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terça, 20 janeiro 2015 14:48

CAÇA - DOIS COELHOS COM UMA CAJADADA

Escrito por 
PRIMEIRA PARTE

O provérbio que dá título a esta crónica não tem nada de agressivo. Já larguei a moca há muitos anos. Troquei-a pela caneta.  Nunca fui muito hábil a manejar uma e outra, mas faço-me entender e, neste caso, uso o anexim tão só por uma questão de comodismo, já que a semântica que ele carrega se presta perfeitamente a poupar-me trabalho, se presta a que eu, de uma assentada só, arrume  as leituras que fiz dos livros de dois autores distintos que tiveram a gentileza de me oferecer e me chegaram à caixa do correio no espaço de um mês. Face a tal obséquio,  sem nenhum deles me encomendar o sermão, impus-me a obrigação de sobre eles escrever algumas linhas, dando-lhes assim provas públicas de os ter lido. Então lá vai.

Num dos dias do mês de novembro do ano passado, depois da minha rotina matinal na vila de Castro Daire (pequeno almoço, passeata pelo Facebook, leitura da imprensa digital e almoço) regressei ao lar, doce lar, em Fareja. Chovia a potes. Casa antiga com paredes de metro de largura, portão de garagem automático a subir e a descer rés-vés à face interior, junto a ele e encostado na ombreira esquerda vi um embrulho de volume tal que logo deduzi o carteiro não ter conseguindo metê-lo na caixa do correio e, por isso, resolveu pô-lo ali, confiante de que seria visto por mim, à chegada. Não se enganou.

L.BastosTinha a feição de um livro e, enquanto arrumava o carro, disse para os meus botões: «chegou mais um livro do Dr. Lima Bastos», mais um da série que ele tem vindo a escrever sobre a obra de Aquilino Ribeiro e que, por gentileza, me tem oferecido.
Não. Não era. Tratava-se de «A Primeira República no Concelho de Arouca, 1910-1926» (Ed. Real Irmandade da Rainha Santa Mafalda) da autoria de José Nuno Pereira Pinto, pessoa que não fazia parte da minha roda de amigos. Passou a fazer, pois no mesmo correio chegou um «cartão de visita» timbrado, com nome e número de telefone.  Fiquei a saber que era um advogado com escritório em Matosinhos e o menos que eu podia fazer era telefonar-lhe a agradecer a oferta. Foi o que fiz e o resultado foi uma hora de conversa sobre livros e investigação da História Local. Com ligações à serra do Montemuro, mais propriamente a Alvarenga, tinha adquirido o meu livro «Implantação da República em Castro Daire» e, estando a investigar o mesmo tema, quis saber como se tinham passado as coisas nas terras limítrofes. Palavra puxa palavra, não tardou a remeter-me mais duas obras suas: «Alvarenga e o Motim de 1942» (ed. Associação de Defesa do Património Arouquense) e «O Celibato não é um Dogma de Fé» (ed. Orfeu) separata de obra sua de maior fôlego, da qual entendeu extrair agora, face à recente posição assumida pelo Papa Francisco sobre o assunto.

Três obras que, saídas da pena de um advogado, com escritório em Matosinhos,  portanto colega de profissão do Dr. Lima Bastos, a morar em Arcoselo (ambos a respirarem o iodo do mar) falavam-me da serra do Montemuro e das suas gentes. Falavam-me da História Local e da sua importância no todo nacional. Falavam de padres e das suas obediências e continências, sujeitos a normativos canónicos. E, estando eu à espera de mais um livro sobre Aquilino, não tendo esse livro chegado, li com avidez as «ofertas» do Dr. José Nuno, verificando, desde logo, que, com estilos diferentes, os conteúdos e protagonistas eram muito próximos daqueles que recheiam a obra do Mestre e seus biógrafos. Temos a serra do Montemuro, em vez da serra da Nave, temos as gentes camponesas, temos o volfrâmio, a euforia temporária dos pobres momentaneamente ricos, temos o motim e a caterva de prisioneiros levados para o Porto. Temos condenações, absolvições e amnistias, justiça e injustiça, temos a caça a um dos envolvidos nesse motim, julgado à revelia e fugido às grades da cadeia durante cerca de 20 anos (tempo da prescrição da pena de degredo para uma das colónias a que foi condenado), temos um cónego de Lamego a deslocar-se a Lisboa a interceder a favor dos prisioneiros, junto de Salazar, temos o pároco de Alvarenga a ignorar quem tocou os sinos a rebate. Enfim, coisa curiosa esta. Eu estar à espera de um livro sobre Aquilino Ribeiro, filho de um padre, e, em vez disso, entrarem-me pela porta dentro três livros, um a falar-me da República que Aquilino ajudou a implantar. Outro a falar-me do volfrâmio, minério que deu título a um livro de Aquilino. E  outro ainda a contestar, de forma erudita e fundamentada, o celibato, a obediência e a continência dos padres,  preceitos que o padre Joaquim Francisco Ribeiro ignorou, resultando daí o nascimento de um «filho natural» a quem foi dado o nome Aquilino Ribeiro, exactamente o escritor que eu esperava, trazido pela mão do Dr. Lima Bastos.  Ele há mesmo coisas do arco da velha.

