O amistoso autógrafo “Com consideração e estima ao ilustríssimo historiador Abílio P. Carvalho”, impõe-me a obrigação, sob pena de ser ingrato, de dar-lhe provas públicas do quanto lhe estou grato por ter-se lembrado de mim, perdido que ando aqui nos cantos da serra do Montemuro, já que não é todos os dias, nem é toda a pessoa citadina que volve os olhos para os penhascos rurais e neles descobre quem por cá, mais não faz do que exercer o múnus comum de investigar e divulgar “saberes” que sendo o humus do nosso chão pátrio, nem todos o conhecem e sentem como linfa identitária da nação que somos, nesta nossa diversidade ambiental, hidro-orográfica e pluralidade cultural e humana.
O meu colega, Dr. Altino Moreira Cardoso, apesar de respirar os ares poluidos dos arrabaldes da capital do reino, lá pelas terras de ALMADA-SINTRA, é natural do Peso da Régoa, freguesia de Loureiro e não raro deixa a salgada brisa marítima e sobe até estas bandas para insuflar os pulmões do despoluído oxigénio e dar às papilas gustativas o paladar de um bom “cozido à portuguesa” ou um “cozido de couves com feijões”.
Licenciou-se em Filologia Românica na Universidade de Coimbra e, para lá da docência, nas Escola de Ensino Secundário, tem sido um incansável caminheiro por tudo quanto é trilho, vereda, caminho, carreiro, em redor do Marão, com incidência nos mosteiros, castelos, vinhedos e, conequentemente, abancado às lautas e bem guarnecidas e avinhadas mesas com sumo de cepa velha, sempre atento de olhos e ouvidos aos trabalhos, dançares e cantares que tudo isso produzíam nos socalcos monteses, encosta arriba e abaixo.
Se eu tivesse de deixar uma escultura em bronze de ALTINO MOREIRA CARDOSO, escolhia o pináculo mais elevado da SERRA DO MARÃO e prantava nele a figura de um homem grande, forte, anafado, capote transmontano, chapéu de aba larga, mão em pala sobre os olhos a proteger a vista que oberva o perto e o longe, o pico e o vale, a cidade e a vila, a aldeia e a alcaria solitária, abrigo de pastor ou arrumação de ferramentas camponesas.
Já me tinha prendado com “DOM AFONSO HENRIQUES - A LÓGICA SEM MISTÉRIO” e outros trabalhos que agora resume e sintetiza nesta sua última obra, digamos que à laia de “TESTAMENTO” para “descargo da sua consciência, estando em juízo perfeito”.
Eu lhe fico grato por tudo, com destaque para as subtilezas expressas nos documentos e conclusões retiradas relativas ao “milagre de Carquere” e “milagre de Ourique”. Os interesses e interesseiros em torno deles e comsequente divulgação. E depois da tese de Almeida Fernandes sobre o nascimento do nosso PRIMEIRO REi - em Viseu - não gasto mais fósforo cerebral.
Grato lhe fico pela sua persistência em não descolar do chão onde nasceu e este seu apego à RURALIDADE de olhos sempre postos no POVO, desde as simples, ingénuas e maliciosas cantidas de amigo, às composições poéticas mais eruditas, tratadas e cantadas por gente académica e “culta” que nunca gastou a sola dos sapatos nos «trilhos serranos» a ouvir e a ver esse nosso «cantarolar» e «dançar». Muitas já postas em compêndio e outras recolhidas por si que bem poderiam perder-se na voracidade do tempo, não fora ele pô-las em letra redonda e pauta de música.
