Trilhos Serranos

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sábado, 11 janeiro 2025 06:26

NOS MEUS TEMPOS DE COIMBRA

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NOS MEUS TEMPOS DE COIMBRA

Em 1952, apenas com 12 anos de idade, feita a QUARTA CLASSE, eis-me nos arrozais do Mondego, arredores de Coimbra, mais propriamente em Taveiro, Alfarelos, onde, pela primeira vez, vi uma máquina a vapor ligada por correias a uma debulhadora de arroz.

 

PRIMEIRA PARTE

Tinha ido de comboio, de Viseu, «pouca-terra-pouca-terra-pouca-terra, huu...huu…huu...», puxado por uma máquina semelhante, até à cidade dos estudantes, não para fazer um curso superior, nem incorporado nalguma tuna académica, mas como elemento de um «rancho» de trabalho rogado nas terras da Beira Alta, para o plantio do arroz.

Em vez de ir debruçar-me sobre livros, debruçado estava sobre a terra lavrada e alagada, trabalho de Sol a Sol, para todos. Mulheres, homens e crianças em linha, lado a lado, todos metidos até aos joelhos naquelas «lagunas» (autênticas piscinas) ladeadas por «motas» (tapumes de terra mais elevados) curvados, com dois dedos apenas, em posição de recuo, com água até meia perna, introduzíamos o pé da planta (tipo cebolinho) naquela lama que parecia manteiga. Os meus dedos, ingénuos e sem malícia, só muito mais tarde, perdida a ingenuidade e absorvida a malícia, metidos em zona húmida e aveludada, tiveram sensação semelhante, não em ato de trabalho e sacrifício, mas em ato preliminar de gozo, prazer e vida. Não digo onde, nem é preciso.

Por agora, metido no arrozal, direi que a dor de costas era o menos. Praga severa e incomodativa eram as sanguessugas que, dobradas sobre si próprias, extremidades unidas, depois de escolherem o sítio da refeição, ferravam a boca nas nossas pernas e toca de encher o bandulho. Quando sentíamos a picadela já elas estavam gordas como alheiras de Mirandela e arrancá-las da manjedoura só à força de unhas e de jeito. Às vezes ofereciam tal resistência que, bem ferradas, o sangue sugado esguichava pelo traseiro, tingia-nos as mãos, e elas ficavam convertidas em fitas elásticas esticadas, dispostas a darem luta até ao fim, pois pela vida lutavam. E a vida custa a todos. Até a essas «bichas» que eram usadas para sangrias nas aldeias no meu tempo de criança.

Olha o bicheiro" era a expressão usada pelos adultos ameaçando a criança traquina e desobediente. E ele passava com uma lata às costas, a correr as ruas do povo, com o velho e gasto pregão: "quem quer bichas!!!"

Mas não foram estas memórias, (que há muito a fazem parte dos meus escritos), que me trouxerem até aqui, neste tempo e agora. A razão está no facto de ter deixado de fora, por esquecimento, um pormenor que muito me impressionou e eu tive de investigar muito recentemente, relacionado com o “calçado” do gado bovino.

CANELOS E FERRADURASCom efeito foi ali, naquela terras lavradias de arroz, que vi , pela primeira vez, os bois “ferrados”. Eram “sapatos” diferentes das “ferraduras” dos quadrúpedes “ungulados”, e tinham o nome de “CANELOS”, no plural, por serem dois, tantos quantos os “dedos” dos bovínos.

Claro que, tais sapatos não podiam calçar bois e vacas que puxassem carregos em caminhos pedregosos, sob pena dos seus donos lhes meterem nos cascos uns PATINS propícios a caírem, esfolarem os joelhos ou mesmo partirem as pernas.

Mas, para evitar isso, havia e há uma coisinha de que o homem é dotado, que dá pelo nome de “inteligência”. E os “canelos” não calçavam gado que em tais caminhos rompesse os cascos de nascença. Ora vejam:

Ora vejam:

 https://youtu.be/jNuH6TyuJDw?si=ICLba2CbN6rYYLW_

NOTA: PUBLICADO NO FACEBOOK, 26-12-2024

SEGUNDA PARTE

É isso. Se eu optasse por dar o título “NOS MEUS TEMPOS DE COIMBRA” a estas despretensiosas linhas, estou em crer que a maioria dos académicos (tal é o papel da Academia na formatação mental de quem ali estudou) remeteriam logo para a minha licenciatura na Universidade da velha ATENAS.

