Como professor que fui de História e de Português na Escola Preparatória de Castro Daire, sempre preocupado em ligar a História e a Literatura à vida, seleccionei, propositadamente, para leitura o conto de Sophia de Mello Breyner Andresen que tem por título «O Búzio».E qual a razão desta minha escolha? Vejamos alguns excertos desse conto, a fim de melhor podermos estabelecer a ligação que ele tem com o título deste meu registo. Assim:
«Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.(...)E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma varanda cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio. E na varanda debruçava-se alguém rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um tostão e dizia:- Vai-te embora, Búzio.(...)O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisavam (...)».
Após a leitura do conto inteiro, feita por mim primeiro, em voz alta, e depois pelos alunos, antes de qualquer juízo sobre a arte de bem «escrever e contar», eu perguntava se conheciam alguém no concelho que lhes fazia lembrar o Búzio. E a resposta saía instantaneamente da boca de quase todos eles: «sim, é O Manel da Capucha».Estava atingido o primeiro objectivo da aula. Ligar a literatura à vida real e sabermos que os protagonistas dos contos podiam andar por aí feitos de carne e osso, fora dos livros, pessoas que nos rodeiam, que conhecemos, que falam connosco, que nos cumprimentam e que nos sorriem.A confirmá-lo, conhecido de toda a gente, ali estava o Manel da Capucha. Aquela figura simpática, aquele pedinte andarilho que, de bordão e de capucha, palmilhava, sempre a pé, a rede de estradas, caminhos, veredas e atalhos que ligavam as aldeias do concelho, descalço ou se sapatos que outros pés tinham servido antes de adquirem aquela experiência de caminheiros. Dormia em palheiros e vivia do que lhe davam. Em torno dele criou-se um mistério: para uns era «um simples pedinte» para outros «um pobre podre de rico».
Nunca estendia a mão a ninguém para pedir, mas a todos a estendia para cumprimentar e saudar, tratando as pessoas pelo seu nome. Conhecia toda a gente e toda a gente o conhecia a ele, adultos e crianças, muitas das quais se aconchegaram no seu colo, embrulhadas na sua capucha. E era vê-lo todo sorridente, a embalá-las com afagos e carinhos. Em algumas feiras e romarias cantava à desgarrada e não faltava parceiro que o acompanhasse na cantoria.Trazido às minhas aulas, por esta via, tínhamos agora um conto escrito e dois protagonistas. Um dentro das letras e outro fora delas. O Búzio ficcionado pela Sophia e outro, o Manel da Capucha, conhecido por todos, mas não ficcionado por ninguém. Havia, pois que fazê-lo pela mão de quem o conhecia bem, no âmbito do programa que exigia aos professores ensinarem os alunos a extraírem das narrativas os retratos «físico e moral» dos personagens principais ou secundários.Iniciou-se a tarefa. Primeiro foi estabelecer as diferenças entre os dois. Um cirandava pela praia e vilas ribeirinhas e o outro pelas aldeias serranas, longe do mar.Abandonámos o Búzio a tocar na praia as castanholas que ele fazia de duas conchas recolhidas na areia e incumbi os meus alunos de irem ao quadro, um de cada vez, escreverem uma frase sobre o Manel da Capucha. E desfiaram-se as contas de um rosário: é um velho; é um pobre; pede na vila e nas aldeias; é meio careca; não se penteia; tem barba feia; tem defeitos no pescoço; cheira mal; tem roupa suja; usa uma capucha velha; não toma banho; tem sapatos rotos; anda muito direito; tem um bornal; às vezes leva um pau; é simpático; pegou-me ao colo uma vez; sorri para toda a gente. Eu gosto dele. Eu não gosto dele, etc. etc.
Pronto. Havia material bastante para fazermos um texto colectivo, um conto novo em que o Manel da Capucha seria a figura principal. E que belo conto nos saiu! E que belo retrato «físico e moral» ficou espelhado nas linhas daquele texto que teve o Búzio como pretexto. Nele, segundo o meu grau de exigência, puseram os meus alunos a sua inspiração, imaginação e espírito criador.Arquivei-o religiosamente no disco rígido do meu PC, o velho Schneider que, como tudo na vida, teve o seu fim. Com as indispensáveis mudanças do equipamento informático, numa delas lá se foi o conto, lá se foi essa obra de arte literária colectiva, que tanto gostei de fazer com os meus alunos. Esse e outros, ensinando-os a ver num texto o movimento, a identificar as cores, a sentir os sons e os odores que deles exalavam. Bastava, para tanto, que se escolham os verbos, os substantivos e adjectivos adequados. Enfim, a palavra certa no lugar certo, enterrada no campo semântico onde jazia à espera que lhe dessem sentido e vida. Mas foi-se. Desapareceu juntamente com outros escritos meus que muita pena tive de perdê-los.Aproveito para pedir aos meus ex-alunos, alguns deles meus amigos no Facebook que, às vezes, têm a gentileza de prendar o meu desempenho profissional, dizendo que a mim «devem aquilo que são», caso tenham preservado, em papel, esse conto, que o divulguem ou o façam chegar até mim, para ser eu a fazê-lo e a mostrá-lo, tal qual foi escrito.
Abílio/2014