«Desde que tirei o curso em Coimbra, desde a minha experiencia no Hospital da Estrela, em Lisboa, as autópsias a que assisti e participei não têm conta e as injeções dadas são milhares. Conheço o corpo humano como a palma da minha mão: cabeça, tronco e membros. Na cabeça temos o frontal, o nasal, o parietal, o occipital, e o temporal. Nos braços, o rádio e o cúbito. Nas pernas o fémur, o perónio e a tíbia. Nas mãos e pés, tarso, metatarso e dedos. Nos dedos, falange, falanginha e falangetas. Por dentro os aparelhos digestivo, respiratório e urinário. Por onde se mija chama-se uretra. No Raio X é que se vê tudo».
Curso feito em Coimbra, experiência adquirida no Hospital da Estrela, em Lisboa, com a especialidade de «maqueiro» averbada na sua caderneta militar, mal chega à aldeia apressa-se a adquirir todo o material de primeiros socorros relativos à praxis paramédica e como «na terra de cegos quem tem um olho é rei», o nome do «tio» Salvador não tardou a ser conhecido e a sua pessoa solicitada para as situações mais díspares, algumas delas bem distantes dos conhecimentos obtidos por um humilde transportadores de macas.
Um golpe de machada feito no trabalho, os efeitos de uma sacholada, arma fria ou pedrada perdida na escuridão da noite tinham suturação garantida e aprovada nas suas mãos, nos seus agrafes, na sua pinça, na sua linha, na sua agulha.
A sua seringa, em estojo de aço inox, estava sempre pronta a ser fervida e a despejar, em proveito do doente, os frascos e ampolas de penicilina e bismuto receitadas pelos médicos. Os médicos de Castro Daire em breve encontraram em Salvador de Carvalho um importante auxiliar, não só para administração dos medicamentos por eles receitados, mas também na cobrança das avenças que, eventualmente, tinham com alguns moradores.
Lidando com doentes, com farmacêuticos e com médicos, soletra curiosamente a literatura anexa aos medicamentes (bula) , enriquece, dia a dia o seu saber, a sua experiência e não tarda, em muitos casos, a evitar ao doente a caminhada para Castro Daire em busca de consulta médica.
Pedacinhos de papel de embrulho passam, de quando em vez, a serem suportes das suas receitas até que uma carta anónima, dirigida aos médicos da vila, o denuncia de «falso médico» com o intuito de o ver envolvido em demanda judicial. O caso não passou da denúncia para o que contribuiu, sem dúvida, a consideração e as amizades que possuía na sede do concelho, o serviço desinteressado que havia prestado aos médicos e farmacêuticos e o reconhecimento, por parte destes, da competência manifestada na execução dos seus mandados. Sem consequência, embora, o «tio» Salvador nunca mais rabiscou o nome de um xarope para a tosse, para a constipação ou para a fraqueza. A pessoa suspeita de ser autora da carta anónima continuou a solicitar os seus serviços e ele a prestar-lhos, como a todos os necessitados que a ele recorriam.
Apesar desse incidente, raro era o freguês que se deslocava a Castro Daire, ou era visitado por um qualquer médico, sem que primeiro não tivesse sido observado por Salvador de Carvalho. Só depois do seu estetoscópio, de marca italiana (ver foto) , oferta de companheiro de ofício, se ter passeado pelas costas do doente a sondar os pulmões (por essa altura a tuberculose era doença frequente e fatal), só depois de se ter passado pelo peito a cronometrar as pancadas e o ritmo do coração, é que a opção de ir ou não ao especialista era tomada.
As betas, os furúnculos, os tumores e os brunchos, depois de maduros, não resistiam ao seu bisturi inox. E lancetados era um ror de matéria a sair deles, como sai o conteúdo de um ovo exprimido por mãos inseguras de criança. O garrote de borracha estava sempre pronto a suster as hemorragias resultantes de tiro de espingarda por acidente, ou outros quaisquer azares de trabalho, ou de briga com arma branca. Alguns habitantes da terra dizem dever-lhe a vida, por isso, pelo Entrudo, corriam a sua casa levar um salpicão ou outra peça de carne fumada, agradecidos.
Terra do interior, de agricultores e artesãos, Cujó, terra de minifúndio, tem muitos marcos, alguns Marques, mas nenhum marquês, nem marquesa. A cirurgia de Salvador de Carvalho fazia-se numa cadeira, num banco, numa escada. Golpe de gadanha numa perna, de seitoira num dedo, de facada num braço, cada um no seu lugar prático de tratamento. Para todos «auga oxigenada», pinça, agrafes, sulfamidas, mercurocromo, tintura, gazes, algodão, ligaduras. E toca a andar..
Não acreditava em benzeduras, nem rezas. Na sua casa estava a tecnologia de ponta do setor da saúde, ao tempo. Quem ali fosse, em vez de cruzes e padre-nossos, levava comprimidos; em vez de ave-marias, levava injeções; em vez de credos e abrenúncios levava xaropes cordiais.
Chegado aos 86 anos de idade ainda se recorda a quantos ensinou a dar injeções nas veias e nas nádegas, aqui, no lugar certo para não picar a ciática, apontava.
A caderneta militar é para ele um diploma. Exibe-a com tanto orgulho como alguns licenciados exibem o canudo emoldurado, arrancado às universidades, depois de 5 ou 6 anos de curso». (in «Abílio Pereira de Carvalho, «Cujó, uma terra de Riba-Paiva», 1993, pp. 137-139)
Nota: vejam o vídeo que se segue. É parte de uma ENTREVISTA feita, em 2010, ao Dr. Jorge Ferreira Pinto, médico de Castro Daire, que confirma, a bem dizer, o que escrevi sobre o meu pai, em 1993. Apraz-me registar o facto, passados que foi um bom par de anos e depois do meu pai ter falecido. https://youtu.be/z0FqOCxR5zI