Mas não. Não foi essa Universidade que me licenciou, nem estas linhas se reportam aos tempos de estudante, não obstante remeterem para uma APRENDIZAGEM digna de ser aqui contada com selo de garantia e de verdade.

Com efeito, no último “post” falei dos “arrozais de Coimbra”, quinta que se estendia ao longo da via-férrea que liga Lisboa ao Porto, com estação de paragem em ALFARELOS. Ali, naquela estação ferroviária só não paravam os comboios FOGUETES de duas carruagens metalizadas, os únicos que, pela sua velocidade, nos obrigavam a levantar a cabeça do plantio e mal dava tempo de lhe vemos o princípio e o fim.

Falei nas “sanguessugas”, na sua forma de se alimentarem, e, postas em arrecada como as alheiras de Mirandela, só descobríamos de que lado era cabeça quando, espremidas, elas esguichavam o sangue pelo sítio certo. O FOGUETE, passando velozmente, bem me fazia e faz lembrar esse bichinho de água.

Mal chegamos à quinta dos Taveiros, o orientador da “roga” deu-se conta de que para animar a malta faltava um “realejo” (gaita de beiços) e acertaram irem comigo (o mais pequeno de todos) à estação de Alfarelos, comprar-me um bilhete de comboio, a fim de eu ir a COIMBRA comprar essa “gaita” dessas.

FADODeram-me as instruções necessárias (vejam só, eu tinha somente 12 anos) e, metido na carruagem cheguei ao destino são e salvo. Saí da carruagem e, seguindo as informações recebidas, fui diretinho à loja que tais artigos negociava. Feito isso, com a gaita no bolso, satisfeito por ter cumprido certinho uma parte do recado, tive de esperar pelo combóio de regresso, cuja informaçáo de tinha sido dada também.

O tempo de espera era muito e não resisti a ir para baixo da ponte do Mondego, encostar-me numa das margens, atravessar o realejo na boca e experimentar o som. Bonito e contente. Feito isso fui para a Estação. E só então me dei conta que tinha de comprar o bilhete de retorno a Alfarelos.

Fui espreitando aqui e ali a tentar descobir onde via catões azuis retangulares semelhante ao que eu tinha nas mãos picotado com aquele alicate do revisor.

Calhou a passar numa porta e na sala para onde ela dava, levantava—se uma pirâmide desses cartões. “É aqui, pensei”. Dirigi-me a uma das senhoras que lá trabalhava e disse ao que ia: “comprar um bilhete para Alfarelos”. As senhoras, miraram-me de cima abaixo, olharam-se entre si, e uma delas contornou a pirâmide e disse-me: “anda cá meu menino, nós aqui só os fazemos, onde se vendem é além. Eu vou lá contigo”.

E foi. Ajudou-me na compra do bilhete, eu regressei a Alfarelos de combóio e hoje regresso à “cidade dos estudantes” para recordar a “lição de bondade” dada por uma senhora que nunca mais vi na vida, mas cujo gesto maternal jamais esqueci, por isso não ficaria nada mal dar a estas linhas o título “Nos Meus tempos de Coimbra”.

NOTA: PUBLICADO NO FACEBOO EM 27-12-2024

TERCEIRA PARTE

Nesta reposição, aqui, dos “ MEUS TEMPOS DE COIMBRA” fácil me foi ir ao meu site “trilhos serranos” e transpor o respigo do “apontamento” que ali deixei sobre uma das publicações aquilinianas do Dr. Lima Bastos v.g. “À Mesa do Amante Fiel”, em 17 de fevereiro de 2019.

