Como bem me lembro! Eu gostava deles assim, irrequietos, interpelantes, a puxarem por mim, sempre ávidos de irem mais além. Eu testava-os, mas eles também me testavam a mim. A experiência bem mo dizia. Eu procurei não defraudar tanto empenho e corresponder, sempre, aos seus ensejos, vê-los felizes nos caminhos da aprendizagem, da descoberta e até alguma competição entre eles por melhores notas.
Acabado o ciclo, passados à fase escolar seguinte, despedi-me deles como de todos os outros, dizendo-lhes que estaria sempre ao seu dispor, caso necessitassem. Não necessitaram. Os passarinhos levantaram voo em diferentes direcções, tornaram-se adultos, mas, por força da naturalidade, nunca os perdi de vista e alguns deles, desaparecidos que foram para o estrangeiro, voltaram ao meu contacto via Facebook.
Aposentado, deixada a profissão, com 75 anos de idade, a bem dizer quase a despedir-me do mundo, muito me alegra manter com eles, ainda, uma esporádica relação académica e social e constatar que, tantos anos depois, eles se referem a mim com amizade, simpatia, elegância e reconhecimento do meu esforço nesse rasgar dos seus horizontes juvenis. Alguns deles (e delas) fizeram-no aqui mesmo, no Facebook, espaço que também serve para estas manifestações de gratidão humana.
O artigo publicado em 2008 tratava dos «curricula» de Luís Filipe M. D. Monteiro Pontes e de Carlos Alberto Fernandes de Almeida Pereira. Surpreendi ambos com a publicação do rosto das suas Cadernetas Escolares, aquela folhinha onde, em registos vários, eu anotava o resultado dos testes a que eram submetidos, o seu comportamento e os níveis atingidos anualmente em cada disciplina. Nem os alunos, nem as suas cadernetas foram para mim coisas descartáveis. Uma forma de viver o ensino, viver a profissão, um jeito de estar dentro, fora e aquém da escola.
Retomo o assunto, desta vez não para falar dos dois, mas de um só. É que recebi, com amistosa dedicatória, um livro do Carlos, produto da adaptação da sua tese de doutoramento, publicada pela «Edições Afrontamento» com o título «Ciência e Ética» e subtítulo «A investigação em células estaminais». Os seus pais, Adérito Duarte Pereira, natural de Cujó, e Maria Estela Fernandes de Almeida Duarte Pereira, natural dos Braços, têm boas razões para se orgulharem dos filhos que têm: o Carlos, de que falo, e o Luís Filipe, que todos conheço muito bem e tenho por amigos.Em 2008, ilustrei, como disse, o currículo académico do Carlos com o rosto da sua CADERNETA ESCOLAR. Hoje deixo
aqui a capa do livro, mais o texto do seu currículo académico, transcrito da badana da contracapa. E face ao que vejo e leio, pouco mais me resta do que sentir-me ORGULHOSO de ter sido seu professor, na Escola Preparatória, e deixar o AGRADECIMENTO por ele se ter lembrado de mim, prendando-me com este seu trabalho científico, erudito e bem estruturado, onde se vislumbra, como não podia deixar de ser, o dedo orientador da Professora Doutora Maria Manuel Araújo Jorge, que também prefaciou a obra, bem como o esmero das «Edições Afrontamento», com nome no mercado livreiro, diferentemente dessas editoras de APARTADO que por ai vão surgindo como cogumelos à caça de patrocínios.
Prometi ler o livro e fi-lo. Poderia lá deixar de ser!?
