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quarta, 05 fevereiro 2014 14:02

O MANEL DA CAPUCHA 1

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Como professor que fui de História e de Português na Escola Preparatória de Castro Daire, sempre preocupado em ligar a História e a Literatura à vida, seleccionei, propositadamente, para leitura o conto de Sophia de Mello Breyner Andresen que tem por título «O Búzio».E qual a razão desta minha escolha? Vejamos alguns excertos desse conto, a fim de melhor podermos estabelecer a ligação que ele tem com o título deste meu registo. Assim:


«Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.(...)E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma varanda cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio. E na varanda debruçava-se alguém rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um tostão e dizia:- Vai-te embora, Búzio.(...)O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisavam (...)».

Após a leitura do conto inteiro, feita  por mim primeiro, em voz alta, e depois pelos alunos, antes de qualquer juízo sobre a arte de bem «escrever e contar», eu perguntava se conheciam alguém no concelho que lhes fazia lembrar o Búzio. E a resposta saía instantaneamente da boca de quase todos eles: «sim, é O Manel da Capucha».Estava atingido o primeiro objectivo da aula. Ligar a literatura à vida real e sabermos que os protagonistas dos contos podiam andar por aí feitos de carne e osso, fora dos livros, pessoas que nos rodeiam, que conhecemos, que falam connosco, que nos cumprimentam e que nos sorriem.A confirmá-lo, conhecido de toda a gente, ali estava o Manel da Capucha. Aquela figura simpática, aquele pedinte andarilho que, de bordão e de capucha, palmilhava, sempre a pé,  a rede de estradas, caminhos, veredas e atalhos que ligavam as aldeias do concelho, descalço ou se sapatos que outros pés tinham servido antes de adquirem aquela experiência de caminheiros. Dormia em palheiros e vivia do que lhe davam. Em torno dele criou-se um mistério: para uns era «um simples pedinte» para outros «um pobre podre de rico».Manel-Todo 

Nunca estendia a mão a ninguém para pedir, mas a todos a estendia para cumprimentar e saudar, tratando as pessoas pelo seu nome. Conhecia toda a gente e toda a gente o conhecia a ele, adultos e crianças, muitas das quais se aconchegaram no seu colo, embrulhadas na sua capucha. E era vê-lo todo sorridente, a embalá-las com afagos e carinhos. Em algumas feiras e romarias cantava à desgarrada e não faltava parceiro que o acompanhasse na cantoria.Trazido às minhas aulas, por esta via, tínhamos agora um conto escrito e dois protagonistas. Um dentro das letras e outro fora delas. O Búzio ficcionado pela Sophia e outro, o Manel da Capucha, conhecido por todos, mas não ficcionado por ninguém. Havia, pois que fazê-lo pela mão de quem o conhecia bem, no âmbito do programa que exigia aos professores ensinarem os alunos a extraírem das narrativas os retratos «físico e moral» dos personagens principais ou secundários.Iniciou-se a tarefa. Primeiro foi estabelecer as diferenças entre os dois. Um cirandava pela praia e vilas ribeirinhas e o outro pelas aldeias serranas, longe do mar.Abandonámos o Búzio a tocar na praia as castanholas que ele fazia de duas conchas recolhidas na areia e incumbi os meus alunos de irem ao quadro, um de cada vez, escreverem uma frase sobre o Manel da Capucha. E desfiaram-se as contas de um rosário: é um velho; é um pobre; pede na vila e nas aldeias; é meio careca; não se penteia; tem barba feia; tem defeitos no pescoço; cheira mal; tem roupa suja; usa uma capucha velha; não toma banho; tem sapatos rotos; anda muito direito; tem um bornal; às vezes leva um pau; é simpático; pegou-me ao colo uma vez; sorri para toda a gente. Eu gosto dele. Eu não gosto dele, etc. etc.

Pronto. Havia material bastante para fazermos um texto colectivo, um conto novo em que o Manel da Capucha seria a figura principal. E que belo conto nos saiu! E que belo retrato «físico e moral» ficou espelhado nas linhas daquele texto que teve o Búzio como pretexto. Nele, segundo o meu grau de exigência,  puseram os meus alunos  a sua inspiração, imaginação e espírito criador.Arquivei-o religiosamente no disco rígido do meu PC, o velho Schneider que, como tudo na vida, teve o seu fim. Com as indispensáveis mudanças do equipamento informático, numa delas lá se foi o conto, lá se foi essa obra de arte literária colectiva, que tanto gostei de fazer com os meus alunos. Esse e outros, ensinando-os a ver num texto o movimento, a identificar as cores, a sentir os sons e os odores que deles exalavam. Bastava, para tanto, que se escolham os verbos, os substantivos e adjectivos adequados. Enfim, a palavra certa no lugar certo, enterrada no campo semântico onde jazia à espera que lhe dessem sentido e vida. Mas foi-se. Desapareceu juntamente com outros escritos meus que muita pena tive de perdê-los.Aproveito para pedir aos meus ex-alunos, alguns deles meus amigos no Facebook que, às vezes, têm a gentileza de prendar o meu desempenho profissional,  dizendo que a mim «devem aquilo que são»,   caso tenham preservado, em papel, esse conto, que o divulguem ou o façam chegar até mim, para ser eu a fazê-lo e a mostrá-lo, tal qual foi escrito.

Abílio/2014

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.