Assim como assim, como a «cavalo dado não se olha ao dente» e me apercebi que havia ali novidades enriquecedoras da mente, meti-me a lê-los avidamente e devo confessar que os três, ao mesmo tempo que me preenchiam algumas lacunas de conhecimento, me davam o deleitoso conforto de estar com gente minha, a gente serrana, a mesma gente que Aquilino Ribeiro levou até aos meios urbanos, gente montesinha, muita da qual, podíamos dizer, do Marão, do Montemuro, da Lapa ou da Nave, nasceu e morreu sem ver o mar, num país de marinheiros e navegadores. Gente que, maioritariamente analfabeta, embarcou nas caravelas do escritor e viajou para longe, tal qual os leitores ribeirinhos, viajando em sentido inverso, pela mão do mesmo nauta, subiram à serra que igualmente ignoravam. Portugal, um pequeno retalho da manta Europa, sempre integrou muitos outros retalhos, muitos outros e diferentes portugais.

Desviado instantaneamente, por pensamento fugidio, retomo o fio da meada para dizer que, graças a um destes livros, cotejando a investigação do Dr. Pereira Pinto com a minha, fiquei a saber que a República, ao contrário do que seria de esperar, chegou a Castro Daire antes de chegar a Arouca. Perplexos ficámos ambos, pois tal facto contraria a ideia generalizada de que é das bandas do mar que o progresso chega ao interior do país. Ora,  neste caso, tal como rezam os documentos, os republicanos de Castro Daire, por antecipação, deram cartas aos políticos moradores em terras onde foi construído o Mosteiro de Santa Mafalda. Ainda a vila de Arouca não cheirava a República e já em 1906, a Vila de Castro Daire tinha empossada uma a Comissão Concelhia Republicana.  Quatro anos depois seria o fim de um regime de 800 anos. E só esta nesga de conhecimento, trazida por esta via, tivesse eu menos dez anos de idade, e envidaria todos os esforços para entender se tal se deveu à rebeldia das gentes serranas, ou à indiferença da velha nobreza rural acomodada às rendas e foros das terras em redor de tal Mosteiro.

Sobre «Alvarenga e o Motim de 1942» regista-se a solidariedade das populações na defesa do volfrâmio apreendido pela PVDE (mais tarde PIDE) acorrendo ao toque do sino e não deixando que o minério fosse levado pelas forças da ordem. O autor escalpelizou os processos judiciais e os relatórios neles inclusos, as respostas dadas pelos inquiridos, descrição dos factos pela Polícia. Tudo isso era matéria bastante para outro livro com o título «Quando os lobos uivam» do Mestre Aquilino, este mostrando as populações em defesa dos seus baldios,  aquele, mostrando a população de Alvarenga em defesa do seu volfrâmio.

Sobre o livro «O Celibato não é um Dogma de Fé» o autor, advogado de profissão,  ex-sacerdote, formado também em direito canónico, sapatos de verniz nos pés, viajando de Concílio em Concílio, sobrepondo cânon sobre cânon, constrói a sua tese e desmonta a tese contrária, aquela que defende e sustenta normativos anti-natura, cânones que, dito por outros autores que já me passaram pela mão, dizem ter sido impostos por governantes idosos, imperadores, papas, cardeais e bispos que, naturalmente impotentes por força da idade, órgão sexual murcho, concluíram que a sexualidade era dispensável aos demais clérigos.

Assim não pensou, porém, o Padre Joaquim Francisco Ribeiro, pai «natural» de Aquilino e, com Pereira Pinto no pensamento (as leituras feitas ficam no pensamento)  a Aquilino voltamos agora mesmo, pois, entretanto, o livro esperado chegou, são e salvo, à minha caixa do correio e tem por título «Aquilino Ribeiro, A Caça e uma Gaita que Assobia».
Mal o recebi, à semelhança do que fiz em vezes anteriores, acusei a recepção por e-mail, com os  seguintes dizeres:

P.Pinto«Caro Dr. Lima Bastos,

Desta vez, sem qualquer "vista de olhos" acuso a recepção do seu livro "Mestre Aquilino, A Caça e Uma Gaita que Assobia" (...) fique ciente de que, logo que possa, vou ferrar nele o dente e dizer-lhe, depois, se ele me soube mais a perdiz, a lebre ou a galinhola. E sobre uma "gaita que assobia" interpelo-me, desde já, se ela me virá a justificar ou a explicar este meu hábito atávico de andar na serra sempre a assobiar, mesmo quando, na caça, se me impunha que «calasse a gaita».

