Trilhos Serranos

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quarta, 31 dezembro 2014 15:38

MAÇONARIA

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O PROFESSOR DOUTOR AMADEU CARVALHO HOMEM, com página aberta no Facebook, vai colocando naquele seu espaço temas de reflexão e, inteligentemente, vai levando os seus amigos e/ou visitantes a servirem-se e a degustar o que ele põe na mesa, assim como quem não quer a coisa. Um dos últimos acepipes foi colar-se à postura de António Arnaut, defendendo (como ele) que todos os maçons se deviam assumir publicamente, o que logo levantou opiniões PRÓ, CONTRA e OUTRAS, provando assim a pontaria certeira do ARQUEIRO.

Até eu fui à liça e, bem acolhido na sua página,  não satisfeito com o que ali disse, resolvi retomar o assunto, aqui, na minha página, para consolidar a ideia acertada daquele académico quando diz ter conhecido "maçons sem avental", presumindo que eu era um deles.
Pois bem, dada a importância do caso, embora não pareça, o PROFESSOR fez muito bem em trazer a terreiro um tema que ainda é TABU e "vade retro" para muita gente,  tal a carga negativa que foi colada à MAÇONARIA, ao longo da História e, até, em tempos bem recentes. Eu vos digo.

Norton de Matos - ReduzNatural da aldeia de CUJÓ, a primeira vez que eu ouvi falar em "tal gente" tinha eu 10 anos de idade. Foi em 1949, no ano da candidatura de Norton de Matos à Presidência da República. Ele era o "homem do avental branco", coisa insólita para uma criança que de aventais, só conhecia os que usavam a mãe, as irmãs e as demais mulheres da aldeia. Daí nunca mais eu ter esquecido o nome do homem que, muito mais tarde, viria a ser uma das figuras históricas da minha simpatia, não apenas pelo ideário político, mas também pela sua escrita: os três volumes da sua  obra "Memórias e Trabalhos da Minha Vida" enriquem a minha biblioteca. Quem diria?

Mas, em 1949, numa aldeia que, religiosa e crente, nos domingos e dias santos, acorria inteirinha igreja a reboque do sino, qual formigueiro em busca de cibo alimentar,  falar de um «homem com avental branco», de um «maçónico», de um «pedreiro-livre» que queria ser Presidente da República, era uma forma "inteligente" de fazer campanha política e de desacreditar o candidato junto das populações. Os adversários em campo usavam as armas tidas por mais convenientes. Já imaginaram o que é um pároco dizer ao seu rebanho que tal homem não podia ser Presidente da República?

Também não esqueci o epíteto de "pedreiro-livre" pelos facto de, na altura, com a minha tenra idade,  "livres" eu considerar todos os "pedreiros" que na  aldeia e arredores levantavam casas e muros de socalco como forma de ganharem a vida. E eram muitos. Basta dizer que na divisão sócio-profissional registada no «Caderno Eleitoral de 1970» (manuscrito a que tive acesso muito anos depois) dos 189 cabeças de casal, 70 são pedreiros, arte em que também me "iniciei" por volta dos 18 anos de diade, ainda que para não a seguir definitivamente. Ela exigia boa perna para romper quilómetros e pé a distância que separava origem do destino, isto é, partir da aldeia até lá onde havia a obra para fazer. Exigia músculo de braço, força na mão e o salário semanal (a comer ou a seco) não compensava os calos que tornavam as palmas da mão duras que nem solas.

Não. Para mim, não. Impunha-se-me partir em busca de outra profissão, mesmo que fosse nos confins do mundo. E se bem o pensei, melhor o fiz. Fiz-me ao mar e, em Dezembro de 1961, o «Pátria» da pátria me levava até à costa oriental da África, Moçambique, cidade de Lourenço Marques. E assim vim a conhecer mais largo mundo e a distinguir o «pedreiro-livre» do pedreiro que, por gosto, ou falta de alternativa,  obrigado era a sê-lo.

