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sexta, 31 janeiro 2025 13:43

DOCENTE NA ESCOLA E FORA DELA-1

Escrito por 

CULTURA POPULAR ALENTEJANA

No trabalho de recolha que fiz da CULTURA POPULAR ALENTEJANA mal cheguei, em 1976, a Castro  Verde, retornado que era de Moçambique, registei uma COMPOSIÇÃO deveras interessante, por seu notório que o seu autor (anónimo) estranhou “o léxico” das gentes do ALENTEJO, usado na sua comunicação oral quotidiana. Aquele registo lexical (oral e gráfico) só podia merecer reparo por destoar  fonética e graficamente ao ouvido de quem chegou de fora e confrontar-se com aquelas “maneiras tão raras” de falar.

 

PRIMEIRA PARTE

Foi-me dita, a viva voz  (com sotaque genuíno) por Dona Mariana Lança (familiar que era por parte da minha esposa), que nos deu hospedagem aquando da nossa chegada aquela vila. Registei-a verso e verso, todos eles somando cinco DÉCIMAS com o título “ALENTEJO”, peça  que ficou inclusa no “dossiê” que entreguei ao Município, aquando do meu retorno ao concelho de origem – CASTRO DAIRE.

Já depois disso passei a ouvir essa composição cantada (em tom de fado, por António Pinto Basto, um fadista muito conhecido que atribuiu, em capa de disco, a LETRA ao seu ascendente, creio que avô ou bisavô.

Ora como os apelidos PINTO BASTO me eram familiares, ligados a CASTRO DAIRE, e sabendo eu que um desses PINTO BASTO foi proprietário do PALACETE DAS CARRANCAS, nos fins da MONARQUIA onde esteve presencialmente em 1907, quando ali se aposentaram, por uma noite, o Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia (cf. crónica, neste site, com o título A MONARQUIA E A SUA QUEDA”), logo pensei não ter sido eu o primeiro BEIRÃO a andar por ali, pelo ALENTEJO, primeiro a “estranhar” e depois a “entranhar” a CULTURA ALENTEJANA naquele seu modo de “estar” e de “falar”.

Eis a composição:

MARIANA-alentejo - CópiaNURO-PRIMA MARIANA - CópiaALENTEJO

I

Terras de grandes barrigas 

Onde há muita gente gorda

Sopa de cheiro é açorda

Quisquer açordas são migas

Às razões chamam cantigas

Melhaduras são gorjetas

Maleitas chamam malêtas

E em vez de encostas, chapadas

Em vez de açoites, nalgadas; 

E as bolotas são bolêtas.

II

Terra mole é atasquero

Dar gorjetas é convidar

Deitar fora a aventar

Fita de coiro é atero

Vaso com planta é cravero; 

Carpinteiro é abegão; 

E a choupana é cabanão; 

Ás hortas chamam hortejos; 

Os cestos são cabanejos; 

E ao trigo chama-se pão! 

III

No resto de Portugal

Ninguém diz palavras tais

As terras baixas são vais

Monte de feno é frescal

Vestir bem parece mal

à aveia chamam cevada

E ao bofetão orelhada 

Alcofa grande é gorpelha 

A égua alazã é vermelha; 

Poldra isabel é melada!... 

IV

Quando um tipo está doente 

Logo dizem que está morto

E a todo o vau chamam porto

Chamam gajo a toda a gente; 

Vestir safões é corrente

Por acaso é por adrego

Ao saco chamam talego

E até nas classes mais ricas

Ser janota é ser maricas

Ser beirão é ser galego

 

V

Os porcos medem-se às varas

E o peixe vende-se aos quilos

E a gente pasma de ouvi-los 

usar maneiras tão raras! 

Chamam relvas às searas, 

às vezes não sei porquê

E tratam por vomecê 

Pessoas a quem venero!... 

Não quero dizem nâ quero! 

Eu não sei, dizem nã sê!

 

SEGUNDA PARTE

Registemos que ali, naquelas terras de montado e de searas, “ser beirão é ser galego”.  Não sei em que sítio do Alentejo estes versos passaram a letra redonda, sei é que estas DÉCIMAS POPULARES ganharam vida e expansão geográfica ao som de guitarras e de violas, entoadas pela voz canora de conhecido fadista António Pinto Basto.

E sei também que, em Castro Verde, em 1976, corriam ali como  sendo de autor anónimo e integravam a CULTURA POPULAR ALENTEJANA ORAL  que eu esquadrinhava no campo arqueológico do pensar e do agir, campos fora.

