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sábado, 21 junho 2014 12:45

CARLOS ALMEIDA PEREIRA - CIÊNCIA E ÉTICA

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Em 22 de Outubro de 2008, publiquei no meu velho site «trilhos serranos» um artigo com o título «CASTRO DAIRE - O ORGULHO DE TER SIDO PROFESSOR», artigo esse suscitado pelos currículos académicos de dois ex-alunos meus, na Escola Preparatória de Castro Daire.
Eles, e mais uns tantos, integravam uma turma que não raro, em Conselhos de Turma, eram apelidados de «rebeldes e insuportáveis» por parte de alguns colegas meus, mais acostumados a debitarem as matérias do que a explicá-las. Em tais circunstâncias sempre chamei a mim a sua defesa, fazendo ver aos colegas que não podíamos chamar «rebeldia» à «exigência e ao interesse» que eles manifestavam em querer saber mais, puxando pelo professor, obrigando-o a reformular as questões e, quantas vezes, a dar novo rumo à aula planificada.

Como bem me lembro! Eu gostava deles assim, irrequietos, interpelantes, a puxarem por mim,  sempre ávidos de irem mais além. Eu testava-os, mas eles também me testavam a mim. A experiência bem mo dizia. Eu procurei não defraudar tanto empenho e corresponder, sempre, aos seus ensejos, vê-los felizes nos caminhos da aprendizagem, da descoberta e até alguma competição entre eles por melhores notas.
Acabado o ciclo, passados à fase escolar seguinte, despedi-me deles como de todos os outros, dizendo-lhes que estaria sempre ao seu dispor,  caso necessitassem. Não necessitaram. Os passarinhos levantaram voo em diferentes direcções, tornaram-se adultos, mas, por força da naturalidade, nunca os perdi de vista e alguns deles, desaparecidos que foram para o estrangeiro, voltaram ao meu contacto via Facebook.

Aposentado, deixada a profissão, com 75 anos de idade, a bem dizer quase a despedir-me do mundo, muito me alegra manter com eles, ainda, uma esporádica relação académica e social e constatar que, tantos anos depois, eles se referem a mim com amizade, simpatia, elegância e reconhecimento do meu esforço nesse rasgar dos seus horizontes juvenis. Alguns deles (e delas) fizeram-no aqui mesmo, no Facebook, espaço que também serve para estas manifestações de gratidão humana.

O artigo publicado em 2008 tratava dos «curricula» de Luís Filipe M. D. Monteiro Pontes e de Carlos Alberto Fernandes de Almeida Pereira. Surpreendi ambos com a publicação do rosto das suas Cadernetas Escolares, aquela folhinha onde, em registos vários,  eu anotava o resultado dos testes a que eram submetidos, o seu comportamento e os níveis atingidos anualmente em cada disciplina. Nem os alunos, nem as suas cadernetas foram para mim coisas descartáveis. Uma forma de viver o ensino, viver a profissão, um jeito de estar dentro, fora e aquém da escola.
Retomo o assunto, desta vez não para falar dos dois, mas de um só. É que recebi, com amistosa dedicatória, um livro do Carlos, produto da adaptação da sua tese de doutoramento, publicada pela «Edições Afrontamento» com o título «Ciência e Ética» e subtítulo «A investigação em células estaminais». Os seus pais, Adérito Duarte Pereira,  natural de Cujó, e Maria Estela Fernandes de Almeida Duarte Pereira, natural dos Braços, têm boas razões para se orgulharem dos filhos que têm: o Carlos, de que falo,  e o Luís Filipe, que todos conheço muito bem e tenho por amigos.

CAPAEm 2008, ilustrei, como disse, o currículo académico do Carlos com o rosto da sua CADERNETA ESCOLAR. Hoje deixoCURRICULO aqui a capa do livro, mais o texto do seu currículo académico, transcrito da badana da contracapa. E face ao que vejo e leio, pouco mais me resta do que sentir-me ORGULHOSO de ter sido seu professor, na Escola Preparatória, e deixar o AGRADECIMENTO por ele se ter lembrado de mim, prendando-me com este seu trabalho científico, erudito e bem estruturado, onde se vislumbra, como não podia deixar de ser, o dedo orientador da Professora Doutora Maria Manuel Araújo Jorge, que também prefaciou a obra, bem como o esmero das «Edições Afrontamento», com nome no mercado livreiro, diferentemente dessas editoras de APARTADO que por ai vão surgindo como cogumelos à caça de patrocínios.