Escreveu ele sobre a GASTRONONIA e eu deliciei-me, sobremaneira, com o pitéu literário ligado à sua maneira de comer favas, que eu também comi, em Taveiro, junto a Alfarelos, surripiadas diretamente ao faval, ensinado que fui por um idoso, encarregado de guardar as éguas da quinta, nos pastos fora da área alagada do plantio.

Tinha eu, como disse, 12 anos de idade e, como disse acima,  integrava um rancho que da Beira desceu para as margens do Mondego com contrato firmado na palavra so “rogador”: “plantar arroz”.

O filho do proprietário, que era o capataz, condoído, seguramente, com meu aspeto físico e idade, mandou-me, esporadicamente, fazer companhia ao velhote. E este, movido pelo mesmo sentimento e com o mesmo poder de observação, apressou-se a dizer-me:

- «Menino, por aqui não se passa fome. Ali há favas e, olha, comem-se assim mesmo, verdes. Amargam, mas alimentam. E olha mais: estas caracoletas que se passeiam nestas canas, também se comem assim”: - pegava numa, dava-lhe uma palmada, expurgava aquilo que entendia e punha-se a mastigar o que restava daquele ser viscoso, esmagado, abundante nos canaviais da quinta.

Sem TREALEJO-FAVASAquele ancião sem eu lhe ter pedido, ensinou-me algumas leis básicas de sobrevivência que eu ignorava nas minhas berças. Nem favas, nem caracoletas. Há quanto tempo esse bondoso homem terá perdido a luz dos olhos e se viu livre do calor que ali, à beira do Mondego, “assa canas ao sol?”.

Garantidamente há muito tempo. Mas o seu gesto generoso acompanhou-me a vida inteirra, tal como o daquela senhora que, na estação ferroviária de Coimbra, me foi ensinar onde comprar o bilhete de retorno a Alfarelos. Eu era um menino.

Mas voltemos ao Dr. Lima Bastos que, esse sim, estudou DIREITO ao som da CABRA e, já em idade avançada, cruzando-se comigo nos caminhos da vida, na floresta das letras, me transmitiu o seu gosto de “comer favas”, num tempo em que eu, há muito, tinha “mandado à fava”, as carências e as misérias que deram colo e embalaram o meu crescimento e juventude.

Deixo aqui o seu dito, com o humor que o reveste:

É que eu não arredo pé e fico na minha: continuarei a degustar as favas, guisadas ou não, mas sempre sem camisa. Pois não é verdade que a sabedoria universal dos povos ensina que o cidadão no gozo dos seus direitos civis, nomeadamente o de eleger e ser eleito, se não for tardo do juízo e mesmo que não tenha andado a varrer as cadeiras dos Gerais da Universidade de Coimbra com o fundilho das calças, sabe que é muito melhor comer o que quer que seja sem camisa do que com camisa?” (pp.125)

Dei uma gargalhada a degustar este petisco de “bem escrever”. E, por falar das MISÉRIAS que me deram colo, as papilas gustativas transportaram-me, num ai, a um texto de Aquilino Ribeiro, de igual quilate de humor inteligente, no que toca a bulir no conhecimento, na inteligência e sensibilidade humanas, manejando as letras como bisturis.

Foi em “Os Príncipes de Portugal, Suas Grandezas e Misérias”. Em foco estava o príncipe que viria a ser o rei D. João III. Aconteceu ele ter sido atacado por graves maleitas, ignotos andaços e, recolhido no principesco leito, os médicos, físicos e demais especialistas da época, vendo as coisas mal paradas, sem encontrarem remédios para tais males, desabafaram em uníssono: “coitadinho, ou morre, ou fica tolo”.

Ao que Aquilino acrescentou somente: “não morreu”.

Ora vejam só ao que me levaram “OS MEUS TEMPOS DE COIMBRA” e arredores. O que aprendi com quem estudou na LUSA ATENAS e o que me atrevo a prantar no meu mural do Facebook e na página administrada pelo PROFESSOR JUBILADO AMADEU CARVALHO HOMEM, que, estando temporariamente AUSENTE, nunca deixou de estar PRESENTE.

