas a subir e a descer todas as vezes que, da direita para a esquerda e vice-versa, a lançadeira, com a velocidade de uma bala e canela dentro, atravessava toda a largura do pano e, deixado o fio, um a um...pum... catrapum...pente à frente, pente atrás, a subir e descer a peanha, devagar, devagarinho, daquele jeito, força e manha, nascia a teia de lã ou de linho, tecido feito por encomenda, a pedido, ou para consumo próprio.
Que arte aquela da "tia" Joana e de todas as Joanas tecedeiras de antanho, espalhadas por estas aldeias de Portugal em fora, de cujas mãos, (mãos que prestam) músculo e suor saíam as teias que vestiam o povo camponês. Teias de lã, convertidas em burel no pisão, aquele tecido negro, (aqui a capucha) impermeável a frios e chuva, que servia para fazer capuchas, mantas, casacos, calças, coletes, saias, roupa exterior, agasalhos sem tempo, tudo de burel, como se, nos meados do século XX, estivéssemos na Idade Média.
Ao lado das teias de burel, as teias de linho, lavadinho, branquinho para lençóis e fronhas de cama, roupa interior, sacos para farinha, toalhas de altar, bragal de noiva, lencinhos de namorados, amores perdidos, amores achados, tempos idos, tempos passados, tudo metido e saído no fio que descia da roca ao fuso, do fuso, à dobadoira, da dobadoira ao sarilho, do sarilho ao tear.
"Mãos que prestam" como escreveu Ramalho Ortigão encantado com as agulhas que, nas mãos da sua avó, ou da sua mãe (já não me lembro bem), faziam a renda que ornamentava punhos e golas fidalgas, a renda que rematava toalhas, naperons, as mesmas que, era o seu fadário, bordavam os lençóis de linho da cama e do sudário.
Como me lembro bem da lição escrita por Ramalho Origão e do professor de Português, Francisco Cristóvão Ricardo, lá no outro lado da Terra, no outro hemisfério, a respirar os ares do Índico, aquele que me ensinou ligar a literatura à vida, as duas faces da moeda de que eu conhecia somente uma.
Ainda é vivo, esse meu MESTRE. E remeteu-me, há dias, um texto com o título "MANTA DE RETALHOS", interrogando-se, se "podem retalhos de diferentes cores e tamanhos, cosidos, bem cerzidos, fazer uma manta que recorde traços (e alguns tiques que julgávamos ultrapassados) da vida de personagens/pessoas duma sociedade multifacetada? O leitor dirá".
Já o li. Não vou urdir nova teia, fazer manta nova com trapos velhos, como fazia a minha mãe. Mas o texto desse meu MESTRE fez-me remontar ao tempo dos seus ensinamentos, ao tempo da lição de Ramalho Ortigão, aquela lição das "mãos que prestam", aos tempos da minha mãe, sendo que a palavra MÃE é o primeiro fio que dá início à MANTA DE RETALHOS que me foi enviada. Fio metido na lançadeira, atravessado e ampliado o pano a toda a largura do tear, logo vem outro e o tecelão das letras faz obra. Segue-se ESPELHO MÁGICO e depois QUANDO EU MORRER e outro INSÓLITO e outro CASAR E DESCASAR e outro HISTÓRIA DE NOTAS e outro EU TE PERDOO e outro SONHOS DE POETA e outro A LEVEZA INSUSTENTÁVEL DA VIDA, este a servir de comecilho ao último RETALHO. Ora vejam como este artesão das letras, ele, um professor da Língua Materna, pinta a manta. Reparem a arte de cerzir e colorir o discurso direto e indireto, ora privilegiando a força da oralidade, à revelia da norma gramatical, ora seguindo esta, com o marcante travessão no começo, resultando, em ambos os casos, autenticidade, lisura e compreensão perfeita do diálogo entre os protagonistas. Ponham aqui os olhos todos os que almejam ser escritores, aqueles que, através do verbo, querem trazer até nós ou despertar em nós as emoções, as sensações, a realidade dos trilhos da vida e da morte:
"(...)
- Gente, por favor, onde posso encontrar o caminho da fama, de ser político, deputado, de ser importante, o maior da aldeia e do país, vai levar tempo, vais começar a colar cartazes, propaganda eleitoral, vais gastar dinheiro para que te conheçam, vais juntar-te ao povo, fazeres as feiras, o Chiado e o Bulhão, e aguardar que votem em ti, já fiz isso tudo, anos e anos a fio, sem resultado nenhum, gente, por favor, onde fica alguém que me possa ajudar, não tem amigos, companheiros?
- Tinha, já todos me abandonaram, quando se me acabou o dinheiro.
- Não tem partido político?
-Tinha, mas desarriscaram-me, disseram que não tinha perfil.
- Família, pais, enfim, que tomem conta de si?
-Tinha, os pais disseram não te esqueças de voltar, mas como voltar, se tenho vergonha de estar assim, tão alquebrado, tão mal vestido.
-Que idade tem?
- Oitenta ou oitenta e tal.
- Bela idade para falar com o coveiro.
- Não penso em tal.
- É bom começar a pensar, a vida é um ai.
- Por favor, companheiro, onde fica um hospital, tenho bolhas nos pés, certamente de muito andar, senhor médico, todo o corpo me dói, de tanto andar a sola dos sapatos gastei, a cabeça me anda à roda, sinto-me mal, já não sei direito andar, calma, o médico é para curar, eu estou doente e o médico não curou, padre, quero confessar-me, pequei todos os pecados do mundo, nem os posso nomear, tenha coragem, não há pecador que não se possa salvar, eu sou pecador e não me vou salvar.
- Senhor coveiro, não precisa de muito cavar, só quero que a terra me seja leve, quando for a enterrar.
- Será como quiser, a terra será sempre leve, a nenhum morto vai pesar".