E eu, que ainda não desencabei o podão, prossigo a tarefa. E presumo, sem grande margem de erro, haver quem veja nestas minhas palavras, nesta minha assunção pública de LENHADOR NA FLORESTAS DAS LETRAS uma certa petulância, sei lá, até uma atrevida pesporrência, levando a peito a clássica muleta “presunção e água benta cada um toma a que quer”. Mas isso não afeta minimamente a minha forma de pensar e de agir. Sou do contra e nasci ao invés. Mas nasci, por isso sigo em frente, nadando contra a corrente, escrevendo, simultâneamente, com a mão dextra e com a mão sinistra. Quantos bípedes no mundo fazem isso? Estou treinado na leitura hermenêutica de textos esgravatados por apressados tabeliães e a descodificar longos e eloquentes “silêncios”. Aos 84 anos de vida, com quilómetros de escrita nos jornais, em livros e redes sociais, sou o “lenhador” serrano que sempre fui, desde o jovem que manejou uma aguilhada e uma enxada, ao estudante e professor propenso a manusear uma caneta, uma esferográfica e uma máquina de escrever. Deixo de fora, por agora, o computador.
Competências pessoais que não escaparam à sageza do PROFESSOR DOUTOR HUMBERTO BAQUERO MORENO, na Universidade de Lourenço Marques, posta no AUTÓGRADO deixado na testada da sua tese de DOUTORAMENTO - a “Batalha de Alfarrobeira” - um livro com cerca de 1200 páginas de miolo, que é tratada nos compêndios escolares em três linhas. Assim escceveu ele:
“Ao senhor Abilio Pereira de Carvalho, exemplo de persistência e aplicação ao estudo, com os votos dos melhores êxitos académicos, do Humberto Baquero Moreno, L.Marques, 20 - IV - 74”.
Meu professor que foi naquela UNIVERSIDADE, bem conhecia ele o meu empenho e aplicação nos estudos, saber feito e, simultâneamente, produzir e divulgar saberes”. Ainda não havia os computadores pessoais e eu ainda não perdi o vício.
Eu, um aluno entre tantos, tive por companheiro de carteira um cidadão de Britiande - Joaquim Pereira Guedes - cujos afazeres profissionais (inspector de economia) lhe não permitiam frequentar todas as aulas. Somente algumas. Combinámos ser eu o colega a fornecer-lhe os apontamentos da matéria leccionada, a bibliografia aconselhada e nas vésperas dos testes fazermos juntos uma sabatina sobre tudo o que havia sido “lecionado, estudado, dito e pensado”.
E assim fizemos. Bem sucedidos no método, com reconhecida vantagem sua, ele, no Natal de 1973, compensou-me, inesperadamente, com a oferta da obra “GRANDEZA E DECADÊNCIA DE ROMA” de Guglielmo Ferrero, (cinco volumes, edição de luxo, Editora Globo) acompanhada de um “cartão pessoal” com amistosas palavras de agradecimento, assim:
“O Guedes pretende manifestar, através desta pequena lembrança e em quadra de sentimento particularmente comunitário, a sua gratidão pela ajuda no êxito encontrado no 1. ano do Curso de História e contribuir, ainda que modestamente, para o vosso recheio bibliográfico que, do coração vos auguro, com um abraço amigo.
LM.Dz.73”
Duas pegadas de vida. Dois incentivos manuscritos, assim, tal qual aqui se reproduzem. O primeiro vindo do PROFESSOR DOUTOR Humberto Baquero Moreno, um académico de reconhecido mérito, mais tarde - após a DESCOLONIZAÇÃO - docente na UNIVERSIDADE DO PORTO, lugar que deixou vago, por falecimento, em 2013, conforme se lê “IN MEMORIAM” disponível na Internet. Outro, vindo de um colega meu, mostrando a “sua gratidão” pelo contributo que lhe dei na execução e sucesso do seu PRIMEIRO ANO DO CURSO DE HISTÓRIA. Acabou o curso e depois tirou DIREITO, em Lisboa. Inteligente era ele. Dois curos numa só pessoa.