Prometi ler o livro e fi-lo. Poderia lá deixar de ser!?

Acompanhei o Doutor Carlos na empolgante caminhada que ele fez sobre a evolução do conhecimento e da ciência através dos tempos,  desde os pensadores gregos aos pensadores, artesãos e engenheiros dos nossos dias. Acompanhei-o no mito de Prometeu, no pecado de Adão e Eva, na dialética/separação entre saber empírico/saber científico, teorias geocêntrica/heliocêntrica, questões de investigação, ciência pura/ciência aplicada, o esboroar de fronteiras entre elas,  obstáculos postos na investigação (a Bíblia pelo meio), os benefícios do conhecimento aplicado à humanidade,  as artes liberais e as artes servis, coisas de moral e de ética, passámos pela sombria floresta da Grande Guerra, o holocausto medonho, Nagasaki e Hiroshima, sempre lembradas e nunca a esquecer, fruto da ciência devastadora,  trilhos por mim pisados em tempos idos, levado por autores e leituras diversas e muitas.  Senti-me à vontade na sua companhia, recordando paisagens de estudo e de saber, revisitando tempos e espaços, relembrando os nomes dos protagonistas que deram o seu contributo à ciência e à cultura, que moldaram formas de pensar e de agir do homem, que interferiram no porvir do mundo com os seus estudos e ideias, tudo, mas não sem alguns tropeções dados por mim, aqui e ali, na hermética linguagem da sua formação científica e na sua prolixidade discursiva, não sei se por força da matéria tratada, se por força do seu estilo expositivo. Enfim, uma viagem de trabalho e de saudade por espaços, tempos e personagens conhecidos.
Boa companhia, mas quando ele derivou para veredas novas, ciências e conceitos emergentes, vasilhas com conteúdos para mim pouco familiares,  paladares ignotos, comecei a sentir-me desconfortável. E foi, então, a vez de se inverterem os papéis: o ex-aluno passou a ensinar o ex-professor. Eis um exemplo:

«(...) A função estaminal, por conseguinte, consiste na capacidade de divisão e diferenciação deste tipo particular de células. Elevada ao expoente máximo no zigoto - ente vivo na sua forma mais simples, constituído após a justaposição das estruturas genéticas transportadas nos gâmetas haplóides que, precisamente por processos de divisão e diferenciação, na execução da sua proficiência estaminal, originam todo um corpo complexo e com capacidades funcionais a partir da expansão em tecidos e órgãos - e nos blastómeros - células embrionárias das divisões iniciáticas (duas, quatro, oito células); residual, ainda que efectiva, em células maduras adultas, como as células da camada basal da pele que, dividindo-se e diferenciando-se, apenas poderão originar queratinócitos; e em graus diversos de capacidade diferenciadora, nos múltiplos órgãos e tecidos somáticos, a função estaminal é responsável, ao longo da vida pela garantia da suplência das células diferenciadas que se vão destruindo.
A investigação em células estaminais focaliza-se fundamentalmente no estudo da função estaminal humana ‘ex-vitro’ e ‘ex-vivo’ e na análise das possibilidades de aplicação sob condições controladas, das proficiências médicas daquelas entidades orgânicas (...)» (pp. 154-155)

Sim, uma autêntica  lição, pois que sei eu de BIOÉTICA e de CÉLULAS ESTAMINAIS para lá do que me diz o Google e o que vou ouvindo nas entrevistas e lendo nos média? Que sei eu da postura dos cientistas que põem o resultado das suas pesquisas ao serviço da humanidade e daqueles que, em nome de qualquer coisa, de valores seus, tomados universais,  problematizando mais do que resolvendo, obstaculizam não só a investigação, mas também a aplicação dos resultados conseguidos com as suas pesquisas?
Por força da minha formação académica não posso deixar ter presente que, no âmbito da investigação e da evolução do conhecimento humano, bem como da sua aplicação em benefício da humanidade, a HISTÓRIA está recheada de nós-cegos que ataram a CIÊNCIA e a RELIGIÃO. Nós-cegos  feitos e desfeitos por mãos que, cheias do BEM e do MAL, da MORAL e da ÉTICA, se esforçaram, umas, para os apertar mais, e outras, para os desenlaçar.

