Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas DE CAÇADOR PARA CAÇADORES
quinta, 02 abril 2015 20:54

DE CAÇADOR PARA CAÇADORES

Escrito por 

CAÇA, QU'É DELA?

Neste tempo digital em que se escreve sem uso de caneta, papel e tinta, tempo em que a minha caixa de correio analógico me aparece atafulhada de folhetos publicitários, avisos das Finanças sobre o EMI, os selos dos veículos, seguros, cartas de pagamento da água e da luz, da MEO a ameaçar-me que cortam televisão, telefone e Internet, se não pagar a tempo, tudo, para mim uma grande chatice, neste tempo dizia, ainda aportam neste meu porto de abrigo, longe do mar, embarcações sobre as quais navego com gosto e nelas vou até outros tempos, outros espaços e outras gentes.

imageHá dias foram os livros de José Nuno Pereira Pinto e de Manuel Lima Bastos, sobre os quais discorri numa crónica publicada neste meu site com o título «DOIS COELHOS COM UMA CAJADADA».
Desta vez chegou «Paisagens de Caça, Bulhão Pato, Seleção de Textos, Organização e Notas» de NUNO SEBASTIÃO, um amigo que não conheço pessoalmente, mas que chegou até mim por lhe terem caído no goto umas páginas de caça da minha autoria que leu na Biblioteca Nacional.
Sei-o coleccionador de bibliografia e artefactos ligados às ARTES VENATÓRIAS e, se calhar, mais do que o gosto comum de corrermos montes a bater perdizes, coelhos e lebres, está nisso, no gosto pela História e seus testemunhos, o que nos aproxima verdadeiramente.
Costumo dizer que um livro oferecido, chegado até mim, é um livro lido e refletido até ao fim, pois ainda não perdi o vício de aprender com aqueles que, nos trilhos da vida, deixam as pegadas nas ARTES e nas LETRAS.
E que gosto foi ouvir e aprender a lição que Bulhão Pato dá sobre amizades numa simples frase: «a verdade é que um homem que não tem amigos é porque lhe faltam as condições para os possuir»..
Não devo ser possuidor cabonde dessas qualidades, pois devem chegar os dedos das mãos para contar aqueles que tenho e considero verdadeiramente amigos. Mas chegam-me. E esses não me dão trabalho e arrelias, esses proporcionam-me momentos agradáveis de lazer e aprendizagem, como tem sido a leitura dos livros a que me refiro.
Leio, aprendo, deduzo e concluo. E sobre CAÇA há tanto de reflectir e concluir.

1 - BULHÃO PATO, em Outubro de 1883, falando das raleiras que se iam vendo no espaço faunístico, é taxativo sobre a matança e suas causas: 

«Comecei a matar regularmente e dei a primeira lição ao Dr. Loureiro sobre a vantagem da espingarda moderna. Sendo o doutor um atirador extraordinário, eu matei mais do dobro do que ele, pela simples razão de que enquanto o doutor metia no cano uma carga de pólvora, eu carregava os dois tiros do meu Gastine Renette» (pp.65) e, mais adiante acrescenta: 

«As narcejas, com a afluência atual de caçadores, desapareceram dos arrozais de Coina, onde havia milhares (...) por toda a parte irá escasseando a antiga abundância. Outro tanto ou pior se dirá das codornizes, quando não proíbam completamente a caça nas ervas em Julho: caça devastadora, porque ainda em fins de julho a grande parte da prole é quase implume». (pp67). 

E em 1899, comparando tempos idos com os que vivia, tendo em mente as caçadas de D. Pedro e D. Luis, diz:

«Se os dois príncipes coroados ressurgissem de S. Vicente e quisessem, rememorando as alvoradas dos dias juvenis, descuidados e alegres, voltar à caça por todo esse reino, a cada passo diriam agora:
- Aqui foi Tróia!»

Numa alusão clara às desertas ruínas da helénica cidade!

