Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas DESBOBINAR DE UM SONHO
quarta, 29 maio 2024 15:28

DESBOBINAR DE UM SONHO

Escrito por 

ESCRITA EM MOVIMENTO 

Os cinéfilos sentam-se, acomodam-se nas cadeiras postas em anfiteatro, olhos postos no ecrã. Aguardam somente que o projecionista ponha a bobine a rodar, que aproxime os eletródios, que o arco voltaico projete a luz sobre a transparência da fita e, no grande retângulo apareçam as imagens de cartaz. Começou. 

 PRIMEIRA PARTE

PICT0015Era um casarão de arquitetura retangular levantada numa planície sem fim, rodeada de herbáceas e searas a perder de vista. Janelas, nem vê-las. Uma espécie de bloco de gelo com paredes revestidas de espelhos a refletirem o meio ambiente natural. Não se dava por ela sem chegar cerca. Os espelhos a fundiam no ambiente. Construção inteligente. E de todos os lados, em contínuo ou intervalado, ouvia-se o cantarolar das perdizes, das corcolheres e mais bicheza alada que, em torno da morada, tinha guarida certa. Certa e assegurada. O terraço parecia um campo de aviação sem aviões e sem torre de controlo aéreo.

 Embasbacado eu chegara ali de automóvel na companhia dos meus dois filhos em  idade escolar. Estranho caso era. Onde estava a mãe deles, a minha esposa e a minha cadela Diana, a perdigueira, Essa inseparável companheira de viagem?

Íamos visitar um velhinho, um cidadão afamado que vivia nesse casarão solitário como um eremita, fugido do mundo. Com ele partilhava o mesmo espaço,   apenas uma mulher vestida de preto - a sua governanta - andar beleirinho, visivelmente mais nova, na parecença e no andar.

Foi ela quem nos recebeu. Os meus filhotes estenderam a vista em torno e logo encontraram espaço bastante para voarem e desarvorarem de ao pé  de nós, não sei se à descoberta de algo empurrados pelo sangue na gurelra da juventude, se para se livrarem da conversa que adivinham ser uma “seca” entre idosos, se calhar inteletual, de pouco interesse para eles e outros deseu igual. Escapuliram-se num ai, campos fora, tão ligeiros que nem codorniz a escapar à pontaria de lesto e treinado caçador da serra.

pe4na-1Dirigi-me ao ancião, cumprimentei-o com a reverência merecida e dei-lhe a conhecer que tinha lido alguns dos seus livros, que o admirava muito e que via nele um poeta. Tinha até surripiado e feito uso de algumas farripas marginais da sua extensa seara. Aquela sua forma de escrever e de agora viver fora do mundo, num casarão sem fim, metido num campo a perder de vista, rodeado de plantas e animais, só podia ser de um poeta.

“Não seja pateta”. Retorquiu-me ele de forma um tanto seca e agressiva. Nem poeta, nem escritor, nem pensador. Nem eu nem todos os outros que me precederam e sucederão na arte de transmitir as nossas experiências de vida e de saberes. Fui, como eles, um realizador de filmes, indiferentes ao cinematógrafo e máquinas de filmar. Mais não fizemos do que transportar para a tela, através das letras soltas e frases encadeadas, os fotogramas sequenciados da vida humana. A vida  que experienciamos ou da qual tivemos conhecimento através de outros realizadores nossos antecessores. Da minha parte, na minha banca de trabalho, latim, mais tatim, sempre assim, os cabelos a tingirem-se-me  de branco, o rosto a enrrugar-se semelhantemente às regueiras das encostas em tempo de enxurrada,  de novo fiquei velho, e mais não fiz do que projetar o mundo físico e humano em redor de mim, falando de labrostes, usos e costumes, crenças, romarias e procissões, clérigos de barbela pendurada, camponeses esqueléticos a viver de nada, ódios e amores, hipocrisia e falsidade, amizade e fraternidade de vida, uma mão dada, uma mão recusada,  o manejo de uma faia polida, cajado de encosto, arma de defesa em qualquer briga de feira ou romaria ébrias de fé e de vinho. 

