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sábado, 18 janeiro 2025 14:52

GUERRA COLONIAL SOB A MIRA DE IRENEU DE SOUSA MAC

Escrito por 

A convite do Executivo Municipal de Castro Daire, integrei as “COMEMORAÇÕES DOS 50 DO 25 DE ABRIL” e participei no “ALMOÇO CONVÍVIO DOS EX-COMBATENTES” que teve lugar no RESTAURANTE “PARQUE” a abarrotar de “tropas e famílias”. Fiz vídeos do evento alojados no YOUTUBE.(cf. link em rodapé, nota 2)

PRIMEIRA PARTE

COSTUREIRINHAGECirandando entre os “jovens” que participaram na GUERRA COLONIAL, em todos os teatros de portas abertas, alguns deles meus amigos, ouvi, com certa frequência, a palavra “COSTUREIRINHA”. Ao ouvi-la saída da boca de ex-militares que foram forçados, na juventude, a deixar as suas terras, espaços e pessoas dos seus afetos, logo pensei na namorada “costureirinha” que ficava na terra e ele partia para a guerra. Na continuação da conversa, constatei que “”costureirinha” tinha mais a ver com a morte do que com o amor, pois mais não era do que uma metralhadora manipulada pelo militar - trutrutututu - disparada em posição de rajada para limpar o capim e/ou  matar o inimigo, evitando não morrer às mãos dele.

E estava também longe de saber que, em dezembro de 2024, me entrariam na minha caixa do correio (solicitados à cobrança, mas chegados como “oferta”) sem dedicatória, dois livros escritos por um dos COMBATENTES” (não presente nesse convívio) que, por terras da Guiné, “lá longe onde o sol castiga mais”, tal como os demais da Companhia, teve de fazer uso da sua “costureirinha” tricotando, furando, ou rasgando em parte ou no todo,  o fato “inimigo” para poder continuar a vestir, se possível sem remendos, a farpela, a vestimenta com que veio ao mundo.

Ora, para não fugir ao campo semântico do vocábulo que veio somar-se aquele que eu já possuía, lido que foi o livro “Era Uma Vez na Tropa” de Ireneu de Sousa Mac, apetece-me dizer que, este tecelão das letras, decidido a tecer os fiapos, os liços, as linhas de pensamentos, afetos e memórias que lhe enredaram a mocidade, teve de repescar os novelos e as meadas que se foram fiando, desfiando, torcendo e enovelando desde a infância, ali por terras da MEALHADA junto da família, junto da “avozinha pequenina”, enxada na mão, charrua a rasgar a terra, deixando nela, na escrita bustrofédon, parte da sua vida e de todos os mais camponeses que, com alguma sorte, chegavam a dominar a “escrita alfabética”.

Mas, à época (ele nasceu em 1948), poucos portugueses dominavam essa forma de comunicação e ele, ansioso de não se ficar pela “bustrofédon” matriculou-se num colégio e, com 18 anos, decidido estava a lavrar o CAMPO DAS LETRAS com outras charruas e aivecas. Só que, estando ele embrenhado nesse sonho, foi chamado para cumprir o serviço militar, a deixar os estudos e a entrar na instituição que entre o povo se dizia ser nela que se “aprendia a ser homem”.

Era o tempo da GUERRA COLONIAL e ele foi “aprender a ser homem” na  colónia portuguesa da GUINÉ, a enfrentar os nativos que lutavam pela sua independência, semelhantemente a tantas outras colónias africanas já independentes, aquelas cujas fronteiras foram delineadas, a régua e esquadro,  na EUROPA, mais propriamente na CONFERÊNCIA DE BERLIM, em 1884/1885.

Não senhor. Isto não era da Joana. Estas terras tinham um senhorio desde a sua descoberta, pertenciam a PORTUGAL, e os nossos governantes, com aquela moda portuguesa no ouvido, “eu daqui não saio, eu daqui ninguém me tira” mobilizam a juventude e, ala, com força, para Angola, para Moçambique, para a Guiné e India, lá longe onde, havia séculos, chegou, pela primeira vez o ocidental português Vasco da Gama.

SEGUNDA PARTE

Recolhidos os fiapos, os fios, os novelos, as meadas, de cor branca, preta ou “assim, assim”, por todos aqueles meandros de juventude e vida, havia que lhes dar corpo, entrecruzá-los, tentar dar significada a tudo isso e, para tal, nada melhor que o tecelão, sentar-se ao tear, liços postos, pentes prestes a subir e a descer, peanha abaixo, peanha acima, naveta a passar entre fios da direita para a esquerda e vice-versa, a canela dentro, vai e vem, puxa-que-puxa, “pum…catrapum”, à força de braço, arte e mente, surge primeiro um retalho de tecido e no fim, completa, a teia de vida que foi possível tecer, semelhantemente a outras “teias” que, tecidas noutros teares de guerra, passadas a escrito, foram postas no mercado, antes desta, aquecendo e esclarecendo  esse tempo histórico, económico e social.

