1 - PAI, PORQUE ME ABANDONASTE
Coisas do destino. Nós, dentro daquele engenho deslizante, a subir ao céu e a ver o mundo do alto, cheio de luz, paisagens deslumbrantes, enquanto o meu pai, cego e cansado, fechava os olhos para sempre, prestes a descer à campa fria, escura, sem vistas nem horizontes.
Férias interrompidas de imediato, chegámos a tempo de assistir ao seu "elogio fúnebre" feito por um clérigo que eu desconhecia, isto por não residir em Cujó, não ser homem de igreja, nem ser misseiro.
O clérigo de voz gregoriana e de estatura acima da média, de pé junto ao cadáver, citando eloquentemente as Sagradas Letras, deu mostras de conhecer bem o "curriculum vitae" do falecido e de entrosar, com oportuna mestria, o religioso e o profano naquele momento de encomendar uma alma a Deus. Naquele momento de sentimentos e emoções fortes sentidas por todos os presentes, familiares e amigos que quiseram e puderam acompanhar à última morada o "tio Salvador". Eu, que via abalar para sempre o meu pai, homem que conhecia muito bem, que, semianalfabeto, antes e depois de cegar, me ensinou tantas lições da sua vida e das suas memórias, que lições e memórias da minha vida se tornaram, um cidadão sempre votado ao Bem Comum, cuja personalidade, carácter e dedicação à causa pública, aquele clérigo tão bem retratou, eu, dizia, mesmo racionalmente diminuído pelas emoções do momento, assentei em meu juízo que aquele padre não era um padre qualquer, não era um daqueles "curas de alqueire", um daqueles sacerdotes que, ordenados e incardinados numa qualquer diocese, exercem o seu múnus numa qualquer paróquia, com o saber adquirido nos seminários e, felizes e contentes, se sentem realizados com os rituais quotidianos inerentes à sua missão e, a par das confissões, nos domingos e dias santificados, mais não fazem que ler a dita palavra do Senhor, segundo Mateus, Lucas, João ou, em verdade vos digo, ler as epístolas de Paulo aos gentios, ignorando, por completo, a manipulação e os ajustamentos convenientes que a dita Palavra Deus sofreu, ao longo dos séculos, pelas mãos daqueles que, do alto da hierarquia, a apregoam e têm por bandeira «nunca evocar o nome de Deus em vão».
2 - O CLÉRIGO
Mais tarde vim a saber quem era esse clérigo. Natural da aldeia de Cetos, Castro Daire, serra do Montemuro, nascido em 7 de Maio de 1928, onze anos mais velho do que eu, iniciou a sua vocação religiosa no Seminário de Cristo Rei, dos Padres Redentoristas, em Vila Nova de Gaia. Redentoristas? Quantas pessoas com a minha idade esqueceram os Redentoristas que, na década de 50, do século XX, de aldeia em aldeia, subiam aos púlpitos das igrejas paroquiais e, com os seus sermões empolgantes e apologéticos faziam chorar as pedras? O dom da palavra, da Palavra de Deus, penetrava como flecha no coração do mais empedernido pecador e derretia o da mais sensível e ingénua beata. Missão cumprida numa freguesia, ala de viagem para outra, deixando para trás a alma dos idosos mais perto do céu e a dos jovens mais perto do inferno. Tudo porque, para além da palavra santa a condenar o pecado, a carne é reconhecidamente fraca. Os idosos, enfraquecidos pelos anos, com força bastante para dominarem os desejos pecaminosos. Os jovens, no vigor da idade, sem força bastante para dominarem os desejos carnais. E os Redentoristas deixavam também uma enorme cruz de madeira que, nuns templos tomou lugar de destaque, noutros foi remetida para as sacristias a descontento de alguns paroquianos.
Este jovem redentorista, terminado o curso de humanidades, foi fazer Filosofia e Teologia em Espanha, mas as dúvidas da vocação religiosa levaram-no a pedir dispensa dos seus compromissos e regressar à condição laical. Em 1964 envergou novamente as vestes sacerdotais a convite do Bispo de Bragança.
Estávamos no tempo das «Guerras Coloniais» e, em 1966, foi convocado para servir na Guiné-Bissau, no posto de Tenente Graduado Capelão. Foi nessa qualidade que a Ordem de Serviço 147, BCª 1897 o louvou pelos serviços prestados, não só no exercício do seu múnus religioso, mas também pelo «entusiasmo e dedicação à acção educativa de crianças nativas e adultos». Louvor imediatamente reconhecido pelo Bispo das Forças Armadas com as «calorosas felicitações por esse justo e público reconhecimento das suas qualidades e abnegação».