Acompanhei o Doutor Carlos na empolgante caminhada que ele fez sobre a evolução do conhecimento e da ciência através dos tempos, desde os pensadores gregos aos pensadores, artesãos e engenheiros dos nossos dias. Acompanhei-o no mito de Prometeu, no pecado de Adão e Eva, na dialética/separação entre saber empírico/saber científico, teorias geocêntrica/heliocêntrica, questões de investigação, ciência pura/ciência aplicada, o esboroar de fronteiras entre elas, obstáculos postos na investigação (a Bíblia pelo meio), os benefícios do conhecimento aplicado à humanidade, as artes liberais e as artes servis, coisas de moral e de ética, passámos pela sombria floresta da Grande Guerra, o holocausto medonho, Nagasaki e Hiroshima, sempre lembradas e nunca a esquecer, fruto da ciência devastadora, trilhos por mim pisados em tempos idos, levado por autores e leituras diversas e muitas. Senti-me à vontade na sua companhia, recordando paisagens de estudo e de saber, revisitando tempos e espaços, relembrando os nomes dos protagonistas que deram o seu contributo à ciência e à cultura, que moldaram formas de pensar e de agir do homem, que interferiram no porvir do mundo com os seus estudos e ideias, tudo, mas não sem alguns tropeções dados por mim, aqui e ali, na hermética linguagem da sua formação científica e na sua prolixidade discursiva, não sei se por força da matéria tratada, se por força do seu estilo expositivo. Enfim, uma viagem de trabalho e de saudade por espaços, tempos e personagens conhecidos.
Boa companhia, mas quando ele derivou para veredas novas, ciências e conceitos emergentes, vasilhas com conteúdos para mim pouco familiares, paladares ignotos, comecei a sentir-me desconfortável. E foi, então, a vez de se inverterem os papéis: o ex-aluno passou a ensinar o ex-professor. Eis um exemplo:
«(...) A função estaminal, por conseguinte, consiste na capacidade de divisão e diferenciação deste tipo particular de células. Elevada ao expoente máximo no zigoto - ente vivo na sua forma mais simples, constituído após a justaposição das estruturas genéticas transportadas nos gâmetas haplóides que, precisamente por processos de divisão e diferenciação, na execução da sua proficiência estaminal, originam todo um corpo complexo e com capacidades funcionais a partir da expansão em tecidos e órgãos - e nos blastómeros - células embrionárias das divisões iniciáticas (duas, quatro, oito células); residual, ainda que efectiva, em células maduras adultas, como as células da camada basal da pele que, dividindo-se e diferenciando-se, apenas poderão originar queratinócitos; e em graus diversos de capacidade diferenciadora, nos múltiplos órgãos e tecidos somáticos, a função estaminal é responsável, ao longo da vida pela garantia da suplência das células diferenciadas que se vão destruindo.
A investigação em células estaminais focaliza-se fundamentalmente no estudo da função estaminal humana ‘ex-vitro’ e ‘ex-vivo’ e na análise das possibilidades de aplicação sob condições controladas, das proficiências médicas daquelas entidades orgânicas (...)» (pp. 154-155)
Sim, uma autêntica lição, pois que sei eu de BIOÉTICA e de CÉLULAS ESTAMINAIS para lá do que me diz o Google e o que vou ouvindo nas entrevistas e lendo nos média? Que sei eu da postura dos cientistas que põem o resultado das suas pesquisas ao serviço da humanidade e daqueles que, em nome de qualquer coisa, de valores seus, tomados universais, problematizando mais do que resolvendo, obstaculizam não só a investigação, mas também a aplicação dos resultados conseguidos com as suas pesquisas?
Por força da minha formação académica não posso deixar ter presente que, no âmbito da investigação e da evolução do conhecimento humano, bem como da sua aplicação em benefício da humanidade, a HISTÓRIA está recheada de nós-cegos que ataram a CIÊNCIA e a RELIGIÃO. Nós-cegos feitos e desfeitos por mãos que, cheias do BEM e do MAL, da MORAL e da ÉTICA, se esforçaram, umas, para os apertar mais, e outras, para os desenlaçar.