Mas este cantor atribuiu-lhe como autor, um seu ascendente, não sei se algum daqueles PINTO BASTO que dividia a sua CASA DAS GAEIRAS (Óbidos) com o PALACETE DAS CARRANCAS, em  CASTRO DAIRE (Beira Alta) portanto, um BEIRÃO como eu que, com igual estranheza, registei o MOTE de uma DÉCIMA, cuja fonética e grafia levavam a melhor na luta que travavam com a ortografia escolar e demais regras gramaticais em uso. Assim:

Desta mánica do mundo

Quem será o maniquista

Onde começa o movimento

Não alcança a nossa vista.

 

 

O pensamento filosófico profundo, acerca da “MÁNICA DO MUNDO”,  com tal fonética e ortografia, exclui, imediatamente, a autoria a qualquer pensador, académico, letrado, conhecedor das teorias de Ptolomeu, Copérnico ou Galileu, de teoria geocêntrica ou heliocêntrica formada, de telescópio ou aparelho semelhante virado ao firmamento a observar estrelas, planetas e cometas. Dita assim a quadra remete, seguramente, para um autor analfabeto que se interrogava a si aos outros, mas que de LETRAS e CIÊNCIA nada sabia. E pensamento profundo vertido em tal “verbo”, de contornos orais genuinamente alentejanos, impulsionado pela força da substância filosófica contida, deixando em terra, a ortografia oficial e demais normas gramaticais, descolou e voou livremente,  em direção ao cosmos infinito, sem licença de GRAMÁTICOS E LINGUISTAS.

pastormacho-lavrar - CópiaE excluída, assim, a autoria a gente letrada, Imagino este pensamento e estes versos saídos da cabeça e da boca de um pastor alentejano, rebanho na planície, pelica pendurada nos ombros, safões nas pernas, chapéu na cabeça, cajado sob o sovaco, corpo inclinado sobre ele, a modos de descanso, olhar perdido na linha do horizonte visual, terra e ar, a matutar sobre a «mánica do mundo». E/ou, semelhantemente, um enfiteuta, courela emprazada, uma mão na rabiça do charrueco, outra nos cabrestos - arre macho! - , a rasgar a terra para trigo, aveia ou cevada - chó macho - queda-se, puxa as calças descaídas,  tira o lenço enrolado ao pescoço, encosta o chapéu para a trás da cabeça, limpa o suor da testa, do rosto e do resto. Depois, põe tudo no sítio - arre macho! , não é prá í filho de um cabrão! -  e prossegue a tarefa, naquela forma milenar de escrever a vida sem letras, naquele jeito secular de escrever a história em “bustrofédon” desde o Neolítico, desde que o pastor e agricultor se tornaram companheiros na saga humana.

Tivessem eles, os dois, conhecimento do CANTO X de “Os Lusíadas” e, se calhar, esclarecidos sobre a MÁQUINA DO MUNDO”, de Ptolomeu, Copérnico, Galileu, e outros mais, explicada por Tétis, a Vasco da Gama (outras terras, outras gentes, outras graças, outros mundos) não teriam produzido a pérola linguística que mais me encantou na minha recolha durante aquelas minhas viagens de navegação pelos campo de searas e montados, férteis de CULTURA ORAL, que não bolinava nos barcos que faziam de todos os portugueses escolarizados  “HERÓIS DO MAR”, mesmo que nascessem e morressem na serra, sem nunca pisaram as areias de uma praia e/ou estendessem a vista  Atlântico adentro. 

 

 

Olhem a diferença.

 
 
 

MÁQUINA DO MUNDO

 

Vês aqui a grande máquina do mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assim foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfície tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

[…]

Os Lusíadas, CANTO X, est. 80

Esse MOTE da “mánica do mundo” virá a ser glosado em DÉCIMAS por Francisco Augusto Galrito com a ORTOGRAFIA em uso, segundo os cânomes escolares em vigor (depois disso houve uma NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO) e, em ortografia chancelada oficialmente, ficou a dar corpo ao “dossiê” que deixei “pro bono” ao Município de Castro Verde. Terei de publicá-la aqui na íntegra, a par de outra que ele dedicou à minha pessoa, publicada no seu livro «A Verdade da Poesia II», atento que esteve aos trabalhos que desenvolvi nessa árera.

TERCEIRA PARTE

Mas voltemos ao verso “ser beirão é ser galego” que muito bem me caiu no goto. PINTO BASTO, presumível autor das DÉCIMAS, escritas algures no Alentejo, em boa hora cantadas ao som de guitarras e violas, por mim recolhidas oralmente em Castro Verde, tudo junto dá razão ao meu ex-professor, Dr. Francisco Cristóvão Ricardo, quando me incentivou a fazer a “recolha”, pois, não constando nos compêndios e antologias escolares tais composições poéticas, bem poderiam vir a ser um “bom trabalho académcico”. 