A interpelação referia-se ao velho hábito que me ficou dos tempos de pastor-menino de escola, sempre a assobiar no monte em redor das ovelhas, sei lá se para me entreter, se para espantar o medo. Talvez sim, talvez não, a seu tempo saberemos o significado deste subtítulo, mas certo, certo é que Aquilino Ribeiro, como muito bem lembra Lima Bastos,  caçadores havia que, para melhor se aproximarem de um coelho, usavam o estratagema de assobiarem e cantarolarem e o «pobre do bicho habituado ao babaréu dos pastores, rebolantes, assobiantes, cantarolantes, inocentemente faunescos, deixava que o monstro se aproximasse». (Oc. pp. 55)

Mas caminhemos mais devagar nesta incursão venatória. Antes de ferrar o dente a fundo nesta peça de caça de LB, nada melhor do que repescar para aqui o texto que eu próprio escrevi e publiquei, a propósito da releitura que ele fez sobre do livro «A Casa Grande de Romarigães», produzindo mais um dos seus livros sobre o Mestre. Assim:

«Lima Bastos, apostado no arejamento e na divulgação da obra do Mestre, palavras suas: «objectivo que persigo e hei-de perseguir enquanto as forças não me faltarem»,  fez-me revisitar, com grande prazer intelectual,  esta obra de Aquilino Ribeiro. Ora, pertencendo eu às duas grosas dos seus fiéis  leitores (também incluído no rol de amigos com direito a oferta da obra com amável dedicatória) sou um daqueles que tem beneficiado destas suas leituras, decalques e paráfrases, deste seu ler, reler, tresler, contar e recontar Aquilino,  bem dizendo ele que «uns tantos, de certo algum benefício colherão porque percebem destas podas ainda menos do que eu». Ora, no que a mim respeita, digo que acertou em cheio, pois, em tais artes,  podador de tesoura romba me confesso e nem os meus amigos mais chegados e  indulgentes convido a beber um copo da água pé que sai da minha lavra. E se eles a bebem, ou simplesmente provam, é tão só porque, com alguma habilidade,  a sirvo nos copos de cristal por eles fabricados. Por isso, digo já que, LB neste seu divagar pela obra do Mestre, neste seu contar e recontar as suas narrativas, neste seu trazer à tona dos dias as personagens, as paisagens, os aromas físicos e sociais aquilinianos adormecidos, com vista à sua reanimação, para lá da prosa escorreita a que ele nos habituou, salpicada com pitadas de ironia e de humor que só um sorumbático  incurável ou um condenado à forca sem esperança de ver estendida a corda da vida, se ficam indiferentes sem sorrir, sem achar piada, tempero literário que me parece ser a marca genuína do seu estilo».

Dito isto, coisa diferente não espero deste seu «Mestre Aquilino, A Caça e Uma Gaita que Assobia», tão habituado estou já ao paladar dos seus cozinhados e aos ingredientes que recheiam os pratos que serve à grosa dos seus comensais.

Diga-se, porém, que ao iniciar a caçada com Lima Bastos,  não consegui desligar-me totalmente dos livros do Dr. Pereira Pinto,  pois anotei  a coincidência de «caçadores» diferentes, vivendo em espaços diferentes, fazerem pontaria ao mesmo alvo. O Dr. Pereira Pinto, a debruçar-se sobre o celibato dos padres e o Dr. Lima Bastos,  seguindo Aquilino, a falar, desde o começo, sobre os padres das aldeias, todos eles exímios caçadores e, citando o Mestre, transcreve em itálico:

«A própria igreja consentia que o clérigo caçasse, do mesmo modo que pescasse na ribeira, bem embora tais funções se conciliassem mal com a brandura e mansidão que requer o estado e eclesiástico» (Oc. pp.29)

Lá mais para diante, para exemplo, traz a capítulo o abade de Pera Velha, Sebastião de Magalhães que, para melhor caçada, nunca dava passo na serra sem primeiro «se benzer, como quando abria o breviário» e que, depois de levantar um bando de perdizes, «não descansava enquanto as não dizimasse».. (Obc. pp 53)

Pois, pois. Não é gratuitamente que o Mestre Aquilino e o seu venerando discípulo, o Dr. Lima Bastos, despem a batina aos padres para os vestir de caçadores, para lhes colocarem a espingarda ao ombro e cartucheira à cinta. Páginas antes já nos tinham advertido de quanto salutar era a prática do exercício cinegético. E um dos benefícios de tal exercício era que "conservava a castidade". Tudo atestado pela autoridade da cultura clássica. E cita: «Foi por isso que Diana, para guardar a pureza, fugiu à conversação com os homens e se fez caçadora». (Oc. pp. 36)

O paciente leitor já se deu conta que eu saltei página para a frente, página para trás na caça destas citações. Não estranhe esse meu ir e tornar, pois tal é próprio do caçador a bater montes, esforçando-se para que, em terreno virado de fresco, leiva sobre leiva, ou terreno vestido de carquejas e sargaços velhos, não fique acachapada e escondida em qualquer prega da semeadura, ou arbusto rasteiro,  peça que valha a pena levantar e mereça um tiro e coisas diabo a sete.

Coisas de caçador, desporto que o Dr. Lima Bastos confessa «ab initio» nunca ter exercido, pedindo perdão aos seus leitores por se meter a falar de caça, sem nunca ter dado um tiro.

