O MUNDO SE VAI ASSIM
Semelhantemente às “CONVERSAS EM ANDAMENTO” que vou fazendo em vídeo, enquanto, a pé posto, por aqui ando e, a meu gosto, escrevo, falo e penso, se bem meço o espaço que separa o princípio do fim, a metro, à cancha ou a passo, vejo o princípio do fim da picada. A velho cheguei e os calos e o suor de corpo e alma deixei pelos campos que cavei, pelos caminhos que pisei, direitos e tortos, veredas de encantos e desenganos a falar com gente, com animais, árvores, todos os seres vivos e mortos ao natural e nos livros.
Historiador, neste meu afã de agarrar o tempo e a gente (ontem, hoje, amanhã e sempre) o mundo inteiro, sem curar aqui de cronologias, do último e do primeiro, ressuscitei lugares, nomes, corpos e almas sepultadas nos manuscritos, nos livros, nos pergaminhos, em tudo quando é registo simbólico, figurativo e escrito em crónica, romance e poema com uso de tipo Gutenberg, caneta ou pena, senão mesmo escopro, ponteiro e maceta de pedreiro.
Bang…bang!!
Dizem ser o começo. Num instante, eis a matéria fragmentada disparada sem destino no espaço aberto e infinito. E no espaço infinito todo o estilhaço rebola em sentido diverso. E no universo gravita em torno da energia mãe e pai dita SOL. Quantos sóis, na Via Latea, na Estrada de Santiago? Porém, alguns estilhaços sem rumo, destino aziago, vagueiam, noite e dia, ao acaso, como se fossem gente vadia da comunidade universal de meteoros. Os restantes, ditos planetas, numa eliptica certa - um caso sério - giram eternamente nas suas rotas de afélio e periélio.
A Terra, planeta aproximadamente esférico, líquido e sólido, é um formigueiro para cada canto que se olhe. Terra, animais, plantas, árvores e GENTES. Oceanos e continentes. Lutas no mar e no solo. Cruzadores nos mares. Bombardeiros nos ares. Batalhas. Conquistas tantas e permanentes. Ascensão e queda de impérios. Africanos, Asiáticos, Incas, Maias, Europeus. Diferentes rostos. Arquitetura e escultura para todos os gostos. Engenharia. Mecânica. Os astros no céu e no chão.
A evolução humana. A Lucy. Os Australopitecos, pitecantropos, sinantropos, homo faber, homo sapiens, homo dementis, homo degradantis. E o Neandertal. Esgotamento dos recursos naturais e poluição de ares e mares. Intoxicação global. Ciclones fora do espaço e do tempo. Enxurradas que tudo arrastam e matam. Climáticas alterações. Adeus quatro estações, no costumado calendário. Acima e abaixo do Equador. Um horror. Fome, peste e guerra. Outrora, ontem, hoje e agora. Fomos à Lua. Vimos a paisagem lunar, árida e sem vida. E paisagem igual vemos agora na Ucrânia e em Gaza. Toda a gente fora de casa e sem casa. Bombas e fome matam adultos e crianças. E sem esperanças do “end” desejado. A fúria do Führer pensava que exterminava o povo judeu. Enganou-se redondamente. Tanto mal. Ali, naquele triângulo geográfico, onde os historiadores de Oxford, em DVD, (Planeta d’Agostini) situam o Paraíso Terreal. Ali na Terra Prometida onde assentam as TRÊS RELIGIÕES ABRAAMICAS. Ali, Nem vencedores, nem vencidos. Nada de novo. Não se pode exterminar um povo. Apenas desumanidade. Ensejos tribais e imperiais de conquista de poder e territórios perdidas.
Tudo gravado na fita do tempo. Tudo, lá muito para trás, a par da incessante busca da perfeição humana em todas as artes, poética, literatura e da guerra incluso. E, na grega, não escuso o idealismo das formas, a simetria, a volumetria, a riqueza de detalhes e movimento, o Discóbolo, o naturalismo, bem distinta da arte piramidal, colossal, estática, ciclópica e tudo o mais dito sobre o Egito, o Nilo e outras civilizações de marca profunda noutras bandas sita. A beleza erótica, bonita, das cariátides dos templos sagrados gregos, tão distintas da matrona hotentote, sul-africana, cuja formusura esta na bunda, na gordura, semelhantemente às disformes deusas-mães pré-históricas, primeiras esculturas femininas de que há memória. E, somam-se ao rol as esculturas de carne e osso, como que em ébano esculpidas, figuras vivas bantas que admirei e possui nuas e vestidas. Tantas!