IRENEUCada livro sobre a HISTÓRIA COLONIAL é um cozinhado que, não tanto pelos ingredientes metidos no caldeirão do “rancho” (em quartel ou em ração de campanha) só difere nos temperos com que cada cozinheiro o salpica, retirados da sua experiência, sensibilidade, vivência e mundividência, esta, quantas vezes limitada aos muros do quartel onde fizeram a recruta e  às fronteiras da aldeia, freguesia,  ou concelho donde partiram para a TROPA, para a GUERRA «aprender a ser homens».

Nas teias de vida que li até hoje cruzam-se sempre fiapos de valentia, à maneira do Rambo, e fiapos de medo, tristeza, dor e morte. Cada livro vale como testemunho vivido, como documento histórico, que pode ser ou não espelho da essência humana, face ao perigo, onde cada protagonista, individual e/ou coletivo aplica inteligentemente as “leis da sobrevivência” e até outras, tantas vezes praticadas, tantas vezes, intencionalmente,   omissas. 

Na cronologia histórica das conquistas, descobertas  e ocupação de territórios alheios, ascensão e queda de impérios,  todas as narrativas dos eventos são contadas pelos vencedores e, omissas ou declaradas, sabido é que não há ocupação de territórios sem a miscigenação cultural e física dos povos que chegam e dos povos nativos, residentes no território conquistado. Os exemplos – não é preciso queimar as pestanas a estudar essa matéria -  entram-nos hoje pela casa dentro através das janelas do mundo, as TELEVISÕES e outros artefactos tecnológicos audiovisuais.

Mas de “Era Uma Vez na Tropa” por via das dúvidas, no que respeita a este tipo de relações humanas, de domínio do mando e da submissão, transcrevo:

“ - Sim. Eram. Poucos e poucos filhos vinham com os militares. E poucos pais procuram os filhos  mais tarde”. (Pp. 106)

O autor refere-se às crianças nascidas da relação sexual entre militares e mulheres nativas. E o exemplo (verdade de La Palice), podia estender-se aos  comportamentos dos homens civis, ainda que, a história registe algumas exceções à regra e muitos mulatos e mulatas  na história do Império, filhos  de pais e mães de etnias diferentes, tenham sido registados, honradamente, nos Cartórios dos Registos Civis PORTUGUESES como prova documental da sociedade multirracial que somos. E até me causa certa urticária ouvir por aí, neste princípio do século XXI, alguns “patriotas” arrogarem-se ao direito de excluir da nossa pátria cidadãos de cor, vindos das terras “lusófonas” ou de outras partes do mundo, ignorantes de que a razão e as emoções humanas, v.g. o pensamento, anseios, a raiva, o ódio e o amor não têm cor.

TERCEIRA PARTE

E não generalizando neste caso, como noutros, a par dos fiapos de valentia e de sucesso deixados aqui ou ali atravessados nessa teia de vida, posta em livro, a um deles, pela sua essência humana e histórica, eu não podia deixar de dar realce. Refere-se ao troféu de guerra que o autor preserva religiosamente em sua casa, adquirido na sequência de uma operação  militar que exigia sempre um RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO. Assim:

Nunca vi o relatório. Só vi e senti a catana agachada na minha coxa, escondida dentro das calças do camuflado. Essa catana surripiada ao espólio, isso posso garantir, nunca residiu em relatório algum”. (Pp. 127)

OPERAÇÕES-GUINÉE este feito e lido conduz-me imediatamente ao livro de Aquilino Ribeiro com o título “PRINCIPES DE PORTUGAL, SUAS GRANDEZAS E MISÉRIAS”. Referindo-se a VIRIATO, na peugada de historiadores clássicos,  diz-nos este MESTRE DAS LETRAS PORTUGUESAS, retratando o chefe Lusitano, que é como diz, o pai de todos nós:

«Os romanos quando taxaram Viriato de ‘dux latronum’, capitão de salteadores, não o caluniaram totalmente (...) os Lusitanos davam-se à pastorícia (...) mas semelhante lida não os inibia de exercer outros ofícios, um deles velho como o mundo: saltear os haveres do semelhante. No fundo era uma prática como outra qualquer, com todos os foros de universalidade. (…) Roubavam-se mais ou menos de pé fresco uns aos outros e em caterva abatiam-se sobre as terras fartas e latinizadas do Sul. Em três tempos, então, passavam-se os galfarros a tudo o que tivesse a aparência de boa presa. O ditado ‘olho vê, pé vai e mão pilha’ marca o ritmo hispânico quanto a tais empreendimentos (...) pilhar o vizinho celtibérico ou vetão, apaniguado do romano, era virtude e não crime. Não mareiam pois a coroa de louros de Viriato os adjetivos pejorativos que Valério Máximo, Apiano e Cassiodoro lhe infringem, tais como ladrão refinado e capitão de quadrilha.