Por isso, com ele saboreio a MAGNA CARTA do VINHO DO PORTO, da descoberta e divulgação do documento indentificador da QUINTA DE VARAIS, aquela onde, segundo ele, terá tido origem o “vinho cheirante”, dito, depois, “vinho do Porto”. Folgo sabê-lo, saboreá-lo e cheirá-lo, mas entre “vinho cheirante” e “vinho de cheiro” existe uma distância abissal no tempo, no espaço, na semântica, no corpo, paladar e aroma. Ele o sabe muito bem. Por isso eu não seria tão peremptório assim, face à descoberta de uma “fonte nova de conhecimento”, ainda por cima ligada à cultura e uso do vinho que tem séculos de HISTÓRIA. É só recuar aos Tartésios, aos Fenícios, Gregos, Romanos, etc., etc. É não esquecer as dionisíacas gregas, as “bacanais” e «saturnais” romanas, alagaradas, bem alagadas no nectar dos deuses DIONÍSIO e BACO. Sim, o vinho não precisou da chegada do CRISTIANISMO, nem seauer dos monges de Cister para se associar à liturgia festiva e religiosa. Aludo a isso no meu poema online, alojado no Youtube com o título MIRADOURO DE GALAFURA. ( https://www.youtube.com/watch?v=z9_yfH1Hgzg&t=5s)
Sim. Há muito que, por dever de ofício, me habituei a fazer a leitura hermenêutica dos documentos, fora dos “varais” do nacionalismo, regionalismo e bairrismo. E dou como exemplo a “Carta de Mercê” dada a Castro Daire, por D. Dinis, convertendo em dinheiro os foros, até então, pagos em “espécie”. A “pedido do concelho”, como reza o documento. Estávamos nos séculos XIII-XIV e, sem “varais nos olhos e no pensamento” , algo vi de anacrónico entre o “dito” e «escrito» no documento e a economia agro-pastoril dominante, na época. No campo, ainda em pleno século XX, o dinheiro era coisa muito rara e cara. E muito mais seria, seguramente, no século XIII. Como, então, ser o concelho a pedir essa conversão de géneros em dinheiro? Algo parecia não bater certo. Discorri sobre o assunto e deixo um vídeo no rodapé deste APONTAMENTO com as minhas conclusões.
Mas, se ponho aqui algums reticências, partilho com o meu colega, o paladar adocicado das MELODIAS camponesas com raízes medievais e galegas, todos os CANCIONEIROS que recolheu, tudo em letra muito miudinha para não engrossar o volume.
Não. Não li este livro de cabo a rabo. Letra miudinha, vista cansada, o bom senso aconselhou-me a atravessá-lo rapidamente como fiz um dia de agosto conduzindo a família de Bragança ao Gerês, ao Parque da CERDEIRA. Urgia chegar bem, sãos e salvos, montar as tendas e descansar da viagem. Mas não cerrei as portas dos sentidos durante e percurso. Vi pessoas, vi vida, ouvi música. Este livro é uma viagem. E longa é ela. Mais de apreciar a paisagem de miradouro em miradouro do que reter o percurso de lés a lés. Livro mais de consulta do que leitura “breviária”.
Eu entendo.
Disse um dia o poeta Ary dos Santos e depois verbalizou a cantora Simone de Oliveira, que “quem faz um filho, fá-lo por gosto” e só quem fez um livro (ou já fez muitos), sabe as curvas e contracurvas, as reviravoltas e voltas que ele dá no ventre mental do autor antes de ser parido: os capítulos, o formato, o tamanho de letra, as ilustrações, os anexos, glossários, etc. etc. etc. Uma coletânea. Uma antologia. Se continuasse a dar aulas no Alrentejo, diria naquele sotaque melodioso tanto do apreço de Altino: «que trabalhêra». Só por isso este meu colega, com quem falei pessoalmente apenas uma única vez, merece que eu lhe tire o chapéu.
“Et vade retro” o maldizente ou mal intencionado que cole a esta minha franca e sincera atitude, à frase latina “asinus, asinum fricat”, pois tanto ele como eu, por força da profissão, lemos Cícero, e já temos o “curriculum vitae” lacrado com selo público e raso de tabelião encartado. Dispensamo-nos portanto, com a idade que temos, elogios recíprocos e promoções desnecessárias.
Aqui contam somente as relações humanas e, da minha parte, o reconhecimento do trabalho incansável levado a cabo por este HOMEM que, de olhos postos no seu semelhante, em Portugal, no meio social e cultural que respira, soube conciliar os solitários trabalhos da investigação com os indispensáveis afetos sociais da FAMÍLIA (a minha admiração é extensiva à esposa e filhas - três) tudo tem feito para, através do conhecimento e esclarecimento, deixar um mundo melhor, um mundo mais esclarecido, consequentemente, mais HUMANO do que o mundo que herdou.
Mutatis mutandis, creio que ambos chegaremos ao fim das nossas vidas a tentar subir sempre as escaleiras graníticas dessa esperança.
Enfim, nesta romagem humana ao santuário do saber e do esclarecimento, ainda que somente através das LETRAS, agrada-me ter por companheiro ALTINO MOREIRA CARDOSO.
Obrigado pela companhia.
SOUTO DE VILA POUCA ( https://www.youtube.com/watch?v=sFuVCe9EbhI)