Atribui isso ao facto singular de, por defeito de nascença, não piscar o olho esquerdo e, sendo dextro, «ipso facto»  incapacitado estava  de fazer pontaria ao que quer que fosse. E acerca dessa sua deficiência natural conta-nos umas estorietas que, por economia de tempo, espaço e incentivo à leitura do seu livro, não reproduzo aqui, confessando embora que elas me deram mil voltas na cachimónia. Elas tanto me cheiravam a estórias verdadeiras, como a autênticas petas,  bem inventadas e melhor contadas. Na dúvida, atendendo ao odor semântico exalado pelo terreno que pisava, o da literatura, conclui que ele, disposto a pôr nos escaparates um livro sobre caça, decalcando o Mestre Aquilino, acabava de me dar provas de poder entrar no «Clube de Caçadores, Pescadores e outros Mentirosos». E eu, caçador encartado, apressei-me a apadrinhar-lhe a entrada como sócio, sem pagar «joia». E foi assim que, por proposta deste par do reino, animal, vegetal e outros bichos, ele passou a integrar a linha de caçada sem o penso improvisado que, em menino, pôs sobre o olho esquerdo, sem o seu amigo de infância Sancho Pança, a  seguir o seu amo D. Quixote, pronto a tapar-lhe, com uma das mãos, o olho que se recusava a imitar o irmão gémeo, morador do outro lado do nariz, se calhar, «alto ao meio e não pequeno» semelhantemente ao de Bocage, tão exímio a esquadrinhar um soneto, como a engendrar uma anedota.

Feito isto, tornado assim caçador encartado, eu, afoito e cheio de vontade, dispus-me a segui-lo, campos fora e, citando-o, garanto que ambos podermos usufruir do «exercício físico ao ar livre e num ambiente saudável por excelência, dos laços de amizade e de companheirismo que se vão forjando do conhecimento mais íntimo e perfeito da natureza e dos seus segredos que, por via de regra, escapam aqueles que, constituindo a maior parte da humanidade, com vontade ou sem ela, tiveram de se adaptar a formas de viver citadinas» (Oc. pp. 16)

E a este respeito, falar de ar livre, companheirismo, ambiente saudável, não era eu que, levantando-se-me uma peça de caça aos pés, a deixasse ir sem levar fogo. Por isso, de espingarda aperrada, melhor dizendo, de espingarda na bolsa e de câmara de filmar empunhada, aí vai chumbo em forma de vídeo. Foi feito exactamente na Serra da Nave e alojado no Youtube no ano de 2012. Creio que não errei o alvo. O caçador entrevistado é o meu colega Professor Campos, um «homem invernoso» (curiosa expressão) que, em poucas e eloquentes palavras, nos fala da raridade das espécies, do companheirismo entre colegas e das anedotas que se vão contando em «linguagem vernácula», mas sem ofensa para ninguém. « http://youtu.be/ksdAnB_VK88»

Mas às anedotas, ou melhor, às estórias de caçadores, produto que nunca falta no farnel de quem exerce tal arte, voltaremos lá mais para diante. Neste passo de descanso da caçada é oportuno dizer que esta «obrinha» de Lima Bastos, como é seu hábito referir-se-lhe, é, tal como os demais, um trabalho meritório. Há muito tempo que eu esperava por alguém, quiçá um estudante ou um professor, que, numa licenciatura ou tese de mestrado, penetrasse no Kruger Park de Aquilino e, ali chegado, apartasse, em clareira visível, as espécies e as artes venatórias que ele deixou dispersas em toda a área de caça que calcorreou com espingarda e pena. E quem diz da caça diz da pesca e da culinária, seguindo o método de LB, v.g. recreando e/ou animando cenários, aqui e além de cunho próprio, ou usando método diferente, como seja transcrever, tão só, os  textos originais. Qualquer deles, fosse qual fosse o método seguido, era para mim bem-vindo, sendo certo, porém, que o método de LB nos prenda com comentários, explicações, achegas adicionais e com as pitadas de humor sempre indispensáveis numa roda de amigos que sofregamente desfaz a merenda, uma broa de milho fatiada aos bocados, um salpicão caseiro trinchado às rodelas, ao mesmo tempo que esvazia as vasilhas de branco ou tinto para ajudar a acamar no alforge interno tudo o que passou pelo estreito, depois de muitos quilómetros andados a calcar mato. E  alguns, alombando ou não com a grade, caçam ali o seu valente pifão. E é nessa roda de amigos, sob o nevoeiro etílico num jogo de esconde, esconde, que se desenrolam as mais eloquentes e inverosímeis estórias, aquelas que dão significado ao letreiro escrito no frontispício dos tais clubes:  «aqui só entram caçadores, pescadores e outros mentirosos».