Mas que importa isso? Não se discute o gosto e se cada roca tem o seu fuso, cada povo tem seu uso, ritos, crenças, sentido estético, fora do sistema métrico. E eu me extasio frente à “grandeza da arte miniatural”, feita em pedrinhas, em barro, madeira ou metal.
Tribos, etnias, povos, costumes, cultura e religiões diversas registadas estão no meu livro de vida. Reinos, países, nações, domínios e prazos. Tecidos grosseiros mal cosidos e tecidos finos brilhantemente brocados. Faunos, duendes, bruxas, lobisomens, reis, príncipes, senhorios, enfiteutas, servos da gleba e escravos e escravas preenchem o miolo encadernado do livro inteiro. Capas simples. Aprisionado e cosido na lombada, ele contém tudo o que foi aprendido, ensinado e esquecido. Druidas em torno do caldeirão buscando a descoberta da poção mágica da força, do atrevimento, da valentia. E, caldeirão cheio, druida tentei eu ser em busca da poção do humanismo caldeado na liberdade, igualdade e fraternidade. Insucesso total. Mundo desequilibrado. Desequilíbrio climático e desequilíbrio social. Gente que morre faminta. Gente que morre de obesidade. Primeiro mundo, segundo mundo, terceiro mundo. Três mundos num só mundo. Norte, Sul, Este, Oeste. O planeta TERRA é este.
Jovens e velhinhos mortos ou vivos nesse meu afã trouxe de novo aos caminhos vividos. Tempos idos, tempos passados. E foram tantos! Muita gente. Através de mim todos eles tomaram fala e vida novamente. E nesta minha saga, dei voz e vontade a pessoas sem idade, gente muda, calada, cuja humanidade e saber moldaram a alma de quem estuda. Algures, no outro lado do mundo, havia um rei cristão, de seu nome Prestes João. Quem queria saber dele? El-Rei D. João II, pois então. Na mira do rei e comerciantes nacionais estava a descoberta da rota das especiarias orientais. Negócio chorudo. Havia que chegar lá e para isso valia tudo. Fui avante com Afonso de Paiva e Pero da Covilhã procurá-lo a caminho do Levante. Metemo-nos Mediterrâneo dentro, Ásia dentro. África dentro. Sem sinais de encontrá-lo. Mas encontrámo-lo lá na costa oriental. A África, contornada por Bartolomeu Dias, com Tormentas e com Esperança, deu-se a conhecer. A tempestade e a bonança. E não era só selva, leões, elefantes, serpentes, macacos e tribos de tangas. A história descobre-se, não se tapa. Não falo no Monomotapa, mas sei que em Tombucutu (Timbucutu) havia uma universidade. O mesmo na Etiópia e muitos manuscritos tinham ambas. A cristandade copta daquelas bandas. Não foi busca vã e, de “corpo são e alma sã” por lá se ficou o nosso Covilhã. Encontrado, mais tarde por nós naquele lugar exótico recusou-se voltar a Portugal patriótico. Nunca curei de saber porquê. Mas, tal como Henrique Galvão, depois de conhecer OUTRAS TERRAS, OUTRAS GENTES, conclui que não foi por razões dementes.
Assinado era já o Tratado de Tordesilhas. Dividido o mundo em duas partes, continentes e ilhas, as naus, galeões, galés, veleiros e caravelas, abarrotavam de canela, pimenta, noz-moscada, ouro, marfim, prata escravas e escravos, pais e filhas. E o Papa não tardou a legitimar o título de D. Manuel, “Senhor da Conquista, navegação, comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e India”. Di-lo João de Barros, na “Década” I, Lv. VI, cap. I, pp228-230. E também o tráfego de escravos. Assim:
“Descobriu terras habitadas do gentio herético para se poderem conquistar e tomar das mãos deles como de injustos possuidores, pois negam a glória que devem ao seu Criador e Remidor (…) descobriu o comércio das especiarias , as quais eram tratadas e navegadas por aqueles povos infiéis…)
Toda a gente assinava esta glória? Não. Das Américas, nos anos 1538 ou 1539, chegou a voz de Frei Francisco de Vitória, em relatório escrito:
“(…) O Papa não é senhor civil ou temporal de todo o orbe falando de domínio e poder civil em sentido próprio (…) ainda que os enfieis não queiram reconhecer domínio algum ao Papa, nem por isso se lhes pode fazer guerra, nem tomar seus bens” (idem).