3 - A OBRA
Foi sol de pouca dura. Em 1970, este padre de que vos falo, MANUEL AUGUSTO COSTA PINTO, teve a ousadia de, à laia de comentário à encíclica «Caelibatus sacerdotalis», escrever o livro com o título «O Casamento dos Padres». Dado à estampa, foi um «aqui d?del-Rei» imediato os círculos católicos ortodoxos e sobretudo no seio da hierarquia da Igreja, o que levou a que, num instantinho, a PIDE/DGS apreendesse a obra e a retirasse do mercado.
Insubmisso, beirão de quatro costados, corpo e alma curtidos nas intempéries da serra do Montemuro, pastor que foi de cabras até aos doze anos, treinado a usar a fisga e a funda como David, o autor não temeu o Golias do momento e pediu oficialmente explicações sobre as razões que levaram a Polícia Política a agir assim. A primeira resposta, que resposta não era, chegou por ofício, de 12-05-1971, dizendo que as autoridades agiram «de acordo com o disposto nos decretos-leis» números tais e tantos, dos dias e anos tantos e tais.
Inconformado com esta resposta sibilina que nada informava, não se ficou quedo como penedo. Sentou-se à secretária e vai a teclar uma extensa e fundamentada exposição dirigida ao senhor Presidente do Conselho de Ministros, Professor Marcelo Caetano. Nela mostrou o desagrado da injustiça de que estava a ser vítima e cita a «Pacem in terris», na parte onde diz que «todo o ser humano tem direito à liberdade para procurar a verdade e dentro dos limites da ordem moral e do bem comum, à liberdade para manifestar e difundir as suas ideias».
Desta vez a resposta, com data de 22 de Junho de 1971, veio a seu contento: «deviam cessar todas as diligências no sentido da apreensão do referido livro, devendo todos os exemplares apreendidos serem entregues nos respectivos locais em que essa apreensão se tenha verificado». O livro foi reposto nas bancas, mas, vencido o Golias político, não teve igual sucesso entre os seus pares e superiores. O Bispo D. Manuel de Jesus Pereira, em Maio de 1971, não sem «grande desgosto» (sic) declarou-o «suspenso do exercício de ordens» por «estar incurso na irregularidade do cân. 987, nº 7 e do cân. 2344, por ter continuado a celebrar e ter publicado um opúsculo, pouco respeitoso para com o Santo Padre». Colocado nessa situação dedicou-se à docência, em 1977 tirou o bacharelado na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa no ano de 1987, depois de «desincardinado» da Diocese de Bragança, pelo Bispo D. António José Rafael, foi «incardinado» na Diocese de Lamego, pelo Arcebispo D. António Xavier Monteiro, admitido nas "Ordens Sacras" depois de se «actualizar nas matérias teológicas» e foi nomeado para a paróquia de Almofala, onde «exerceu o ministério sacerdotal com zelo» tal como reza um documento diocesano, assinado em 04 de Julho de 1988.
Por ora o Padre Costa Pinto estava nas boas graças das hierarquias. Uma carta datada de 5 de Julho de 1990, a ele dirigida e assinada por «António, Arc. Bispo de Lamego» diz-lhe taxativamente: «Vª. Redª. foi um grande Padre pela disponibilidade em aceitar a paróquia de Salzedas nas circunstâncias difíceis que lá se geraram e em pacificar a comunidade como o fez, desde então até hoje. E estou de acordo com V. Rd. nas dificuldades em servir simultaneamente Almofala e Salzedas». Colocar lá os mais novos nem pensar. «Já de há muito os coloquei , no Alto Douro, onde se abriram dois grandes buracos; tenho de ir procurar entre aqueles sacerdotes que desejam mudar, que sejam homens para a tarefa e que eu possa substituir por alguém igualmente idóneo».
Idóneo enquanto a cabeça, à maneira da imagem de Santo Hilário, no altar de uma certa igreja minhota, acena «que sim, que sim» a confirmar as palavras do pregador, ligada que está a uma corda puxada pelo sacristão, para espanto dos crentes, que ignoram a artimanha. Mas não tão idóneo e ortodoxo quando, atento às Escrituras e ao Mundo, o Padre Costa Pinto desafina com os seus pares e superiores na interpretação dos Evangelhos.