SEGUNDA PARTE

Sendo um livro cuja mira LB apontou à caça, desporto a que me dediquei, digamos, até ontem, (alternando embora a mira da espingarda com a objectiva da câmara de filmar)  mal andaria não deixar nesta crónica alguns laivos da minha experiência, omitir o testemunho de quem voluntariamente apadrinhou, como ficou dito, a entrada de Lima Bastos na Confraria de Santo Huberto, sem ele o ter pedido. Basta-me, para tanto, transcrever, exactamente, o que escrevi no meu livro «Memórias Minhas» editado em 2006 e somar-lhe mais um vídeo alojado no Youtube «http://youtu.be/KB8tPJOYWkg» cujas imagens legitimam e dão força ao que escrevo e digo, esperançado de que Lima Bastos, face a este meu escrito, sinta algum orgulho do  padrinho que teve e, desta forma, o leva, com todo o gosto, aos andurriais da Nave, sem tirar os pés da escalfeta. Ai vai:

 «Gosto da caça. Gosto do monte, da serra e do vale. Da Natureza. Deslumbro-me com os contrastes do relevo e das cores, da variedade de plantas e arbustos. Para mim, é como se atrás de cada urgueira ou giesta, atrás de cada penedo solitário, depositário de mil segredos, estivesse sempre não uma moura encantada, mas uma maga celta, uma virgem pronta a deixar de sê-lo, exalando o inebriante perfume do rosmaninho e do feno (...)

Em cada farrapo de nuvem fugidio a beijar as cristas das serras da Nave e do Montemuro, vejo a Fada Morigan a velar pela fecundidade do mundo vegetal e animal de que faço parte integrante, no qual me passeio e me divirto. A caça desperta em mim o instinto selvagem pre-histórico, aquilo que a civilização não apagou na minha relação com a terra e com os animais, o elo que me prende aos mais longínquos antepassados, aos ancestrais modos de sobrevivência e relação humanas» (Memórias Minhas». 2006, pp. 109)

Deixei de fora as «estórias» que vivi e ouvi durante os anos que suei atrás do rabo da minha cadela Diana e de outros cães que tive, inclusive, aqueles que, na casa dos meus pais, me ajudaram a crescer e a conhecer as manhas da caça e do caçador.

Lima Bastos reconta-nos algumas encontradas no baú de Aquilino Ribeiro. E saborosa é aquela do manjar de lebre que veio à mira do Padre Magalhães, depois de encher o bandulho no burro morto do moleiro. Era isso que tornava a carne de lebre saborosa. Parco foi, porém, naquilo que nenhum caçador encartado dispensa, ainda que, nessa matéria, bem tenha começado com aquela estorieta da sua lavra, aquela de não piscar o olho esquerdo, a mesma que, no meu entender, serviu de «jóia» de entrada no clube dos «caçadores» e outros que tais.

Pois eu, a pedido de um comparsa de Lisboa, Nuno Sebastião, que teve o trabalho de me localizar e telefonar a pedir para escrever algumas das minhas vivências venatórias, agradado que ficou com o que sobre a caça eu escrevi e ele foi ler na Biblioteca Nacional, quero deixar aqui algumas que, creio, serem dignas de ilustrarem estes torneios.

1 - O PADRE POUCO CATÓLICO

Um padre caçador tinha lá em casa uma criada cuja beleza atraía ao passal todo os moços das redondezas. Chegavam de longe como se fossem cães que farejassem cadeia à queira. O padre veio a saber que um deles incluía o grupo dos seus amigos de caçadas. Um dia, durante a merenda na serra, procurou ficar junto dele e, já bem comidos, com aquela gentileza e hipocrisia clerical, estendeu-lhe uma garrafa de vinho branco, dito da sua lavra. O mancebo agradecido e maravilhado, a pensar que se tinha o padre no papo, no papo tinha a criada,  levou a garrafa à boca e assentou-lhe forte. Só que, acto contínuo, para espanto de todos, afastou-se vomitou tudo o que tinha comido, gritando: «mas isto é mijo». Não é não, isso é vinho novo da pipa que tu andavas a tentar furar.

E mijo era mesmo. O abade, preparara a patifaria com antecedência e, para tanto, antes que a criada despejasse o bacio das excreções nocturnas, surripiou-lhe as urinas e encheu a garrafa. Foi zanga da grande, mas o padre e a criada livraram-se daquele pretendente.

2 - A  BALA FAMINTA

Em África era raro o caçador que perdesse tempo atrás de caça miúda, sendo que a mais miúda eram as rolas. Raros eram aqueles que se metiam mato dentro com uma espingarda «calibre doze», mas todos, ainda que tais armas fizessem parte do arsenal caseiro, carregavam arma de bala, dos mais diversos calibres. Em África a caça são as gazelas, jacarés, leopardos, jiboias e outros animais que não se põem à cinta. E sobre caçadas e caça dessa, não faltavam figurões a contarem as estórias mais estapafúrdias, inconcebíveis de acontecer aos olhos do cidadão comum que nunca deixou as ruas das cidades.
Uma noite, depois de tanta e tanta aldrabice, um deles saiu-se com esta: estão para aí com um repertório, façanha atrás de façanha, senão patranha atrás de patranha, mas isso tudo, ao pé do que me aconteceu a mim,  é de meninos de coro.