João de Barros e outros historiadores deixaram-nos documentos raros sobre navegações, conquistas e descobertas. E porque dizê-lo, em História, é coisa rara, boto a mão a Zurara, e leio a primeira partilha dos escravos, em Lagos:
“Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela campanha? (…) Mas para seu dó ser mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de se apartarem uns dos outros, a fim de porem seus quinhões em igualeza; onde convinha de se apartarem os filhos dos pais e as mulheres dos maridos e uns irmãos de outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte o levava”. (Zurara, “Crónica de Guiné”, Liv. Civilização, 1973, pp. 122-123)
Que eu saiba, Zurara era um cronista, não era um poeta e, garantidamente, não fingia ser dor a dor que deveras descrevia.
É isso. Nem tudo se sabe. Nem tudo se lê. E, já se vê, eu entrei em guerras e batalhas que não têm conta, nem constam dos compêndios escolares dos liceus. Neles só grandezas de descobridores e realezas. Vagabundo corri o mundo. Fui vencedor e perdedor. Vagueei entre mar e céu. Na mocidade deitei-me e acordei sobre colchões de palha de centeio, lençóis de estopa. Em adulto adormeci, acordei, bocejei e espreguicei-me em camas com dossel e lençóis de seda. Em África passei fome, igual a tanta gente sem nome. E nesse continente - como foi tudo aquilo? - em diferentes séculos e anos, arrotei lautas refeições na recheada mesa dos faraós do Nilo e dos imperadores e legionários romanos. Anão ou gigantone, simultaneamente, fiz uso da flecha aborígene australiana, da zagaia africava, da espada europeia e dos canhões de Mavarone. No oriente, China, Japão e India, despi quimonos, saris e, sem queixas, nem duelos com samurais, diverti-me com gueixas de sândalo perfumadas e outras beldades que tais, às parelhas. Tratei por tu governadores, samorins, imperadores, ornados de colares, braceletes e brincos nas orelhas. No meu léxico entraram as palavras mandarim e marajá. Gente exótica no falar, no ser e no estar. Eles? ou nós por cá? Fui embarcadiço por mares e rios. Soldado nas canhoneiras movidas a vapor, rodízio à ré, turista janota nos barcos do amor, charutos e rapé, a jogar à roleta, com salões para baile e camarotes para joguinhos a dois, semelhantemente a casas de granito com iguais espaços, entre nós ditos solares e paços. Um luxo de vida, prazer, de atavio, em terra, mar e rio.
Atravessei savanas a pé em invernos e estios. De tanga e descalço, zagaia na mão, ponta de seta envenenada, fui bosquímano em corrida desabrida na tarefa de caçada. Fui turista, pirata, corsário, conquistador. Estive nas pirâmides de Gizé e no Pártenon ateniense botei palavra na ágora, direi mesmo, em todas as ágoras, qual Diógenes, Demóstenes e Pitágoras. Ali, nas ciências matemáticas, “no princípio era o número”. Fora dali, na Bíblia, “no princípio era o verbo”. E o “número e verbo” conjugados, como elásticos de fisga em mãos de criança apontada ao pardal sob mira, atira, não atira, projetaram o meu nome para o GOOGLE, apoiados nos atuais BANCOS DE DADOS digitais. Quem se admira? Longe de meus cuidados fui incluído na tribo “NOTABLE PEOPLE” e colocado no pódio “discovery & science”, a par de figuras notáveis. Essas sim, muito notáveis figuras em vidas suas e bem para cá das sepulturas. É isso. O “numero e verbo” conjugados, baralhados, ali, nos bancos de dados, soltos, sem cunhas, nem apadrinhamento, deram conta da existência de um animal sem pedigree social, fugido da serra, das berças, rural, para inveja e despeito de tanta “excelência” urbana e fidalga. Mas também para contentamento e regozijo de gente humilde, gente boa, generosa, que identificar não preciso. Estava escrito nas linhas da minha mão. Disse-o uma cigana ao ler-me a sina, ainda eu era menino, com a sabedoria calejada do nomadismo histórico da sua família sem pátria. Um saber sem bibliotecas, nem livros de economia. E dizia: “no futuro fará uma viagem de mar-além, casará, terá filhos também e será um homem rico e de fama”.