Empurrões benfazejos e premonitórios. Mas nesta lista, injusto seria eu não incluir um terceiro impulso. Não foi manuscrito por um académico, nem colega universitário. Saiu da pena de uma mulher que tão só gostava de LER e de partilhar comigo os saberes que lhe tocavam as cordas da sensibilidade e avidez de conhecer o comportamento humano no fio do tempo. Histórico ou ficcionado.. Foi aposto na testada do livro “O MUNDO DE ONTEM” de Stefan Zweig. Assim:
“Abílio Pereira de Carvalho
Sinceros parabéns com desejos de longa vida.
Com o sentimento mais puro
Susinha
Lourenço Marques, 10/6/66”
Vindo de uma mulher que, à data, integrava o rosário dos meus afetos, escrito com inteligência e subtileza bastantes, notório é que na “pureza dos seus sentimentos” e “desejos de longa vida” se vislumbra o precoce lenhador que vim a ser na floresta das letras, escrevendo e “fazendo história com gente dentro”. O lenhador que, de podão em punho, no exercício da sua profissão, em prosa e verso, procurou abrir algumas clareiras no imbrincado e denso matagal das relações humanas, fazendo jus ao ensejo de todos os que, com os seus incentivos, me impeliram a ser quem sou.
Passaram tantos anos, ora acompanhado, ora só. Amores e desamores. E, em momentos de solidão, volvendo o pensamento ao passado, estendo a mão na direção da estante da biblioteca e os meus dedos, por reflexo condicionado, trazem-me o “Mundo de Ontem” de Stefan Zweig com a afetuosa DEDICATÓRIA . E ainda estou a ver o brilho daqueles olhos castanhos humedecidos de afetos a darem-me «os parabéns» de aniversário e a desejarem-me “longa vida”.
Stefan Zweig «invoca com nostalgia os esplendores da sua vida de juventude antes da primeira guerra mundial e, com amargura, as catástrofes vividas após ela».
Li e lembrei-me do meu pai quando abalei para Moçambique. Disse-me ele que “atrás dos tempos, tempos vêm” e que “atrás de um alto, está uma baixa”. Ditos populares que, à sua idade, eram para ele axiomas vividos. Verdades que dispensavam explicação. Mas para mim eram ditos enigmáticos só destrinçados nas custosas e tortuosas andanças da vida. Os ditos arrastavam consigo algo mais que a simples alusão ao tempo e aspeto orográfico da crosta terreste. Por isso, semelhantemente a Stefan Zweig, eu invoco esse meu tempo de juventude com a mesma nostalgia e com a amargura de quem, por circunstâncias várias (que também envolveu as guerras coloniais) se viu forçado a apagar com lágrimas a fogueira de paixões vividas, no complexo e tortuoso mundo dos afetos e relações humanas.
Nós somos memória e, mesmo que, na cronologia da história, nacional ou pessoal, os factos e as experiências vividas se esbatam no tempo, ou aparentemente se esfumem, a leveza do pensamento, quando menos esperamos, num momento fugaz, num só repente, transporta-nos lá para trás, como relâmpago resplandecente que dá luz e vida ao mundo morto.
Acontece com toda a gente. E dessa realidade humana fatalista, não escapa o letrado e o ignaro, o bem falante, o bem escrevente, o analfabeto e o surdo ou mudo. Todos e tudo.
É isso. Na pilheira dos afetos, aparentemente adormecido nas cinzas, há sempre um chamiço que resiste ao esquecimento e, a qualquer momento, qual pirilampo que naquele limbo permaneceu aparentemente morto, ávido de liberdade e vida, irrompe a brilhar na noite dos tempos, das recordações e das saudades.