NOTA: PUBLICADO NO FACEBOOK EM 29-12-2024

QUARTA PARTE

Dado o acolhimento generoso que tiveram os meus APONTAMENTOS anteriores, por parte de alguns membros deste GRUPO - LITERATURA E POESIA -  relativos aos “MEUS TEMPOS DE COIMBRA” e arredores (não obstante a QUADRA FESTIVA COSTUMEIRA) certamente pelas “lições” de bondade dadas por aquela senhora que, na estação ferroviária de Coimbra, sendo eu menino, me conduziu ao guichê para ajudar-me a comprar o bilhete de retorno a ALFARELOS e a “lição” de solidariedade humana dada por aquele idoso “guardador de éguas” ensinando-me a alimentar com favas verdes e amargas (o que se perdia no desagradável paladar, ganhava-se nas energias de vida) termino esta série de “desinteressantes” APONTAMENTOS com um episódio de sentido contrário, mas também vivido e digno de nota.

O proprietário da herdade arrozeira que se estendia ao lado da via férrea onde tomou assento o “rancho” de “ratinhos” em que eu me integrava, era o mesmo que tinha outra herdade sita a cerca de quilómetro e meio, mais a montante, mas do outro lado do Mondego.

O caso foi que correndo-me nas veias, desde pequenino, as inquietações e angústias que, muito mais tarde, viriam a ser verbalizadas e cantadas por António Variações, “eu só estou bem onde não estou” resolvi ir visitar os amigos que integravam o outro rancho serrano. Para tal era somente saber onde ficava a herdade e pôr os pés a caminho.

Pedi informações aos adultos e:

“não tinha nada que saber, era só seguir a margem esquerda do Mondego, e onde visse um passadiço improvisado de madeira, atravessá-lo e estava lá”.

Foi pensado, dito e feito. Este cidadão que hoje vos fala com 85 anos de vida feitos, tendo, então, apenas 12 anos de idade, não hesitou. Avante que se fazia tarde.

Convém dizer que o rio era marginado por abundantes canaviais e dele saíam valas de água com destino ao enchimento dos “tanques” térreos de plantio de arroz. E algumas dessas valas caminhavam paralelamente ao rio separadas apenas pelo tapume natural das margens, com um carreiro na crista dele, usado e puído por pescadores, trabalhadores e, como direi agora, por outros malfeitores.

O caso foi que no regresso ao meu rancho de origem pelo mesmo “trilho”, pela mesma crista, encontrei TRÊS “rapazinhos”, aparentemente da minha idade e do meu tamanho, destacando-se, porém, do grupo um mais “espigadote”. Talvez mais velho.

O carreiro, em terra firme, ao longo da margem era estreito. De um lado o rio. Do outro a vala de regadio. Canas, das mais diferentes idades e tamanhos, orlavam as águas que de um lado e do outro.q

Os três “rufias” (certamente da região) resolveram não deixar passar o beirãozinho descalço, não me lembro se roto e faminto. Atravavancaram o carreiro. Tive de forçar a passagem e, em menos de um ai, um empurräo deles fez-me voar para a vala paralela ao rio. Valeram-me, na queda, as canas da margem que, cedendo ao meu corpo, de braços abertos, me serviram de amparo, sem, contudo, evitarem o mergulho subsequente. Tudo acompanhado das gargalhadas dos jovens “patifes” e dos protestos e impropérios que engordavam o meu léxico infantil de aldeão serrano. Tratei-os mal. A eles chamei-lhes todos os nomes maus que conhecia e ofendi as suas mães.

FADOPastorinho-escolar habituado a manejar o cajado atrás do gado, na serra, desde que era gente, procurei um pau e com ele na mão desafiei-os imediatamente, a saltarem a vala e a virem repetir o gesto, ali mesmo, a pé firme. Não vieram. Só riram. Face ao que, desconsolado por não poder descarregar-lhes no lombo o meu desaforo juvenil, fui curtindo pelo caminho a minha raiva e a comparar o gesto deles com aqueloutros da senhora de Coimbra e do idoso “guardador de éguas”, ambos vestidos de humanidade.

NOTA: PUBLICADO NO FACEBOOK EM 31-12-2024

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.