Conta lá, pedem os outros. Pois bem todos sabeis que sempre andamos com arma de bala e todos sabeis também que ali, junto ao Zambeze, as rolas se apinham naquelas árvores secas das suas margens. Parecem árvores de Natal.  Pois há dias, à falta de caça grossa, para afinar a pontaria, resolvi pôr a mira numa e «tau», caiu redonda. Fui apanhá-la e ainda a não tinha levantado, quando me caiu outra aos pés. E a seguir mais outra. E outra mais. Elas caiam como flocos de neve em Bragança todos os invernos que lá vivi e foram muitos.

Como assim? Perguntam os outros embasbacados. Intrigado com isso, olhei para cima e vi que a bala andava atrás delas. Matou-as todas, da primeira à última.

3 - A LEBRE TONTA

Os montes da Beira são rasgados por trilhos, carreiros e caminhos que ligam povoações e terrenos agrícolas. Alguns desses caminhos, com a largura suficiente para a passagem de um carro de vacas, são emparedados lateralmente por terras altas que, para serem túneis, só lhes falta a cobertura. Pois uma bela manhã regressava um lavrador de uma leira onde fora levar uma carrada de estrume e, para poupar as pernas, subiu para o carro e encostou-se à parte da frente da sebe. Para quem não sabe explico que a sebe serrana, geralmente feita de vime ou de carvalhiço fatiado, têm a forma da porta de uma igreja de arco redondo, só que posta na horizontal presa às chedas do carro por um palmo de estadulho que penetra nos furos abertos para isso. Tal como dizia, regressava ele naquele lugar e naquela posição, a atravessar um desses caminhos fundos, quando viu o seu cão a perseguir uma lebre em direcção às traseiras do carro. A lebre, tendo pela frente o carro de vacas e por trás o cão, sem escapatória lateral, deu um salto para cima do carro e foi-se meter num tamanco que o lavrador tinha tirado do pé por causa de um calo no dedo mendinho que o andava a incomodar. O cão aparvalhado  nem deu pelo voo da presa e o lavrador só teve o trabalho de lhe pôr as gadunhas e tirar-lhe o chiadouro com uma cacetada atrás das orelhas. Quando contou o sucedido, ninguém acreditou. Mas ele tinha duas coisas que atestavam a veracidade do facto: era uma pessoa tida por idónea e não era caçador.

CONCLUSÃO
Estou grato a estes dois estudiosos pela gentileza das ofertas que me têm feito das suas obras. Eles me permitiram discorrer sobre o que escreveram, eles me permitiram dar esta prova de discernimento e de vida. Ambos a residirem lá para as bandas onde bafeja a salgada maresia, resolveram calcorrear os trilhos serranos e protegidos de botifarras cardadas, não temeram o tojo agressivo, a arranhadela da áspera carqueja e a inesperada chicotada da viçosa giesta.

Um, com sapatos de verniz nos pés, a par da grande travessia que fez sobre alcatifas e passadiços que o levaram a concílios e cânones para provar que o celibato não é um dogma, dispôs-se também a espiolhar os arquivos, lá onde quer que estivessem os documentos e, com botifarra calçada, mostrar à luz do mundo aspectos da História Local, cujos protagonistas não respiram o ar poluído das grandes cidades.

Outro, peneirando e crivando a obra ficcionada de Aquilino Ribeiro, naquela sua saga de manter vivo um mundo morto (um mundo político, agrário,  social, venatório, económico e literário) naquele seu jeito para a culinária, tal como confessou numa das suas primeiras obras, arte agora reiterada, foi-se às «eiras» do Mestre, joeirou o produto da sua malha e confeccionou um prato de caça e pesca há muito desejado por todos os adoradores de Santo Huberto. Um prato «comestível», termo que nos faz retornar ao subtítulo do seu livro: «uma gaita que assobia» que desde logo interpelei. Explica LB, no fim da sua obrinha que o caçou em Aquilino Ribeiro citado como aforismo português: «senhoria sem comedoria é gaita que não assobia" justificando que sendo o autor "uma senhoria" na arte das letras nos deixou "importantes comedorias», daí que, deduzo eu, lambuzando-nos com elas, possamos arrotar e assobiar, depois de cada refeição.
Cá por mim, que de barriga vazia, passei os primeiros anos de vida na serra sempre a assobiar, hábito que não perdi em adulto de barriga cheia, aproveito a boleia, dando de barato a minha experiência de calcador de brenhas e matos, deixo aqui a evidente pincelada desse mundo morto, escrita em 1993, no meu livro  «Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva», onde se mostra que já na década de 60 do século XX, os moradores-caçadores de Cujó, a troco de «dez reis de mel coado», se desfizeram das suas armas de caça de carregar pela boca, coisa impensável anos antes.

Transcrevo:

«A CAÇA

No sentido exacto da palavra, a caça não era propriamente um desporto para os habitantes de Cujó, em tempos idos. Mais do que ocasião para passar o tempo e distrair, sem contudo deixar de ser também isso, a caça era essencialmente praticada como meio de aquisição de carne, complemento alimentar dos produtos agro-pecuáriia. As perdizes, lebres, coelhos e galinholas caçadas a tiro, chós, ratoeira e laço, substituíam e ajudavam a poupar o porco, dividido em retalhos dispersos pelas salgadeira e pelos varões do caniço: «foi por ser poupadinho, que a carne do meu porquinho me chegou ao entrudinho», como diz o rifão.