Guitarra de Dr. GirãoRedzFamiliarizado com os apelidos PINTO BASTO, procurei saber mais do que constava nos jornais “A Voz do Paiva”, editados em Castro Daire (fins da Monarquia) e “O Castrense” (princípio da República). E deixo aqui que, para além de ele saber vestir um fato de gala e, com a sua figura, emprestar nobreza ao sarau que teve lugar no PALACETE DAS CARRANCAS, em Castro Daire, no ano 1907, onde esteve o casal real, D. Carlos e D. Amélia, abrilhantado com o vibrante trinado da guitarra do Dr. António Girão, também sabia vestir o fato destinado ao jogo do futebol, sendo os dos responsáveis por essa modalidade desportiva ter entrado em Portugal, tal qual nos diz o texto que se segue retirado do GOOGLE, “copy/paste”. Assim:

PINTO BASTO - CópiaMuitos anos antes de contrair matrimónio com Emília Garrido Pinheiro, herdeira e proprietária da chamada “Casa das Gaeiras” e assentar arraiais nesta Vila do Concelho de Óbidos, Frederico Ferreira Pinto Basto (1872-1939), juntamente com os seus irmãos Guilherme Ferreira Pinto Basto e Eduardo Ferreira Pinto Basto, tinham como principal hobby jogar um jogo que se denominava de “Foot-Ball”, enquanto jovens. 

Segundo rezam as crónicas, foram os irmãos Pinto Basto, que viviam e estudavam num Colégio em Inglaterra que trouxeram, provavelmente quando vinham de férias a Portugal, a primeira bola de futebol, decididamente influenciados por este jogo, já muito popular na Velha Albion, e que de certeza eles o jogavam no seu Colégio.

Assim, em Outubro de 1888, em Cascais, juntaram-se a outros familiares e amigos, pertencentes à elite portuguesa da época e realizaram a primeira demonstração pública deste novo jogo, em Portugal. Eis aqui a foto, mais abaixo, do grupo que participou neste primeiro “ensaio” do chamado “Foot-Ball”, no nosso país” (copiado da página de Óbidos, internet)

Um destes PINTO BASTO andara, pois por terras do Alentejo e deixara registada a sua peugada, escrevendo as DÉCIMAS a que acima aludi, onde fica dito que “ser beirão é ser galego”. Mas eu soube também, no que respeita ao ALENTEJO e mais especificamente a CASTRO VERDE, que, antes de mim, outros “beirões” por ali teriam passado e feito vida. Não será propriamente por acaso que, dentro dos limitrs do concelho, existem o «Monte dos Viseus” ligado, seguramente a Marcos Viseu, que, no século XVII, foi figura grada no comcelho, segundo rezam as actas da Câmara (cf. castro Verde, Testamento III”, neste site) e, também o monte da “Galeguinha”. E não quero referir o monge Leovigildo Pires de Almeida, natural de Reriz, concelho de Castro Daire, o lendário ermitão que, no Monte das Cabeças,  terá aconselhado, na sua tenda, Afonso Henriques a combater com sucesso os mouros. Para tanto bastaria a senha latina “in hoc signo vinces”. 

E o resto é o que diz a lenda e o que mais contei no meu livro «Afonso Henriques, História e Lenda». Pelo monte abaixo rolaram as cabeças dos 5 reis mouros e Afonso Henriques, com o conselho de um ermitão, natural de Castro Daire, tornou-se Rei de Portugal.

CONCLUINDO

E se deixar esses tempos distantes e me remeter aqueles que precederam a minha chegada a Castro Verde, aparece-me o nome do Dr. Celso Pinto de Almeida, distinto advogado, depois residente em Beja, genro do senhor Júlio Alexandre Pinto, de Castro Daire. Em Beja, foi patrono do meu colega professor Dr. MARGALHA que à docência decidiu somar o múnus do DIREITO. E foi o Dr. Celso Pinto de Almeida, que, tendo tomado em mãos a defesa do POVO DOS AIVADOS, em litigância com os proprietários de terrenos vizinhos que, alargando as suas áreas de cultivo, reduziam, sistematicamente, os solos comunitários que eram  pertença POVOAÇÃO havia séculos, por sentença transitada em julgado, no tempo de D. João IV. Ele, Dr. Celso Pinto de Almeida disse ao nosso comum amigo António Augusto da Cunha, em Castro Daire, que, em prol da causa que defendia, anexou as duas crónicas que eu havia escrito e publicado no “Diário do Alentejo, de 22-09-1982 e 29-09-1982. (cf. “REPÚBLICA DOS AIVADOS” in “Diário do Alentejo”, de 22-09-1982 e 29-09-1982)

O Dr. Celso Pinto de Almeida, residindo em Castro Verde antes de mim, viu os seus filhos crescer e brincar com outras crianças naturais da terra, antes de se fixar em Beja. Dele e seus familiares, ascendentes e descendentes, poderei vir a fazer uma crónica se forem bem sucedidas as diligências que nesse sentido ando a fazer.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.