E mais um momento desses chegou em 2007, quando se discutia em Portugal a «despenalização da mulher pela interrupção voluntária da gravidez». Sendo a favor, respaldado nas Sagradas Letras, publicou, em 2009, um opúsculo com o título «Carta Aberta de 2009» dirigida a todos os bispos de Portugal «sem consequente pronunciamento público ou particular». Entre 1993 e 2003 acumulou o ensino com a paroquialidade, tendo-se obtido, a seu pedido, a isenção de serviço neste último ano, por ter atingido os 75 anos de idade.
Declaradamente amigo da escrita e dos livros, biblioteca pessoal recheada das mais especializadas obras laicas e religiosas, escritas e impressas em várias línguas, dominando o Grego e o Latim, o seu saber teológico não se quedou pelo Missal, Breviários e Catecismos, nas suas diversas versões e edições.
Por isso chegámos ao seu último livro com o título «A Fragilidade do Nó Cego» e subtítulo «O Casamento na Igreja Cristã, Católico-Romana, O Divórcio e o Segundo Casamento». É um livro onde o Padre Costa Pinto mostra, mais uma vez, ser uma das vozes que destoa no canto gregoriano entoado no mais modesto cadeiral do coro de uma qualquer igreja rural, ou no mais requintado e barroco cprp de uma imponente basílica urbana rodeado de cetins e púrpuras. Logo no começo. São poucos os especialistas das Sagradas Letras que dizem, alto e bom som, que os textos bíblicos, para além de incluírem os mitos e lendas incorporados na literatura oral e escrita mesopotâmicas, anteriores à hebraica, arqueológica e historicamente demonstrados, v.g. o Código de Amurabi, o Dilúvio, a Saga de Gilgamesch, etc. etc., o que exclui, desde logo, a asserção velha e relha dos textos bíblicos serem uma «escrita revelada», estes textos, dizia, foram ao longo dos tempos adulterados e adaptados à conveniência da doutrina apologética, a começar, desde logo, pela exclusão de muitos evangelhos cristãos, favor de apenas quatro, bem de acordo com a vontade de Constantino, desejoso de unificar o Império e os Padres da Igreja, empenhados na unificação dela.
E é à luz de tudo isto, Evangelho a Evangelho, Testamento Novo, Testamento Velho, versículo a versículo, concílios e sínodos que o Padre Costa Pinto encontra razões para mostrar as «fragilidades do nó cego» e qual Alexandre Magno, não com a espada, mas com a PALAVRA, cortar o Nó Górdio que mantém preso quem quer ser livre.
4 - EPÍLOGO
Em 1758, os abades e reverendos das paróquias que hoje integram o concelho de Castro Daire, respondendo ao inquérito mandado fazer pelo Marquês de Pombal visando apurar, entre outras coisas, os efeitos do terramoto de 1755, em todo o país, à pergunta se «havia na terra homens insignes em armas e letras» respondem genericamente que «não», sem mais comentários.
Diferentemente procedeu o Abade de Ester, Bernardo Ferreira da Costa, que usou de uma ironia que ainda hoje delicia qualquer homem que ama as letras e as estilísticas figuras literárias. Ora vejam: Armas? «Têm os seus arados e mais ferramentas agrícolas com que ganham o pão de cada dia». Letras? «Como bons cristãos que são assinam de cruz quando a vara do juiz lhes bate à porta». E foi assim que, com a ironia deste quilate, o abade e os demais pares deixaram para a posteridade o registo do «apagão» que, no século XVIII, o século das Luzes, no campo das LETRAS se verificava nas terras do Montemuro. Os clérigos a terem de responder nos tempos de hoje, as respostas seriam forçosamente diferentes, a não ser que, pregando a PALAVRA DE DEUS e a VERADADE, a verdade omitissem por ignorância ou despeito, pois que, mais não seja, teriam de referir o nome do PadreMANUEL AUGUSTO COSTA PINTO, goste-se ou não da obra que escreveu e publicou em jornais, em revistas e em livros. Pois verdade é que o que diz e escreve de novo ou diferente não deixará de fazer urticária nalgumas almas e corpos empedernidos, mas, paciência, também a palavra de Cristo não agradou a todos e, por isso, foi crucificado, exclamando lá do alto da cruz:
- Eli, Eli, lama sabachthani?
(Pai, Pai, porque me abandonaste?»
NOTA: publicado no meu velho site em 26-02-2013 e transposto hoje mesmo para aqui.
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