Às vezes a caça era também produto de venda, ou, então, seguia rumo a Castro Daire e Lamego para pagar algum favor prestado por oficial de diligências, oficial de secretaria do Tribunal, Câmara ou Finanças, por se ter prestado a fazer um inventário, um requerimento, a livrar o aldeão de subir a montanha de papéis, de se perder na floresta das letras e corredores das repartições públicas. Mas as peças de caça eram também peita, cunha de militar no activo ou na reserva, membro de júri ou nele influente, onde se decide, ou não, da entrada nos quadros da Polícia, Guarda Republicana ou Guarda Fiscal do mancebo que resolveu trocar a capucha pela farda, os tamancos pelas botas. Há menos de meio século, não havia em Cujó, ou quase não havia, habitante que não possuísse um canhangulo de carregar pela boca, que não soubesse armar uma ratoeira num toiralho de coelho, pôr um laço num carreiro para uma lebre nele se autoestrangular, armar um chós à entrada de uma leira para apanhar vivas uma mancheia de perdizes. Arte aprendida, mais do que ensinada, praticada à revelia das autoridades venatórias que subiam à serra a verificar licenças, até as de moca, não deixavam os caçadores de levar por diante os seus intentos, bastando-lhes, para tanto, os apetrechos respectivos e «olho vivo e pé ligeiro».

Vem a propósito contar aqui o que se passou com cerca de uma dúzia de armas de carregar pela boca, utilizadas por esses caçadores-habitantes, armas que, depois de terem chincado mil vezes em falso e outras tantas com resultado, resolveram abandonar as terras frias da montanha e emigrar para as terras quentes de África, na esperança, por certo, de ali mostrarem que ainda estavam em condições de não serem remetidas ao silêncio tenebroso dos museus.

Aconteceu que, pelos anos sessenta apareceu em Cujó um cidadão desconhecido, dito em férias na Metrópole, residente em Angola e amigo de João de Carvalho, natural daquela aldeia, irmão de Salvador de Cujó, ali residente. Contactou este, apresentou-lhe recomendações do seu irmão e pediu-lhe o seu contributo no sentido de enriquecer a sua colecção de armas antigas.

Sim senhor. Oito dias depois, vendidas por «dez reis de mel coado», umas tantas armas deixam os montes de Cujó e seguem destino desconhecido.
Tudo se passou dentro do estrito espírito comercial e ainda assim seria entendido hoje (1993) se, pouco tempo depois, não tivesse rebentado a guerra anticolonial naquela, então, província ultramarina e, por denúncia feita por pessoas que souberam do negócio, dele não tivesse sido dado conhecimento à PIDE.


Conhecedora do facto a Polícia Política não tarda a estabelecer a relação entre os três intervenientes no negócio: João de Carvalho, em Angola, o seu amigo que se desloca de licença à Metrópole, a venda das armas por Salvador de Carvalho, irmão do primeiro. É isso. O trio pertence ao complot antirregime, à oposição comunista (toda a oposição era comunista) que apoia os movimentos terroristas. Há que agir e agiram.
Um dia, ao cair da tarde, um táxi deixa a vila de Castro Daire rumo a Cujó. No cimo da aldeia, fora do povoado, os agentes deixam o automóvel e o condutor, feito com eles, desce à povoação. Arranja um pretexto para falar com Salvador de Carvalho e, vindo este à sua presença, simula ter o carro avariado e pede-lhe para ele o ir ajudar a empurrar, o que prestavelmente fez. Chegados ao carro surgem os agentes intimam-no a entrar e, sem dar por isso, eis um homem preso. Mas não chega só ele. Arrancada às lides domésticas, vestida com as roupas de trabalho, tal como o marido, a esposa é também atraída ao carro. Juntos seguem para a Esquadra da Polícia de Castro Daire, onde, em separado, são submetidos a interrogatório.


Na aldeia, porém, o caso não passou despercebido. E começa o pandemónio. Salvador de Carvalho não era comunista, nem opositor ao regime. Tinha desempenhado mais do que uma vez o cargo de Presidente da Junta e era também legionário com funções de responsabilidade nas estruturas locais. Incomunicável embora, enquanto decorria o interrogatório, eis que no exterior da Esquadra, as hostes legionárias se movimentam pelo telefone, pondo as hierarquias a par do que se passava. A Polícia Política, porém, não desarma nem se comove com o retenir do telefone. Podia estar na presença de um agente duplo e pouco lhe importava as garantias dadas por coronéis, majores ou capitães. E só noite alta os interrogados viram novamente a liberdade. Os agentes não levaram nada, porque nada tinham para levar.