Eu punha tudo em letras de alfabeto estudado. Eles na sua azáfama de sobreviência, ignorando as letras,  na sua lhaneza, escreviam a sua narrativa camponesa, na escrita “busttofédon” - arado vai, arado vem, arado torna, assim a vida inteira, séculos de vida - assim até ao fim da leira, assim até ao fim da jorna. E verdade seja dita, ignoravam eles e ignorava eu tal escrita. 

Ouvi-o. E ele intrigado com o meu silêncio prolongado, não sei se ofendido com as seitoiradas que eu fizera (e ele desconhecia) na seara das letras por ele semeara, olhava-me de frente, mas nem um gesto, nem um trejeito sorridente de assentimento.  Um rosto de granito com fama de gabarito. E, de repente, calou-se. E, sentado que estava no chão, imitando Buda, deixou-se cair para trás, esticou as pernas e assim, deitado ficou imóvel como morto. Parecia mesmo morto. 

Espantado com o inesperado, chocado com  aquela sua  fria posição horizontal, desinteressado da conversa, interpelei-me: que teria dito eu para o por naquele mutismo, em posição de estátua jacente, eloquente na fala e no solêncio? Teria eu dito algo fútil, banal, de desinteresse, que não merecesse sequer ser ouvido?

Sem saber o que fazer e dizer, meio aturdido, recorri aos préstimos da governanta. Que se passava? ela que lhe conhecia os hábitos? Que sossegasse. disse-me ela. Apressou-se a por-lhe a mão no peito, a auscultar-lhe a respiração, o bafo,  e a dizer-me em cochicho: “está a descansar, chegou a hora do repouso”. 

SEGUNDA PARTE

pena-2Sossegado, eu, aproveitando aquela sesta, pus-me a conhecer a casa por dentro. Se tão grande era por fora, como seria por dentro? Inchado de curiosidade abandonei o morto e entrei num corredor ladeado de estantes a abarrotarem de livros. Curiosa coisa. Se levantava os olhos elas, as estantes, num instante, estendiam-se a perder de vista até às estrelas e o mesmo com os corredores. Cada passo que dava em frente, o espaço desdobrava-se como fio de meada até lonjuras nunca impensadas nem medidas. As estantes paralelas afunilavam-se e lá longe, muito longe, um farol virado para mim , parecia ser o fim de linha. Comboio em andamento, entrei  num compartimento, logo a seguir noutro e noutro ainda. Mas quando quis voltar ao ponto de partida, só ia dar a corredores infindos. Sem fim e sem saída. Era um autêntico labirinto. Não via como retornar. Ali mesmo desejei ser aranhiço e tirar proveito do fio de seda que vai deixando na tecelagem. Metido naquela teia, desesperei. Naquele enredo, um pimpão serrano a borrar-se de medo.

Enfim, depois de tentativas várias encontrei umas escadas que escapavam ao meu olhar horizontal. Não sei se as desci, se galguei ou se foram elas que me desceram à velocidade de foguete. Para onde quer que me voltasse, até nos corrimãos laterais, só  livros. Livros demais. Uns muito arrumadinhos e outros empilhados a granel aqui, além em todo o lado. Ai o que eu via! Seria aquela a Biblioteca de Alexandria? E eu, que tanto gosto de ler, sufocado e afogado em livros, ansioso estava de escapar daquele  mar de letras aprisionadas, mioladas e desmioladas em capas simples, em capas de cabedal e muitas delas com ferragens, dobradiças e fechaduras como se elas fossem criminosas ou fosse criminoso lê-las?

Sem palavras fugi dali. Dei “às de vila diogo”  à procura do ancião, do eremita. Teria ele acordado? 

