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quarta, 12 março 2014 13:27

TRIBUNAL DE CASTRO DAIRE (4)

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DA FICÇÃO À REALIDADE

PARA UMA MELHOR JUSTIÇA (4)

Resumidamente: discorri a partir do volumoso processo arquivado na Capela de S. João de Fareja, que nos dá a saber que os moradores desta aldeia obtiveram, no ano de 1755, uma sentença favorável à sua causa no tribunal de 1ª instância de Castro Daire, confirmada depois pelo Tribunal da Relação do Porto, em 1759 e por aí não há de ficar, como veremos.  
Por essa sentença era-lhes reconhecido o direito às águas que desciam desde o Porto Meal e Vale de Vila, junto da povoação de Vila Pouca, para irrigação e outros usos, não podendo os moradores de Baltar de Cima desviá-las da Levada de Fareja, sob a pena cominatória de 6$000.

Tribuban.Sentença1 

E não fora o zelo dos moradores de Fareja, não tivessem eles o cuidado de preservar tão precioso documento, isto é, as sentenças saídas quer do tribunal de 1ª instância, em Castro Daire, quer dos Tribunais da Relação, do Porto e de Coimbra, por onde o caso passou, por discórdia e apelação das partes envolvidas, nada saberíamos sobre isso, a não ser por via oral. Mas ficaram os documentos como se vê no excerto, ao lado, da sentença de 1755.

 

3.3  - A SENTENÇA DE 1860

 Mas no ano de 1860, vejam bem, cerca de um século mais tarde, dois moradores de Fareja, nomeadamente o Padre Luís Ferreira de Almeida e Manuel Ferreira TribunalSentença-2 Sentença-1de Paiva (este último, na altura, dono da casa que hoje me pertence por compra) no sentido de fazerem valer os direitos consignados naquela sentença, solicitam às Justiças do Reino para que a «pena cominatória de 6.000 reis», aplicada aos moradores de Baltar de Cima, fosse elevada ao montante de «40.000 reis» todas as vezes que eles desviassem as águas que, do «Porto Meal», perto de S. Paio (lugarejo primitivo mais tarde integrado em Vila Pouca, que não existia), corriam para Fareja, na levada com princípio no Vale de Vila, pois elas eram pertença desta povoação, desde tempos imemoriais, e delas precisavam os moradores para as suas terras, gados, moinhos, lavagem de roupa e apagar incêndios.

Não estavam pelos ajustes os moradores de Baltar de Cima, a saber, os herdeiros, filhos e noras, de Manuel Rodrigues Ferreira e mulher, Maria Pedreira, a saber, José Lourenço e mulher, António Rodrigues Ferreira e mulher, José Ferreira e mulher, Manuel Rodrigues Ferreira e mulher, mais Maria Parenta Ferreira, viúva, do lugar de S. Paio. Todos juntos mais o Padre António Rodrigues Ferreira.
Esgrimiram-se argumentos nos tribunais e estes, desta vez, não deram razão aos moradores de Fareja. A questão da pena cominatória não foi alterada e tudo ficou na mesma. Os moradores de Fareja ficaram com o direito às águas e os de Baltar de Cima obrigados a deixá-las correr sob pena de pagarem a «coima» sentenciada.

3-4  - A SENTENÇA DE 1944

Apesar do caso ter transitado em julgado, os moradores de Vila Pouca, (antiga S. Paio, de onde era a viúva Maria Parenta Ferreira, uma das partes no processo de 1860) e de Baltar de Cima, nunca se deram por satisfeitos e, de quando em vez, ressuscitavam a «questão». A última vez que o fizeram foi em 1939. Posta no tribunal de Castro Daire, depois de julgada e recorrida, subiu à Relação de Coimbra (1943) e acabou por ser deicida na Supremo, em Lisboa, em 1944. Sempre a favor de Fareja.
 Nesta última situação, e tratando-se de uma questão de águas, bem poderíamos dizer que não havia água que chegasse para apagar o fogo, o ânimo que opunha as partes. Do lado de Fareja toda a gente se mobilizou em prol da causa. Todos participaram com o seu quinhão segundo as posses e áreas de terra a irrigar. E do Brasil, para o mesmo efeito, em 1952, dos 9.900$00 que os «pardais» ali imigrados, solidários com os seus conterrâneos, conseguiram em peditório, chegaram 8.830$00, devendo-se a diferença ao câmbio, como diz José Augusto Ferreira, em carta dirigida ao Sr. Alfredo, de Fareja, datada de 3 de Julho, desse mesmo ano.

