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quinta, 06 fevereiro 2014 07:48

AQUILINO - CADA LIVRO É UMA EIRA

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Evadido do presídio do Fontelo, em 1928, Aquilino Ribeiro procurou refúgio nos «andurriais da serra da Nave» na companhia de uma ‘mannlicher’ e um saquitel de 125 cartuchos», material fornecido pelo seu amigo, Luís Figueiredo, de Lamas, «detentor de algumas armas de guerra provenientes do último e abortado levantamento».
Conhecedor da zona e sabendo que a sua aldeia de Soutosa era como que um dédalo de «ruas enrodilhadas, cheias de cotovelos e quelhos, as casas encavaladas umas nas outras» qual madrigueira de raposa, interrogava-se sobre «quem o iria desentocar daquele labirinto celtibérico».

Aris-Refúgio-1Afoito e confiante na sua companheira, diz ter recebido o amigo Eurico de Sousa «à sombra de um castanheiro nas abas da aldeia», onde recebeu também a «homenagem pessoal do Administrador de Barrelas» através de quem mandou dizer ao «Cavaleiro e Cabo Mateus que mandassem gente para o prender». E remata dizendo que ninguém se atreveu a tal. Contudo, e apesar da sua ousadia, diz ter tomado as respectivas precauções. Ouçamo-lo em discurso directo: «ia dormir a uma eira no povo de Ariz, para o que tinha de fazer um percurso de três quilómetros, de noite, através de mata contínua. Acompanhava-me às vezes o meu filho Aníbal, que ao tempo ia nos treze anos e guiava-nos o António Fernandes que dormia ao pé de nós, esperto e fiel como um mameluco. O seu sentido de direcção enchia-me de pasmo. Acontecia termos de fazer a jornada pela mata fora, com um escuro de cortar à faca. Pois ele levava-nos direito à cardenha, sem errar um palmo, coimo uma bala. Já o pai, o velho Calhorra, fora assim. Ele e a égua Ferreira deslindavam os entrelaces e a maranha dos itinerários, melhor que uma linheira às linhas enoveladas». (in «Um Escritor Confessa-se»)

Ora, calcorreando eu, anos a fio, mais o meu primo Manuel Carvalho Soares, a Serra da Nave e arredores, em tempo de caça às perdizes, algumas vezes, nos sentámos a comer perto da cardenha referida por Aquilino, cuja foto, a preto e branco, se encontra no livro «Ariz» de Manuel Alcino Magalhães, editado em 1998, pela Junta de Freguesia.

Este autor acrescenta alguns pormenores que Aquilino deixou no tinteiro. Diz que Aquilino pretendia, para seu esconderijo, «uma casita de arrumações, ou um simples pardieiro, desviado da povoação, apenas para dormir». Para esse feito foi «contactado António Ferreira (carpinteiro) (…) proprietário de um pequeno palheiro nas lajes, a menos de duzentos metros da última casas. Tornou-se o dormitório de Aquilino por alguns dias».

 Fui falar com a filha de António Ferreira, D. Quitéria Gomes Ferreira com 80 anos de idade, neste ano da graça de 2008. Confirmou tudo isto e acrescentou que o senhor Adolfo era quem levava a comida ao escritor quando ele se acoitava no palheiro. Ali mesmo, bem pertinho do sítio onde, nós, eu e o meu primo, em dias de caça, tantas vezes, navalha em punho, usufruindo as horas de lazer a gosto nosso, esvaziámos o farnel, sossegados da vida, sem sequer imaginarmos – que ignorância a nossa! – o papel que tivera aquele palheiro na vida do escritor. Colocado em fotografia a preto e branco no livro «Ariz» de Manuel Alcino Magalhães, aqui deixo desse pardieiro e dessa eira uma foto a cores. Merecem.

É que para este rústico ledor tardio de Aquilino, mesmo que à revelia dos eruditos académicos analistas da sua obra, digo-o irreverentemente, cada livro seu é uma eira. Uma eira onde, em vez do dourado cereal estendido, se explanam os valores políticos e religiosos dominantes, valores que vêm desde o princípio do mundo, desde Adão e Eva, deste o princípio da Monarquia, desde a queda da Monarquia e que hão-de prevalecer para aquém da implantação da República. Valores sobre os quais Aquilino malha incansavelmente a torto e a direito. Uma eira! Lajes unidas com juntas barradas com bosta para não se perder grão de ética, de moral, de costumes e tradições, Aquilino é um malhão e à pancada do seu pirtigo submete o trigo e o joio da sociedade dos tempos idos, do seu tempo e dos tempos do porvir. Ele malha, ele joeira, ele põe na eira o trigo, o joio, a pragana e o cornelho. Tudo o que é de semeadura e nascimento espontâneo.

Uma eira. Um palheiro. Em Ariz, em qualquer aldeia serrana, onde rústicos e anónimos camponeses malharam, durante séculos, medas de centeio e de trigo, canastrosREFÚGIO-2 de milho, no afã de sustentarem com dignidade as suas vidas analfabetas. Eiras onde uns tantos malhadores, alinhados frente a frente, faziam zurrar a «burra», estrondo de pirtigos que ecoava nas redondezas e mostrava às fêmeas presentes e ausentes a arte e a virilidade dos machos empertigados.

Aquilino também se fartou de malhar. E o zurrar da sua «burra», projectado do cume de qualquer sítio, não pediu licença para entrar nas casas fidalgas, nos castelos e solares, nas igrejas e catedrais, em todo o lado onde havia gente que sabia ler. No que respeita a valores que vinham do princípio do mundo servidos na bandeja da hipocrisia e dos interesses, malhava que nem ferreiro em ferro frio, malhava em tudo o que estivesse ao alcance do seu malho.

Grande malhão. Cada livro seu, uma eira! E cada eira uma universidade de saberes milenares ligados às relações comunitárias, às leis da sobrevivência, às artes do ataque e da defesa, ao trabalho, malhadores de um lado e de outro, frente a frente, a lembrarem cavaleiros medievais nos seus torneios de lazer, à dança, ao canto, melopeias que vem não se sabe donde a marcar o ritmo, o andamento da tarefa, mulheres a aconchegar a palha que tenta furtar-se à pancada do pirtigo, crianças de ambos os sexos a mostrarem as suas diferenças anatómicas por detrás das medas, elas a levantarem os bibes, eles a abrirem os calções rachados entre as pernas, nesse jogo de iniciação e de conhecimento, todos a afundarem-se nos molhos de colmo que hão ser cobertura de casas, e de palheiros, que hão-de encher colchões de ricos e de pobres, de adultos e de crianças. Cada eira uma universidade da vida. Cada eira, um livro. Cada livro, uma eira.

(cf.. Abílio Pereira de Carvalho, «Boletim Trimestral» nº 72 (Abril/Maio/Junho) de 2008 da Fundação 

 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.