E para não meter foice em seara alheia, para não me pôr a especular sobre matéria que não domino, ainda que, tal como os especialistas e qualquer cidadão esclarecido, me interrogue sobre o porvir, passo a palavra a Maria Manuel Araújo Jorge, que no Prefácio e excerto passado para a contracapa do livro, nos esclarece:

«A relação temporal da ética, dos valores extra-epistémicos (de bem e de mal, de desejável ou indesejável em função do bem-estar humano) com os valores epistémicos, com os factos, começa a ser recusada, como o texto nos vai mostrando, ao acompanhar o aparecimento e instalação do novo saber bioético. A exigência de uma ética preventiva, que diante de um projecto de investigação já desenhado, tenta trazer valores social e moralmente importantes para dentro do laboratório, altera de modo relevante a forma como o investigador tem agora de trabalhar e, naturalmente, as prioridades de uma tradicional ética do conhecimento. Carlos Almeida Pereira oferece-nos uma reflexão atenta e argumentada sobre a dificuldade do investigador, ainda educado eticamente de uma forma tradicional, se ajustar aos novos pedidos sociais e denuncia o empobrecimento da densidade ética ao passar a ser percebida, apenas, como normatividade a respeitar, para se poder fazer investigação».

Paradigmas de valores perdidos. Paradigmas de valores emergentes e desejados. Não só bioéticos. E neste morrer e nascer, ocorre-me a figura de uma sentinela celta postada no seu ninho de águia, no topo da montanha, atenta ao invasor que se aproxima do reduto amuralhado. Os limites de convivência e vida estão definidos e, se não estão, há que defini-los e respeitá-los, não apenas como normativos aceites comummente, mas, para bem da tribo, como conduta assumida e responsável do vigilante.

Hoje, como ontem, sempre haverá quem condene a travessura de Prometeu e haverá quem a elogie. Hoje, como ontem,  sempre haverá quem veja no gesto pecaminoso de Eva o romper das grilhetas em busca da liberdade e quem lhe atribua os males que avassalam a Terra. Hoje, como ontem, há quem pesadamente coloca o pé no acelerador da máquina do mundo em que viajamos, ansioso de chegar mais depressa ao destino, que é o bem-estar da humanidade, e quem, por cautela, por medo ou por atavismos de formação, de doutrina ou de escola, ponha o pé no travão, e proponha ou imponha novas leis de trânsito. Avançar sim, mas tão depressa é que não.

E nesta encruzilhada de avanços e de hesitações, no balançar do acelerador e do travão, ora tente não caias, amante e estudioso que sempre fui da evolução do pensamento humano, da evolução científica e da aplicação ao bem-estar da humanidade dos resultados conseguidos, seguro estou de que o investigador, seja qual for o ramo de saber a que se dedica, qual mola que faz saltar o mundo de estádio em estádio, impulsionado pelo desejo de bem-querer e bem-fazer, não deixará de escorar-se no padrão ético mais conforme com os interesses últimos da HUMANIDADE, os interesses dos habitantes deste grão de areia que vagueia no espaço infinito.
E grato estou a este meu ex-aluno por me ter permitido acompanhá-lo nas suas reflexões académicas sobre a CIÊNCIA E A ÉTICA e discorrer sobre as suas preocupações que são também as minhas. Preocupações dele que retiro da parte final do livro capítulo «CONCLUSÕES» parte «3.TERMINUS»:

«As linhas traçadas não perfilham o intento de estigmatizar a ciência ou a actividade investigacional. Conquanto que as encarem como esforço supressor das dificuldades orgânicas do homem, empresa compensatória da sua inépcia biológica, arrogam-lhe, ao invés, o estatuto de retribuição evolutiva indemnizatória, compensação pelas prostrações resultantes de metafórica expulsão do Jardim do Éden. Mas tangem a angústia saudosa de uma equabilidade ingénita entre ética e ciência, consumida nas veredas turbulentas do "cientismo" moderno e contemporâneo -  talvez em processo de recuperação». (Pp. 195)

Já confessei, lá mais acima, que às vezes, me foi difícil penetrar no pensamento do autor, deste meu ex-aluno, seguramente por virtude da minha iliteracia no ramo de investigação a que se dedica e do imbricado produto com que me prendou. Não aconteceu isso neste último parágrafo. Entendi-o perfeitamente e creio que escolheu um bom remate para a sua tese. Este seu «TERMINUS» sugere-me que termine, que dele me despeça, com a «Pedra Filosofal» de António Gedeão que, a propósito evoco, por ser um poema, cujo conteúdo não se circunscreve, nem  se mede, seguramente, pela métrica  rimada da poesia:

«Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
Passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança».

 

Abílio/Junho/2014

 
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.