Ganha que foi a questão no Supremo, (quosque tandem?) ficou célebre na região o cortejo folclórico e provocatório que os moradores de Fareja fizeram à vila de Castro Daire, gratos ao seu advogado mandatário, Dr. Pio Cerdeira, a quem ofereceram uma vitela, para lá dos honorários.

3.5  - A LEVADA

Tribunal-Levada.-1E, arrumada assim a questão das «Águas de Fareja», vem a propósito de lembrar que os direitos adquiridos pelas gentes da povoação têm as correspondentes obrigações. E o caso é que, para se beneficiar das águas sentenciadas em 1755, em 1759, 1860 e 1944, há que limpar anualmente a levada, com cerca de 1,5 quilómetro de comprimento e, nesse serviço colectivo, deve participar um elemento ou mais de cada comparte beneficiário. Essa tarefa tornou-se bastante facilitada a partir do momento em que, ao longo do seu percurso, se puseram manilhas abertas, e respectivos desvios com os dinheiros da CEE, na década 90. Parece ser essa a sina de Portugal, quando se praticava a agricultura a água corria em rego de terra batida, depois disso fizeram-se os regadios.  É, neste caso,  a prova cabal do desfasamento entre a  política e a realidade camponesa, mutatis mutandis, que desfasamento haverá entre as leis e a sua interpretação em certos passos deste processo? Teremos de discorrer sobre isso, lá mais para diante.


3.6 – LIBELO JUDICIAL ENTRE  PINHEIRO E ESTER

  Libelo por mim tratado no livro «Ester, Pegadas no Tempo». Travado entre os anos de 1861 a 1864, nele se opunham a freguesia de Ester e a freguesia de Pinheiro, disputando a posse e usufruto dos baldios Ládário, Martim, Cebolim, Seixo Branco, Pedras Negras, Marca dos Campos Cabreiros.
Ester tinha como advogado mandatário Máximo Germano P. da Cunha (avô do meu amigo, senhor António Augusto da Cunha, comerciante que foi na vila de Castro Daire, muito conhecido e respeitado, falecido há meia dúzia de anos) e a freguesia de Pinheiro estava representada pelo advogado António G. Ferreira de Lacerda. Em 1864 a sentença foi favorável à freguesia de Ester, lavrada por um tribunal arbitral que foi constituído por juízes nomeados pelas partes. Juízes que decidiram «segundo os ditames da sua consciência».
A sentença e a sua homologação transitaram em julgado no dia 4 de Dezembro de 1864 e a paz fronteiriça parece ter regressado à serra até 1880, ano em que António Cardoso Duarte, pediu ao Juízo de Direito da Comarca de Castro Daire uma certidão de tudo o que se passou 16 anos antes. Ignoro para que fins. (cf. Abílio Pereira de Carvalho, «Ester, Pegdas no Tempo», pp. 68-71)

3.7 – CONSIDERANDOS

Quando fiz todas essas publicações, baseadas em processos judiciais históricos, com personagens da nossa história nacional e/ou da história local, sobretudo a que diz respeito à aldeia dos Aivados, publicada no «Diário do Alentejo», em 1982, ainda alguns protagonistas ligados à governação do nosso país, seja da área da Política, da Economia, da Educação e da Justiça, andavam a ler o Tio Patinhas e o Tintim, andavam, nessa altura, a passear-se dos Patinhas para os Tintins, resultando que, de tanto lerem a BD, algo desses personagens lhes moldaria a personalidade e a vida adulta. Do Tintim, certamente, ficaria o gosto pelas aventuras e fantasias e do tio Patinhas o gosto e ganância pelo dinheiro.
Uns e outros passeiam-se por ai agora emproados a debitarem sabedoria sobre política, economia, educação e justiça, sendo certo que alguns dos que hoje estão ligados ao foro, nem sonhavam, então, como se instruía um processo, o que era um requerimento, um mandado, uma contestação, um despacho, uma réplica e uma tréplica.

Posto isto, direi que quando escrevi o «Julgamento», esse romance histórico, livro onde entrosei a história local documentada com a ficção, discorrendo sobre a Justiça em Portugal, longe estava eu de pensar que viria a ser forçado a intentar a acção no Tribunal Judicial de Castro Daire, acima referida e que teve o desenvolvimento que veremos ao desfiarmos um novelo que, na procura da verdade e reposição de direitos adquiridos, mostrará que alguns intervenientes nos autos, pelo seu «modus operandi» se mostraram mais empenhados em defender os seus interesses profissionais do que em servir a JUSTIÇA e procurar a verdade dos factos e de direito.  

 

(continua)

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.