Salvador de Carvalho vendeu mesmo as armas. Negou-o no interrogatório «ia lá dizer que sim»!, mas depois disso sempre se interrogou sobre qual o verdadeiro destino que elas levaram: colecção particular de antiguidades ou guerra colonial? E a par desta dúvida uma certeza: os métodos utilizados pela PIDE, tanto no acto da prisão, como no acto do interrogatório" (Ob.c. pp.170-172)

E aqui chegados, certo de que nesta altura da caçada já o leitor adoptou o aforismo que escolhi para o título desta crónica, direi que estes dois «lenhadores na floresta das letras» para manterem acesa a fogueira do intelecto, para atiçarem as labaredas do conhecimento e do saber, subiram às serras do Montemuro e da Nave e, cada um a seu jeito, curvaram a espinha e recolheram os necessários gravetos para acendalha, a lenha miúda, os troncos de pinheiro, carvalho ou castanheiro, para, de seguida, se refastelarem à lareira, pernas esticadas, braços estendidos, mãos abertas em pás, a desfrutarem o calor do seu trabalho. Diferentemente dos antigos possidentes de castelos, palácios e casas solarengas que, dos seus domínios senhoriais dispersos pela serra, levados pelos seus vassalos ou enfiteutas rendeiros,  povo de pé descalço, recebiam o carvão e o demais material combustível para alimentarem os fogões e lareiras dos seus salões sem medida.
Ontem como hoje. As serras sempre forneceram a energia consumida nos grandes meios ou nos meios grandes. Se ontem era o carvão, a lenha e a palha, hoje estão infestadas de geradores eólicos,  a fornecerem a energia que faz girar o mundo. A energia que alimenta toda a espécie de indústria, toda a variedade de aquecimento, todo o equipamento técnico indispensável à fogueira do conhecimento e entendimento:  computadores, televisões, telemóveis, Ipads, e quejandos, pilheiras que armazenam cinzas de imagens e de textos escritos sem caneta, papel ou tinta. Cinzas que sempre escondem um pequeno tição que aparece a dar sinais de que, queimados 75 anos de vida, ainda se não apagou de todo e que se reacende face ao contacto com oxigénio que até ele chegou, espevitado que foi o borralho pelas mãos que tão, habilmente, manejam o mexo. Como queriam que eu não estivesse grato a estes dois  estudiosos que, sem me encomendarem o sermão, me obrigam a discorrer sobre leituras, vivências, experiências e factos históricos acantonados nos escaninhos da memória? A ambos acompanho nesta sua incursão na serra. A abmos acompanho, de podão em punho, no desbaste dos obstáculos que se opõem à caminhada. Como socialista, republicano e laico, sem laços de sangue ou de amizade que me liguem a qualquer clérigo em particular, dou a mão a José Jorge Pereira Pinto na sua caminhada contra o celibato,  o que ele fez, como ex-sacerdote, usando uma linguagem bem mais moderada do que Pepe Rodriguez, no seu livro «Mentiras Fundamentais da Igreja Católica» que ao mesmo assunto se refere nos termos seguintes: «houve uma altura que era tão normal os clérigos terem uma concubina, que os bispos acabaram por instaurar a chamada 'renda das putas', uma espécie de multa que devia ser para em dinheiro pelo faltoso ao respectivo bispo sempre que transgredia a norma em vigor» (Terramar, 2001, pp. 338).

E na mesma condição acompanho Manuel Lima Bastos na saga defensora da obra do
Mestre Aquilino. Mas, deste último, me aparto em alguns troços do trajecto. E explico. Daquilo que conheço da obra do Mestre, amante da caça, polvilhada que está com os odores na natureza, sacudida do pó de incenso, páginas que tresandam a hedonismo, sarcasmo, senão troça com que ele retratou os clérigos a que deu sonantes nomes, rostos rosados,  proeminentes ventres  e barbelas besuntadas e caídas (de fora ficam as amizades pessoais e de convivência social, como é próprio de uma pessoa educada), elementos da Igreja que, como instituição, também lhe não caía no goto, enquanto responsável pela educação do povo, como decorre da leitura que ele fazia da infelicidade de D Amélia, «desditosa na sua vida de rainha dum país pobre, maltrapilho, semibárbaro, devorado pela política e estúpido por força da educação ministrada pela Igreja e por Coimbra» (in «Um Escritor Confessa-se», (pp. 299).

Sabida a sua biografia de republicano e carbonário, cidadão revolucionário -  «a geração a que pertenço nasceu revolucionária, as gerações que alvoreceram  depois de mim, revolucionarias perduraram» (Idem, pp. 300)  - eventualmente ligado ao regicídio de 1908 (fiquemo-nos pela versão que ele deixou dos acontecimentos na obra citada, não tão clara quanto outras versões escritas, bem taxativas pela afirmativa), recuso-me, com todo o respeito,  a acompanhá-lo na afirmação por si feita de que Aquilino «foi sempre um homem de igreja» (Ob.c. pp. 59), mesmo que ele venha apoiado em incandescentes e luminosas labaredas que, reconheço humildemente, se sobreporem à minúscula luminescência deste resistente tição sem brilho, adormecido nas cinzas do borralho de uma ignota lareira serrana. Mas é sempre bem-vindo a minha casa,  seja na companhia do meu Aquilino republicano e revolucionário, seja na companhia do seu Aquilino «sempre homem de igreja».

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.