2 - ROGÉRIO HORTA, referindo-se às caçadas do tempo de BULHÃO PATO, em 1949, dizia:

«Acabaram-se os tempos românticos das grandes caçadas. Morreu a poesia da arte de Santo Huberto».

3 - AQUILINO RIBEIRO em 1954, no seu «Homem da Nave» não hesita: 

«Nos batizados a caça fornecia o prato de resistência. Hoje é comer de ricos e há-de acabar por ser iguaria de lordes e de grão-duques, como o caviar».

Lições de escritores-caçadores dadas, mas não aprendidas. Alertas feitos por caçadores-escritores, mas não ouvidos. E chegamos à actualidade.
Eu, que dei o meu contributo ao desaparecimento da perdiz vermelha selvagem, que as abati no Alentejo e nas serras do Montemuro e da Nave, não vou assumir a papel de D. Nuno Álvares Pereira que depois de trespassar com a espada não sei quantos castelhanos, depois de lhes mandar a alma para o inferno, resolveu meter-se num Convento e, arrependido, preparar o caminho para a sua, de modo a que ela fosse sentar-se sossegadinha à mão direita do Criador.2
Não, não vou nada fazer isso. Mas, com 75 anos de idade feitos, vou dizer que, chegando eu a casa, em Castro Verde, nos anos 80 do século XX,  com seis perdizes no fim do dia de abertura da caça e as coloquei em linha sobre uma mesa de cozinha todo ufano, a minha mulher alentejana, filha de pai caçador e com tios caçadores, que não tinha lido o Bulhão Pato caçador, Aquilino Ribeiro caçador, o Rogério Horta e outros que tais, devotos de Diana ou de Santo Huberto, em vez de um elogio pela caçada, deu-me uma reprimenda, recriminando-me por «matar aquelas aves tão bonitas». Não abri boca, cintei as perdizes, sai de casa e fui distribui-las pelos tios e tias que moravam na vila.
Não houve guerra doméstica. Eu continuei a correr montes e vales, a fazer gosto ao dedo. Nunca mais entrou em minha casa peça caçada. Tiro e queda, quem cintava a peça caída era o meu companheiro de caçada e em casa dele ficava. A troco disso pagava a minha cota na Reserva Associativa de que fazíamos parte. 
Dito isto, reiterando que não vou fazer como D. Nuno, face à realidade vivida, ao que vi e ao que vejo, tenho de dar razão à reprimenda da minha mulher (já falecida) e não me custa nada fazer publicamente meu «ato de contrição», pois lembro-me bem que ainda sou do tempo de ver bandos e bandos de perdizes bravas na serra. Elas reproduziam-se todos os anos por montes e valados. Não havia reservas associativas nem chocadeiras elétricas para a reprodução.
Desaparecidas da superfície da Terra (nos espaços por mim batidos) acabadas que foram as coutadas temporárias, multiplicadas as reservas associativas, privadas, concelhias, o diabo a sete, nada, no meu critério, tem resultado. Arrumei a espingarda. Dei-a a um armeiro. Dada, mesmo dada. E não foi sem dor que me desfiz de uma companheira de muitos anos. Agarrei-me à câmara de filmar e mantenho o meu contato com a natureza. Do alto dos montes vejo um Portugal despovoado de gente e de bichos. Vejo um país entornado para o litoral, o interior desertificado. Ecossistemas destruídos. Vejo a «Tróia» de que falava Bulhão Pato e apetece-me ser Ulisses, meter-me mar dentro, deixar a ucha que não teve, nem tem governantes que, não obstante os alertas deixados pelos homens de letras, caçadores-escritores ou escritores-caçadores, nos deixaram chegar ao estado em que nos encontramos. Com 75 anos de idade, se andar perdido nas águas os 10 anos que andou Ulisses, pelo mar me ficarei sem  vontade de regressar a esta Ítaca que foi a minha terra natal.

 

Ler 1456 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.