Eu disse sempre "avozinho". Não menti, não. Mas podia ter dito "velhinho", só que velhinho então, eu ainda não me sentia.
Mas um dia, não há enganos, aos setenta e seis anos (agora já sabeis) um dos joelhos que serviu de cadeira à minha netinha e proporcionou aquela nossa conversinha pela vez primeira deu de si. Perdeu agilidade. Range, dificulta-me o andar. Dói. E quando estou sentado, imobilizado, na cadeira onde tive aquela conversa com a minha netinha, vêm-me à janela da lembrança as estroinices da mocidade, revejo o caminho andado, desbobino o filme da vida, os tempos de pastor, a mobilidade de caçador a bater perdizes no monte maninho ou coutado em correrias de galgo. Foi na serra, foi na planície. Sadio, venci calor e frio, galguei subidas e descidas, atravessei montes e vales. E de joelhos, bebi água de ribeiros e rios. Usufrui as belezas da Natureza. Todas e algumas mais. Não falo dos amores vividos envolvidos em feno, mato e trigais. De joelhos venerei e saboreei o amor no templo do prazer e da vida, naquela entrada e saída, naquela romaria de ida e de volta, de volta e ida. Um homem livre. E nessa romagem ao passado, próximo ou distante, pernas cansadas, ofegante, lembro tombos, quedas, alguns arranhões, mas de incapacitante, nada. Hoje não tenho ilusões. A Natureza que nos prenda com tudo o que tem, sem nos darmos conta de que, atrás de ano, outro ano vem, paga-se em dobrado. E, não importa a idade, seja ela qual seja, homem ou mulher, dá-nos de bandeja, sem avisar sequer, as mazelas que junta às belezas dela.
É isso. E eu, de joelho medicado, de pensamento dorido, vencido pela natureza, arrasto-me até junto de um espelho, ali ao lado. E assim, olhos nos olhos, de pé, frente a frente (nem imaginam quanto dói), digo para mim: "estás velho". E assim, o homem que ali vejo tal qual é, despede-se daquele que já foi: nem jovem, nem pastor, nem caçador, nem "avozinho", nem nada. Se a minha netinha mais nova, mais os outros dois (uma menina e um menino) aqueles três pingos de gente, aquelas prendas da natureza, aqueles três fedelhos, sentados nos meus hoelhos, todos com o mesmo carinho, me perguntarem novamente porque tenho a barba e os cabelos brancos, dir-lhes-ei, com certeza e francamente: "porque sou velhinho!"
Abílio/setembro/2015