É por isso (e não só) que acho interessante deixar aqui alguns aspectos da «liturgia iniciática» que envolvia a entrada nessa "Corporação de Pedreiros", nados e criado em Cujó.
A primeira coisa era aprender o «verbo» que só esses profissionais dominavam para falarem entre si, sem os demais circundantes perceberem patavina.  Por exemplo:  «argau, pára aímes caneio» = «companheiro, vem aí o patrão». Ou ainda: «pára lúzio santioso» = «está um belo dia de sol». Ou ainda «murrasca de pompelinas gidásticas» = «moça de grandes mamas». Quer saber mais? É só clicar no link que se segue:

http://youtu.be/5Yq9ByNgsVo?list=UU7F8Z0Zl7dH1As66bZKgmSg

Simultaneamente tomava-se conhecimento do nome, das formas e função das ferramentas usadas para transformar penedos inteiros em fatias e fazer delas o perpianho pronto a assentar numa obra destinada a durar séculos.

Nave-Carapito-reduzTudo tinha começo na escolha do penedo, com muita atenção às linhas do «correr» da pedra. Depois entravam imediatamente em acção os «ponteiros» e a «maceta», abrindo pequenos rasgos alinhados. Seguia-se o uso do «camartelo» e dos «guilhos». Estes metidos, aprumados e seguros, davam lugar ao manejo da «marra» que, com pancada alternada em cada um deles, pim...pim....pim...obrigavam o penedo a rachar tantas quantas vezes fossem necessárias. E era assim que uma massa granítica inútil, vinda do PALEOZÓICO, que somente servia de poleiro ao gado alado, que dormira séculos e séculos assapado na mesma cama, se desfazia em bocados e, à força e jeito do homem, tomava nova e útil serventia.

Tudo se aproveitava. E o aprendiz, de «pico» bem apertado nas mãos, devia evitar fazer-lhe três bicos, isto é, devia picar com força e a direito, evitando que a picada resvalasse lateralmente e, com isso, a bico oposto se partisse e voasse para longe, dando lugar a bico novo só recomposto e temperado na forja de ferreiro, à força do velho fole sempre a soprar para o carvão que amolecia o ferro incandescente pronto a ser «aguçado» à força de pancada sobre bigorna ou safra, metido seguidamente na água para receber nova têmpera. Um transtorno!

E a esquadria?

Os mestres picavam e alisavam um dos cantos da pedra. Era o começo. Deste iam ao outro e, unindo os dois, passavam ao terceiro e ao quarto, um após outro, esquadrinhando uma moldura em toda a volta onde assentavam a régua.  Eram assim lavradas as linhas mestras às quais teria de obedecer o desbaste interior por forma a facetá-la. Feita uma face, ia-a se a outra e, tombo daqui, vira que não vira, tombo dali, qualquer naco de rocha bruta obtinha as faces necessárias, pronto a subir ao lugar que lhe estava destinado na obra. Mas isso nunca antes de se  baloiçar nas cordas do "moitão" de madeira, obra-prima de carpinteiro experiente a rasgar-lhe a "alma" e a fixar nela os os "roletes" (as roldanas) que recebiam as cordas, cujo desdobramento permitia içar pesos que só visto. Tarefa acompanhada da cantilena que marcava o ritmo da conjugação das forças dos pedreiros agarrados às cordas: «oupa...lá vai ela....oupa....para o lugar dela....oupa....»

Lições de iniciação que perduraram pela vida fora. Mas antes desses rituais de trabalho, outra iniciação esperava o camponês, nascido em terras onde Jesus não rompeu as sandálias.
As casas rurais assoalhadas, na sua arquitectura tradicional e genérica, têm os quartos de dormir no primeiro andar e nos fundos as lojas destinadas aos animais. E foi nessas lojas onde me iniciei também a tirar o estrume de ano a ano, agarrado a uma «gancha» e a uma «forquilha». O suor corria em bica e o fedor tresandava, a ponto de náuseas e vómitos.
Feito e curtido era levado para as terras em carros de vacas tornando-as produtivas e verdejantes. E, se ainda hoje mantenho em memória tudo isso, é isso que, face ao deslumbramento manifestado pelos turistas e forasteiros, em férias, postos perante a beleza de certos quadros bucólicos reais que ainda vão dando cor e vida aos nossos campos e aldeias, quadros dignos de passarem para a tela pela mão de Monet e outros que tais, é isso, dizia eu, que me permite lembrar a todos eles que os ingredientes pictóricos e odoríferos presentes em tais quadros, não têm para mim o mesmo  encanto. Têm sim um misto de repulsa, mas também um desmedido respeito e admiração por todos os povoadores que persistiram em manter viva uma arte que eu, ainda jovem, recusei seguir para me iniciar noutras artes.

E de iniciação em iniciação, com 75 anos de idade feitos, sinto que a finalização se aproxima a passos largos. São as leis da vida! 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.