ÚLTIMO PROFISSIONAL DO RAMO
O senhor Mateus está ali, à entrada do Jardim Público da vila de Castro Daire. Não pede nada a ninguém. Quem quer, quer. Quem não quer passa adiante. Ele é, a bem dizer, um dos últimos homens a exercer tal serviço social em Castro Daire.
Os programas de «novas oportunidades», esses que hoje por aí fornecem diplomas a eito com vista à qualificação dos portugueses, não atraíram ainda alguns cidadãos em Castro Daire a tal mister. É trabalho que suja as mãos e as unhas. Mais atraentes são, porém, os misteres de «manicure» que as limpam, pintam e envernizam.
Deixando isso, direi que, sendo os engraxadores uma espécie em vias de extinção, não faltam por aí, abundantemente, os «graxas diplomados», os «graxas encartados». É só atentar no que se vai passando por esse país fora, é só ler e ouvir as notícias divulgadas pelos media, onde se descortina facilmente a vénia, a graxa, a bajulação que alguns subalternos fazem às chefias no sentido de lhes caírem no goto. Ele é na política, ele é na educação ele é em toda a instituição hierarquizada.
Para caírem no goto do chefinho ou da chefinha, tais lesmas estão sempre prontas a levar-lhes, embrulhadas em sorrisos e salamaleques, as críticas que correm acerca do serviços, ou acerca das suas próprias pessoas.
O chefinho ou chefinha, cultores do comportamento soalheiresco, pessoas que permaneceram no nível cultural básico da intriga comezinha e do maldizer, amantes desses valores camadrescos, agradecem ao «graxa» com iguais sorrisos e salamaleques. Ele ou ela, com manifesta simpatia para com tais seres rastejantes, estão certos que, dando acolhimento a tais procedimentos, no dia seguinte mais novidades lhes entrarão pelo gabinete dentro. O cochicho chegado pelo «correio» sem envelope selado tornou-se institucional.
Em termos históricos e culturais não é debalde que, durante séculos, durante a união da Coroa e do Altar, os vassalos curvavam a espinha e baixavam a cabeça frente a Sua Majestade e dobravam os joelhos para beijar o anel do Bispo ou do Papa. Uma sociedade de vénias e ajoelhada. Não é debalde que toda a petição dirigida ao superior hierárquico terminava com as iniciais E.R.M., que, por extenso, quer dizer «E Receberá Mercê».
Pois é. É na busca de «receberem mercê», de verem a sua «avaliação de desempenho» recompensada que os «graxas» proliferam, por aí, como cogumelos. O que é preciso é progredir na carreira e se a «bufaria, a subserviência e a incompetência» forem os parâmetros de mérito admitidos pelas chefias, não há programas de «novas oportunidades» que arranquem Portugal do tempo da vassalagem e do pagamento de foros.
Face a esta realidade, como admiro o engraxador Mateus. Oitenta anos de idade, disposto a findar a carreira com a vida, homem simples, se a falta de vista já não lhe permite engraxar com perfeição, dar o polimento devido aos clientes, ele ali está, tal qual é, velhinho, a coxear de doença crónica quando anda, mas, seguramente, sem a crónica doença portuguesa que afecta chefes, subalternos, políticos, professores, chefinhos e chefinhas que acolhem subserviência, a mediocridade, a ignorância, a incompetência, enquanto pilares da sua sobrevivência.
NOTA: crónica publicada no antigo «site» migrada, hoje mesmo, para este.