 -  Com muita honra - diria ele».

Está visto. Portugueses que somos, descendentes de VIRIATO, como podia ser DESONRA “surripiar” uma catana ao inimigo e fazer dela “troféu de guerra”? Quantos e quantos não fizeram o mesmo ou pior “surripiando” o “cabaço” (fora do ACORDO ORTOGRÁFICO, diríamos “três vinténs”, moeda cada vez mais rara e desvalorizada)   à primeira jovem negra que capturassem ou apanhassem desprevenida?

O autor, militar miliciano, deixa-nos passos pitorescos relacionados com o sexo em contexto de guerra, mas sempre com laivos de verdade histórica e procedimentos humanos, aceites ou condenáveis. Não vou “esfarrapar” a manta que ele teceu e pôs no mercado. O meu rasgar do pano não traria “mais valia” à obra produzida. Mas, à laia de complemento, ou banda sonora aplicada à película que ele realizou, com a ajuda das televisões nacional e estrangeira (Belga), vou antes transcrever um texto que deixei, há muitos anos, livre de sinais subjetivos e pós-traumáticos que salpicam aqui e ali nas conversas, orais ou escritas, que tenho mantido com alguns ex-combatentes, nas “PICADAS DE TETE”, uma página de  MILITARES que ali deixaram parte da sua mocidade, mas onde fui muito bem acolhido como civil, tão só por ter pisado alguns anos, na idade deles, aquelas “terras vermelhas”, onde o pôr-do-sol é mais distante, sanguíneo e mais redondo. Por ter vivido naquela cidade, naquele “frigideira” de África, onde, como guarda-fios, deixei quase três anos de vida a estabelecer comunicações através dp arcaico telefone de magneto com uma linha ´só, suspensa de poste em poste, nos isoladores de porcelana. 

Exceções  houve, por parte de uns poucos membros da PÁGINA,  que se mostraram desagradados com a minha abordagem “civilista” da guerra. Creio terem sido alguns militares sem patente ou de baixa graduação, que foram para a tropa “aprender a serem homens” e, ali, nos quarteis onde assentaram praça, cabeleira desgrenhada submetida à “máquina ZERO,” passaram carta de alforria aos piolhos que se albergavam, pacífica e quotidianamente, na sua floresta cabeluda. Falemos deles e de todos, já que no léxico militar também entra a palavra PELUDA. Foi em 2016 numa crónica com o título “DESCOLONIZAÇAO VI, UM BOLO (UM LIVRO) DE MIL FOLHAS”. 

QUARTA PARTE

“Uns, chamados a cumprir o serviço militar, no desempenho do seu dever patriótico, faziam da terra, onde eram colocados, TERRA SUA, defendendo-a com abnegação e, tirante os que resolviam ficar por lá, depois de cumprido esse dever, todos os outros regressavam às terras de origem. 

Não falo propositadamente dos milhares de mortos, estropiados e de outros com marcantes sequelas físicas e mentais. No sofrimento da família, de pais, esposas e noivas. E defendo que os MEMORIAIS que se vão fazendo por este Portugal em fora, freguesia a freguesia, deviam incluir o nome de todos os CIDADÃOS que foram mobilizados para a GUERRA e não apenas aqueles que lá morreram, alguns deles falecidos num simples acidente de viação, sem qualquer ato heróico. Pronto. 

Mas há quem, imbuído pelo CULTO DA MORTE, entenda que só esses são dignos de tais MEMORIAIS. Para mim são os  MEMORIAIS do CULTO À MORTE, quando preferia ver neles o CULTO À V DA, designados simplesmente MEMORIAIS DOS COMBATENTES, vivos e mortos. Adiante. 

