Trilhos Serranos

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terça, 24 março 2015 14:06

CAÇA FURTIVA - RATOEIRAS

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A par do chó, aquela armadilha primitiva muito engenhosa para apanhar perdizes,  toda ela feita com materiais que o aldeão tinha ao alcance do seu braço, o caçador furtivo também fazia uso dos "ferros", uma espécie de ratoeira para caçar coelhos e até outros quadrúpedes de maior parte, nomeadamente raposas, gatos bravos texugos e demais fauna noturna bravia.

Saber armar uma ratoeira dessas resultava de uma aprendizagem que se recebia e transmitia de geração em geração. Para qualquer serrano era tão natural saber desempenhar essas artes, como natural era tapar uma narina com o polegar e atirar para longe o monco que lhe obstruía a irmã gémea, vias respiratórias desentupidas sem recurso aos vaporizadores hodiernos, que, aliás, nem sequer existiam nas boticas da época.

Ratoeira-RedzEstas armadilhas para coelhos, ainda que também fossem designadas por "ferros", eram vulgarmente conhecidas por "ratoeiras", como que a atestar o facto de que, em tempos mais remotos,  teria sido esse roedor a sua principal vítima.
Fazer uso desse zingarelho exigia muita perícia de mãos, força nos joelhos no momento da armação e conhecimento bastante dos hábitos da família leporídea: como se reproduzem os coelhos,  quando e onde dormem, quando cirandam, correm e pincham, o que comem e em que sítio descarregam, depois de digeridas,  as refeições que lhes dão músculo e o mantêm ágeis e saudáveis, prontos a porem-se na alheta, ao mais pequeno sinal de perigo. Tudo isso está escrito e preenche, de forma empírica, a cartilha serrana, saberes rústicos de quem conhece melhor os montes, os vales, carreiros e os trilhos onde foi nado e criado do que as linhas das palmas das  mãos, muitas delas encobertas ou desfeitas pelos calos advindos dos trabalhos que lhes coube em sorte executar neste «vale de lágrimas».

Diferentemente da lebre, que se alivia em qualquer sítio, carreiro, leira, caminho ou lameiro, parada ou em andamento, o coelho, certamente para marcar os seus domínios, vai sempre esvaziar a tripa em dois ou três sítios, vai sempre aos seus touralhos, pois assim de chamam esses quelhos.
Parece que a experiência de vida e as leis de sobrevivência lhe ensinaram não só a fazer isso, mas também a dormir alternadamente em camas diferentes, duas ou três, nunca muito longe umas das outras.

Quando um serrano encontra um touralho ou a cama de um coelho, conhecendo-lhe os hábitos, já sabe que, mais tarde ou mais cedo, se entretanto outro predador não se antecipar, ele terá a sua certidão de óbito assinada com uma mocada no toutiço, ou lavrada pelas mandíbulas dentadas de uma ratoeira, sempre a interrogar-se a si própria para que serve se o dono a deixa abandonada num canto da casa a ganhar ferrugem que lhe emperra as articulações.


Na minha aldeia, a bem dizer, não havia quem não soubesse disto e não pusesse em prática este saber que deve vir dos tempos em que o homem se tornou bípede e, a par dos frutos e raízes, encontrou na caça uma abundante fonte de alimentação. Mas séculos e séculos separam a flecha de sílex da ratoeira de ferro. Digamos que o pai ensinava ao filho o que aprendera com o seu pai, acrescido da sua experiência de vida,  a que não faltava a advertência de se poder ficar sem um dedo ou aleijado de uma mão para sempre, por causa de um momento de descuido ou excesso de confiança. Aquilo era perigoso, diferentemente do inofensivo chó para perdizes, feito de madeira com portas giratórias e dobradiças de crina de cavalo ou rabo de vaca.