Aproximando-me verifiquei que ele continuava na posição imóvel em que o deixara. Que desconsolo. Não estava por perto a governanta. Mas eis que, sem tardança, daquela estátua jacente se levanta um espetro, e, sem rodeios, convida-me a sair para o exterior. Acedi de boamente. Saímos ambos para o campo e ele, testa alta, cabelo de risco ao meio, rosto surumbático de granito, enrugado, informou-me que era ali o seu Kruger Parque. O seu Paraíso Terreal. Havia ali tudo o que, fora do mundo real satisfazia a sua sensibilidade humana. Era um sítio santo. Sem hipocrisia, maldade, traição, vaidades vãs. A páginas tantas um passarinho de que eu desconhecia a espécie e o nome, veio pousar-lhe no ombro. Logo de seguida veio um perdigão, amaneirado, todo salamaleques, estendendo a asa radiada de vermelho e cinzento. Forma de cumprimentar. Por perto estaria a fêmea, espécie de ave que se diz ibérica. Em vias de extinção,  ao que parece. Rodeava-nos o arvoredo e a sinfonia dos cantos e dos gorjeios do passaredo. E a atmosfera impregnada de aromas inebriantes,   insuflava-nos os pulmões e as narinas. Nem maestros de orquestra, nem laboratórios de perfumaria. Tudo natureza na sua exuberância de força e vida. Tudo recendia a santidade e harmonia.

TERCEIRA PARTE

pena-3Parámos junto de um ribeiro que atravessava aquele mundo surreal. Cacheiras rumorejantes venciam, em corrida, os declives do tereno. Em sentido contrário, contra a corrente, naquele seu instinto natural, saltavam trutas lutando pela vida. E as irregularidades do leito enovelavam núvens de espuma em queda que nela refletiam cores e emoções de ordem vária. Pena, pois logo se desfaziam com elas. E nelas as contradições e os paradoxos da vida em movimento. Imóveis e calados, ali à beira, demos vez à fala, à oralidade, da natureza e do rio. Não era o Nilo, donde fora salvo Moisés, nem o Mar Vermelho que se abrira aquando do êxodo do povo judeu à terra prometida. Em silêncio, naquele fluir constante, aqui li, no ribeiro, toda a prosa e poesia, pagã e religiosa,  nunca escritas, nem cantadas, nem declamadas. Nem helénica, nem latina, nem egipcia, nem mesopotâmica. Nem sagas homéricas nem camoneanas.

Rio,  ora manso, ora bravio, mas sempre rio, a deslizar entre montanhas desde a nascente à foz, chegava até mim o eco distante do ranger das azenhas, do giro dos rodízios e das mós em torno se si próprios, noite e dia. Chegava até mim, vindo de terras estranhas, a vida do lavrador, do moleiro, do lagareiro, do pastor que nasceram, viveram e morreram entre vales e montanhas. E, nesse seu curso milenar quanta praga, quanta raiva, levou e lavou esse ribeiro em todo o tempo inteiro da sua vida? Do lavrador, do moleiro, do lagareiro, do pastor, do camponês, cada um no seu afã, do romper da manhã à noite cerrada, quanto grito mudo e de raiva levou e lavou o rio que se saiba?  Tanto trabalho, esforço de mouro, para se ter nada, pois viver era ter tudo.

Como era, então? 

O pastor de pés descalços na serra bravia; o lavrador de tamancos agarrado ao arado na terra lavradia e ora desamparados, ora  agasalhados por uma sebe que aqueiba o vento, eles vivem o dia a dia, e deixam que o ribeiro e o vento levem o que na terra e que no vento escrevem.

Presos ao chão do nascimento (eles são tantos) exprimem o pensamento nas pragas e preces que fazem ao mesmo tempo. Digo-o, não temo. Pragas ao Demo, preces a Deus e aos santos. Basta para tanto que uma trovoada repentina, em maio, interrompa a vessada; praguejam que nem raio por tudo e por nada,  e, nesse seu viver de praguejar e rezar, se calhar, nada lhes diz a poesia da terra a fumegar, a alvéola de cauda a dar a dar, “que sim, que sim”, em cima do timão, atenta à larva do chão que o arado lavra, atenta à rima da leiva lavrada, da folha escrita assim, pergaminho de séculos a falar da vida camponesa, do amor, da raiva, da alegria, da tristeza,  da miséria e da grandeza vividas, deslizando das encostas da serra. Que época? Que Era?