Outros, ignorando a HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO e não adivinhando a HISTÓRIA futura,  resolveram por "moto próprio" deixar as suas terras natais e ir FAZER VIDA nas TERRAS que lhes diziam SER NOSSAS  desde os bancos da ESCOLA PRIMÁRIA

AGOSTINHO - CópiaEu incluo-me neste último grupo. Mas, ao tomar tal iniciativa, se, em 1960, conhecesse a CONFERÊNCIA DE BANDUNG e seus objetivos, realizada em 1955, o meu rumo de vida e futuro seriam seguramente outros. Nunca tive propensão para ser herói, tipo RAMBO, com as suas admiráveis saídas de situações difíceis, deixando atrás de si a destruição e heroicidade.  Nem, tão pouco, ainda que isso almejasse, o invejável poder criativo de MACGYVER posto em semelhantes situações. Eram duas personagens do porvir. Ambas desconhecidas em 1960, ano do meu embarque para Moçambique.

Nessa altura a RÁDIO CLUBE DE LOURENÇO MARQUES terminava as suas emissões diárias, à meia-noite em ponto, com o toque de silêncio, tornando assim Moçambique inteiro num quartel,  do Rovuma ao Maputo. Ao deitar-me, lá do outro lado do Equador, em Lourenço Marques, Beira, Tete ou Milanje, o pensamento, que vence toda e qualquer distância num só instante, transportava-me ao R.I. 14 de Viseu, donde praticamente acabava de sair.  Lá longe, afastado da FAMÍLIA, eu estava cá, graças àquele simples toque de clarim. E premonitório foi esse toque. Quem o ouviu durante anos ao fim da EMISSÃO DA RÁDIO,  também ouviu o toque de  DESTROÇAR quando chegou o tempo disso. E destroçados foram os milhares de sonhos que vi encaixotados nos CONTENTORES, lá e cá, alguns deles a apodreceram ali, no cais de de DESEMBARQUE. Uns, sem embarcarem e outros embarcados, tiveram no cais de chegada ao seu destino. Quem enganou quem? Todos eles, os que chegaram ao destino e os que ali apodreceram, são as folhas do livro, as folhas do bolo (o tal das mil) cujo recheio, saboroso ou amargo, é constituído por todos os que, respirando os ares do Índico e do Atlântico, de forma voluntária ou forçada, fazendo do TRABALHO HONESTO a sua arma de combate, viveram e sonharam  com um futuro digno, solidário e humano. 

Todos os que RETORNARAM ou FICARAM esperançosos num mundo sem guerras, de respeito pelo próximo, pelas LIBERDADES INDIVIDUAIS e pela LIBERDADE DOS POVOS. Todos estes podem e devem, colocar, sem reservas, a sua pitada de doçura ou de amargura, de conhecimento e de esclarecimento, sem arroubos de verdade única, no recheio desse bolo. Todos os que, no exercício da sua cidadania esclarecida,  não sobrepondo os episódios de caserna que fundamentam a sua  OPINIÃO PESSOAL aos EPISÓDIOS DE INTERESSE HISTÓRICO , se prontificam a deixar aos vindouros o testemunho de um TEMPO e de um ESPAÇO vividos, sentidos, amados, cantados e chorados. 

Aqui, neste espaço ou noutro, nesta ou noutras páginas do  FACEBOOK, pois não conheço espaço mais DEMOCRÁTICO nos tempos que correm:  aqui coexistem, à vista larga, as mais puras e leves futilidades da vida pessoal e de grupo, com assuntos de mais peso e reflexão de interesse coletivo. O FECEBOOK é sobretudo, um espaço de eficaz terapia para todos os que, como eu, RETORNADO, silenciosamente e sem apoio pós-traumático, fomos protagonistas de uma REALIDADE HISTÓRICA que pode apagar-se das MENTES  (se é que se é apaga...), mas jamais se apagará dos livros de HISTÓRIA UNIVERSAL e demais suportes de INFORMAÇÃO e FORMAÇÃO.» (1)

CONCLUSÃO

E, para finalizar, retomando o conceito de “COSTUREIRINHA”, sem fugir ao seu  contexto semântico, seja qual for a aceção em que seja tomado, gostei de costurar o REMENDO que aqui exponho e que colo, com muito gosto, ao fato (em Moçambique dizíamos «terno») que visto, pois é facto que me tenho assumido publicamente, sem falsa modéstia, “podador na FLORESTA DAS LETRAS” que, «de podão em punho», procuro, usando o “verbum”, abrir nela clareiras de conhecimento e divulgação de eventos, factos e sentimentos humanos, sem olhar à cor da pele dos intervenientes, à política, à religião, aos fatos que vestem e tudo o mais que faz de nós todos diferentes e todos iguais.

NOTA1: publicado na página PICADAS DE TETE para a qual foi escrito propositadamente, em 2016.

Nota2: “50 anos do 25 de abril COMBATENTES - DISCURSOS E ALMOÇO

 https://youtu.be/sgq5_j5dsAY?si=n0VvI4K5W_6wsU0R

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.