E para não meter foice em seara alheia, para não me pôr a especular sobre matéria que não domino, ainda que, tal como os especialistas e qualquer cidadão esclarecido, me interrogue sobre o porvir, passo a palavra a Maria Manuel Araújo Jorge, que no Prefácio e excerto passado para a contracapa do livro, nos esclarece:
«A relação temporal da ética, dos valores extra-epistémicos (de bem e de mal, de desejável ou indesejável em função do bem-estar humano) com os valores epistémicos, com os factos, começa a ser recusada, como o texto nos vai mostrando, ao acompanhar o aparecimento e instalação do novo saber bioético. A exigência de uma ética preventiva, que diante de um projecto de investigação já desenhado, tenta trazer valores social e moralmente importantes para dentro do laboratório, altera de modo relevante a forma como o investigador tem agora de trabalhar e, naturalmente, as prioridades de uma tradicional ética do conhecimento. Carlos Almeida Pereira oferece-nos uma reflexão atenta e argumentada sobre a dificuldade do investigador, ainda educado eticamente de uma forma tradicional, se ajustar aos novos pedidos sociais e denuncia o empobrecimento da densidade ética ao passar a ser percebida, apenas, como normatividade a respeitar, para se poder fazer investigação».
Paradigmas de valores perdidos. Paradigmas de valores emergentes e desejados. Não só bioéticos. E neste morrer e nascer, ocorre-me a figura de uma sentinela celta postada no seu ninho de águia, no topo da montanha, atenta ao invasor que se aproxima do reduto amuralhado. Os limites de convivência e vida estão definidos e, se não estão, há que defini-los e respeitá-los, não apenas como normativos aceites comummente, mas, para bem da tribo, como conduta assumida e responsável do vigilante.
Hoje, como ontem, sempre haverá quem condene a travessura de Prometeu e haverá quem a elogie. Hoje, como ontem, sempre haverá quem veja no gesto pecaminoso de Eva o romper das grilhetas em busca da liberdade e quem lhe atribua os males que avassalam a Terra. Hoje, como ontem, há quem pesadamente coloca o pé no acelerador da máquina do mundo em que viajamos, ansioso de chegar mais depressa ao destino, que é o bem-estar da humanidade, e quem, por cautela, por medo ou por atavismos de formação, de doutrina ou de escola, ponha o pé no travão, e proponha ou imponha novas leis de trânsito. Avançar sim, mas tão depressa é que não.
E nesta encruzilhada de avanços e de hesitações, no balançar do acelerador e do travão, ora tente não caias, amante e estudioso que sempre fui da evolução do pensamento humano, da evolução científica e da aplicação ao bem-estar da humanidade dos resultados conseguidos, seguro estou de que o investigador, seja qual for o ramo de saber a que se dedica, qual mola que faz saltar o mundo de estádio em estádio, impulsionado pelo desejo de bem-querer e bem-fazer, não deixará de escorar-se no padrão ético mais conforme com os interesses últimos da HUMANIDADE, os interesses dos habitantes deste grão de areia que vagueia no espaço infinito.
E grato estou a este meu ex-aluno por me ter permitido acompanhá-lo nas suas reflexões académicas sobre a CIÊNCIA E A ÉTICA e discorrer sobre as suas preocupações que são também as minhas. Preocupações dele que retiro da parte final do livro capítulo «CONCLUSÕES» parte «3.TERMINUS»:
«As linhas traçadas não perfilham o intento de estigmatizar a ciência ou a actividade investigacional. Conquanto que as encarem como esforço supressor das dificuldades orgânicas do homem, empresa compensatória da sua inépcia biológica, arrogam-lhe, ao invés, o estatuto de retribuição evolutiva indemnizatória, compensação pelas prostrações resultantes de metafórica expulsão do Jardim do Éden. Mas tangem a angústia saudosa de uma equabilidade ingénita entre ética e ciência, consumida nas veredas turbulentas do "cientismo" moderno e contemporâneo - talvez em processo de recuperação». (Pp. 195)
Já confessei, lá mais acima, que às vezes, me foi difícil penetrar no pensamento do autor, deste meu ex-aluno, seguramente por virtude da minha iliteracia no ramo de investigação a que se dedica e do imbricado produto com que me prendou. Não aconteceu isso neste último parágrafo. Entendi-o perfeitamente e creio que escolheu um bom remate para a sua tese. Este seu «TERMINUS» sugere-me que termine, que dele me despeça, com a «Pedra Filosofal» de António Gedeão que, a propósito evoco, por ser um poema, cujo conteúdo não se circunscreve, nem se mede, seguramente, pela métrica rimada da poesia:
«Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
Passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança».
Abílio/Junho/2014