Podemos assim dizer que esse exercício de caça furtiva era aprendido e praticado desde a mais tenra idade. De pequenino se torce o pepino. Na serra crescia-se a fazer coisas sérias e brincadeiras e jogos que só ao diabo lembram. Um deles, que vem a propósito anotar, era quando os rapazes faziam torneios e, à compita,  testavam qual deles mijava mais longe, qual deles era capaz de elevar o esguicho por cima do ombro e regar uma planta que estava nas suas costas. Tudo isso até à idade em que eram as biqueiras dos tamancos que recebiam a urina às pinguinhas, aquela idade em que há dificuldade de dobrar os joelhos e faltam as forças para calcar a mola da ratoeira, aquela idade em que se tem pouca firmeza nas mãos e desapareceu a perícia para colocar no sítio adequado, e em segurança, o prato e  pinchavelho  que servem de gatilho, as duas peças mais sensíveis desta engenhosa e mortífera armadilha.
Mas se todo o aldeão conhecia e praticava tais artes, nem todos faziam uso delas por rotina. Muitos, pouco amigos de madrugar, só o faziam em momentos de muita necessidade ou então para disporem de uma peita, retribuindo um favor a um médico, um professor, ou um funcionário de finanças. Mas havia uns tantos, com hábito tão arreigado na armação das ratoeiras, que a noite em que não fossem colocar os "ferros", digamos que fazer a cama a um coelho, era uma noite mal dormida sobre aquele colchão de estopa cheio de folhelho de milho que preenchia o retângulo da cama de ferro (coisa rara), de cabeceiras ornamentadas com uma mão a segurar um ramo de flores ou, em alternativa, uma coroa real. Estas mais raras do que aquelas. Ferros armados ao anoitecer obrigavam a levantar cedo, não fosse outro madrugador colher o produto da sementeira daquele que antecipara a preparação do terreno.

Digo bem. Era preciso preparar o terreno antes de armar a ratoeira. E consistia isso no seguinte. Descoberto o touralho verificava-se se ele era frequentado todas as noites ou não. E os sinais estavam nos excrementos frescos e na terra molhada. Caso não fosse, era certo que o proprietário tinha outro, ou outros touralhos por perto e fazia uso deles alternadamente. Identificados que fossem, passava-se à fase de observação das caganitas. Se eram frescas, se eram dessa noite, escuras e compactas ou ressequidas e castanhas com marca evidente de tempo passado. Tudo visto e estudado, remexe-se a terra e observa-se se o coelho não estranhou a mexida e continuou a servir-se do sítio.


Repetia-se isso até ao dia em que se decidisse ir buscar e meter na caçarola o espertalhão que não levou em conta o aviso do homem. Isto diferentemente daquele coelho que, mais avisado, sabe-se lá por quem, optou por fazer o touralho em cima de um penedo ou de uma laje, onde era impossível, abrir uma cova capaz de camuflar  a armadilha. E bem se via pelo tamanho dos excrementos ali deixados que esses coelhos tinham mais longa vida. Eram aqueles que, mortos a tiro, ou caçados a furão e rede, ditos farejadores, mostravam a sabedoria no tamanho e no pelo. Um castanho cor de fogo no cachaço, qual sombra das grandes orelhas que não cabiam na palma da mão do caçador,  era sinal de velhice e sabedoria.Touralho-1-Redz

Os outros, que corriam carreiros e caminhos a esgravatar e deixavam evidentes marcas de vida e brincadeira, ninhada nova garantida, esses, com touralho em terra mole, quando muito bem lhes apetecia, dirigiam-se para ele e, lá chegados, cada um de per si, apoiado nas patas traseiras, curva-se sobre elas, cauda arrebitada para o dorso, mosca branca a sobressair do cinzento geral da vestimenta, mãos no ar, patinha aqui, patinha ali, como que à procura da melhor posição... STRAP: as mandíbulas do mortífero engenho humano, até então abertas em círculo, camufladas sob uma ligeira camada de terra e ciscalhada,  fecham-se em meia lua,  traçam-lhe o corpo com tal rapidez que ele nem sequer tem tempo de expelir as continhas de rosário que, unidas por um fio, bem podiam ser desfiadas pelas mãos de muitos crentes nas suas orações. Não teve tempo de encomendar a alma ao Criador. Isso, se era apertado nos pulmões. Mas se o abraçavam pela bacia, em redondo nada havia ser, bicho ou gente, que não desse  pelo escarcéu infernal que fazia, enquanto tivesse fôlego. Punha em alerta os parentes próximos e não havia raposa, gato bravo, papalvo e outros predadores noturnos que não agradecessem a chiadeira. Atentos ao seu mundo, acorriam ali seguros de se banquetearem sem despenderem qualquer esforço na caçada. E não têm conta as vezes que o aldeão, chegado ali manhã cedo, tenha encontrado a ratoeira disparada, ensanguentada, rodeada de pedaços de pele e pelo. O coelho caíra na esparrela, mas morto não ficara nela. Servira de repasto a outro caçador furtivo que, com direito à vida, para escapar à morte e  perseguição que lhe dava o bicho-homem, fazia da noite dia e considerava seus todos os bens expostos ao luar.

 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.