Eram sim, esta ali toda a prosa e poesia camponesas escritas e dispersas por açudes a estancar a corrente, prenhes de levadas que faziam girar moinhos e azenhas, a regar lameiros e terras de semeadura. Sim. Era isso. Toda a prosa e poesia de autores sem nome, ali impressa naquela matéria líquida e fluída, só por mim vista, lida, ouvida e sentida. 

pe4na-1Tomando voz, o espetro voltou-se para mim e disse-me: 

“Nem imagina os quilómetros que percorri, os pares de botas que gastei a subir e a descer as encostas e ravinas da serra da Nave, visando  chumbar, matar e trincar as  belezas aladas que agora me visitam e comigo falam como se fossem gente. Pare, escute e olhe. Veja e ouça por si próprio e diga-me depois o aue sente sente. Tenho informes de que estão em fase de extinção. Que já só se encontram em aviários. Tal foi o ecocídio cinegético e venatório sucedido. Tal foi o rumo que tomou o homo demens”.

Fiquei mudo e quedo. Como balão esfoirado inesperadamente por agulha de pinheiro levada bo ar pelo vento,  fiquei vazio de pensamento, de emoções, de sentires. Morto. 

E assim calados, mudos,  voltamos ao ponto de partida. Em redor de nós só a natureza dava sinal de vida. Mal chegados à CASA GRANDE, aquele cubo de gelo espelhado em toda a volta, não entrei. 

Despedimo-nos afetuosamente. Civilizadamente meti-me  no carro de repente com os meus filhos que me esperavam, aqueles dois pingos de gente. Pelos vistos divertiam-se imenso, tal era a galhofa no banco de trás. Estavam radiantes com a tarde e as aventuras vividas fora da paterna vigilância. Cheguei a repreendê-los tal era a zoeira que me perturbava a condução, que me distraía do caminho. Nada lhe perguntei sobre a sua tarde, nem eles me perguntaram sobre a minha. 

Pai e filhos em viagem, incomunicáveis, num espaço tão pequeno. Eles enrolados nos seus cuidados e eu nos meus. Se tentasse dizer-lhe o que vi e senti dentro e fora daquele bloco de gelo espelhado, recheado de livros por dentro e sem ornamentos escultóricos nas paredes por fora, a atirar para qualquer estilo arquitetónico estudado nos anais da história humana, não acreditariam. Eles, em risadas rasgados exteriorizavam a alegria e a felicidade da sua juventude. Atento à fita de alcatrão deixei de ouvi-los. Pois sim. Fossem felizes para sempre. 

CONCLUSÃO

Acordei. Que alívio. Não estava a projetar, nem a ver um filme. Não estava na estrada, nem a conduzir o automóvel. Estava deitado na cama e respirei fundo. Mas, acordado, interpelei-me sobre o caminho que falta fazer nas ciências para a interpretação dos sonhos, sem recurso ao José bíblico, aquele a quem recorreu o faraó egípcio. Nem vacas gordas, nem vacas magras. Não quero sete anos de fome, de peste e de guerra. Não. Nem arco, nem flecha, nem zagaia, nem canhão. Quero é saber onde estão as fronteiras da realidade e da fantasia. O mundo vivido e o mundo desejado. Imagens reais nunca vistas nem pensadas. Na Terra, por causa da guerra, haver lugares que parecem paisagens lunares. O absurdo e o nonsense de mãos dadas com a razão e a lógica. Quem me explica? Onde está o sonho? Onde está a realidade? Onde está a humanidade? Onde está a verdade? 

Abílio/maio/2024

Ler 373 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.