Que Pitonisa! Que oráculo! Que sei eu? Só ouvido, visto e sentido por um menino crente que incréu se tornou. Mais crédito não merecia um profeta bíblico, um árúspice romano, o Nostradamo, uma bruxa sem idade, um curandeiro africano, índio ou australiano. Uma cartomante andante, o Bandarra, ou o Zandinga. Sem pinga de empenho meu, aconteceu. Comunguei factos, pensamentos e ideias, filosofias, económicas teorias do ter, do haver e mais valias do trabalho. Sem atalho, nem mais trabalho: do TER e do SER. Coisas de monta e sem valor algum. Dinastias sem conta enfiadas num rosário. O “direito divino” do poder real, imperial, de reis e imperadores, só eles dotados de tal, pois empossados eram com as bulas e a bênção de santos papas. Sem deslizes, semelhantemente, só os juízes do nosso tempo. Inimputáveis nas suas decisões e sentenças. Mesmo condenando inocentes. Nunca assimilei tais crenças, por sabê-los iguais a mim no reino dos homens e dos animais.
Os senhores das Terras. O direito da aposentadoria nelas e a guerra que lhes moviam os procuradores do concelho por, cada um por si, ser “persona non grata”. Continente e ilhas. Porquê? Palheiros, currais, celeiros esvaziados, mulheres e filhas violadas. Tudo a eito, ao jeito de quem pode, quer e manda. Nomes e apelidos de fulano, sicrano e beltrano, a encherem laudas de pergaminho genealógico, nos testamentos ditos “fábulas e mandas”. Os tabeliães conheciam de cor a minuta. No começo: “Jesus, Maria, José”. Logo seguido F…(nome do testador) «estando doente, mas em seu juízo perfeito, para descargo de sua consciência e bem da sua alma» resolveu fazer testamento. E sucediam-se “itens” infindáveis a identificar teres e haveres deixados a parentes e afilhados. Eram trintários de missas, padre-nossos, ave-marias e responsos. Era a transmissão da propriedade a herdeiros e encargos para testamenteiros. Eram terras, vinhas, animais, escravas e escravos, alguns deles castrados de valores equiparados a éguas e cavalos. Os testadores convictos estavam que as suas vontades ali expressas durariam “per ominia saecula saeculorum”, «até ao fim do mundo», «enquanto o mundo durar». Neste mundo, por essa via, se garantia um lugar descansado no outro. A mentalidade social em letra cursiva convertida em monumento documental. Pois bem, mas sem lauda, nem testamento estava o Zé Povinho, o Zé Ninguém.
O comboio desliza sobre os carris. Sentado num dos bancos da carruagem prossigo viagem deixando para trás muitos janeiros e abris. Olho para as bandas e muitos dos companheiros que comigo iniciaram o trajeto ficaram-se, a tempo ou destempo, por estações e apeadeiros. Alguns deles apearam-se conscientes do seu fim. Outros apearam-se sem saber quem eram e onde estavam. E outros, ainda, ignoram quem são e em que apeadeiro vão sair. São Zômbis bípedes. Mortos-vivos ao meu lado sentados. Sem noção de serem gente. De serem pessoas. Não distinguem coisas más de coisas boas. Atento, dou-me conta de que já vou só. Vê-los assim, dá pena, mete dó.
Não faço testamento, mas se este texto tem laivos de semelhante documento, claro é que dispensei o tabelião de serviço e o princípio “Jesus, Maria, José”. Mais lento, mas de pé, ainda por aqui ando, falo, escrevo e penso. O sentido da oportunidade, do tempo e o grau de lucidez e merecimento, se algum tem, ficam ao critério, à boa vontade de Vossas Mercês, Vossemecês, Vomecês, Vocês, Cês.
Sim! É o princípio do fim. Com amigos tais em redor de mim, neste mundo doente, o historiador nem sequer finge que é dor a dor que deveras sente.
Abílio/2024