Assim comigo. Assim com toda gente, inda que nem toda a gente o diga, ou o diga raramente. Pois falar de afetos, confessar amores vividos, cantados ou sofridos, legais ou proibidos, é tabu numa sociedade letrada/iletrada. É vergonha. Isso é coisa para trovadores, poetas e escritores. Só nas «cantigas de amigo» de D. Dinis, onde ele diz, onde ele fala por ela, pois amor proibido não se escreve, não se diz, nem se revela.
É isso. Lenhador assumido na FLORESTA DAS LETRAS, para RESPEITO dos estudiosos e DESPEITOdos imbecis, estes que se fiquem a coçar a urticária da malquerença, enquanto eu, de podão em punho prossigo a senda de penetrar mato dentro e abrir clareiras de conhecimento v.g. a trazer à tona experiências de vida profissional, académica e afetiva que deixo por herança aos meus filhos e filhos deles (os meus netos) com verdade, sinceridade, honra e dignidade.
Escrevo sentado na carruagem do comboio em andamento e miro a paisagem interior a deslizar velozmente para trás. Mas conformado estou com a aproximação da ESTAÇAO DE SAÍDA. Miro o bilhete picotado e ele parece-me um crivo de milho em fim de vida, tantos são os furos nele deixados pelo atento e zeloso revisor. É isso. Os ditos do meu pai, “atrás dos tempos, tempos vêm” e “atrás de um alto, está uma baixa” deixaram de ser para mim ditos enigmáticos. Stefan Zweig a escrever no seu tempo o que eu podia escrever no meu, sem tirar nem pôr vírgula: “liamos muito, incansavelmente; liamos tudo o que nos chegava às mãos. Procurávamos livros nas bibliotecas públicas e emprestávamos uns aos outros aqueles que podíamos obter; porém o grande centro onde obtínhamos todas as novidades que interessavam à nossa cultura era o ‘café’” [O café] era simplesmente um verdadeiro clube democrático, onde pela modicidade do preço que custava uma chicara de café, cada cliente podia estar sentado horas inteiras, discutir, escrever, jogar, receber corespondência e sobretudo ler um grande número de jornais e de revistas”.
Mutatis mutandis, longe da cidade de Viena, dos anos 20/30 do século XX, no outro lado do mundo, na costa oriental de África, em Moçambique, na cidade de Lourenço Marques, nos anos 60 do mesmo século, eu e os meus colegas de trabalho e de estudo, fazíamos exatamente o mesmo. Sem ponto e vírgula mais. Lembro o Café Continental, o Café Scala, o Café Manuel Rodrigues, a Pastelaria Coimbra, a Pastelaria Atneia, o Restaurante SAFARI e a Cooperariva do Malhangalene. Em todos estes estabelecimentos os estudantes eram recebidos como príncipes. Muito antes de andar por aí gasta na boca dos políticos a necessidade de QUALIFICAÇÕES HUMANAS já os seus proprietários e gerentes sabiam muito bem que era nos estudantes que estava o futuro do país, nas vertentes económicas, sociais, políticas, saúde, educação e justiça. Eles, gerindo os seus negócios, apreciavam a nossa condição de incansáveis formigas de trabalho, por oposição às empoleiradas cigarras na copa verde-rubra das acácias, a debitarem a sua estridente cegarrega. Em grupo ou uma em cada ramo, em cada galho, onde ninguém as vê, ninguém as pega. Insinuante assim, porém amenizando o nosso esforçado “suor”, só o notado e silencioso perfume jasmim de uma ou outra colega mais extravagante.
Sim, mas passados tantos anos, hoje, nesta segunda década do século XXI, nos cafés, nem livros, nem jornais, nem revistas. Alguns clientes falam de futebol e discutem, em vozeira de romaria e feira de montanha, o desempenho incompetente do árbitro nesta ou naquela jogada, com penalty ou sem ele. Outros, os mais jovens, de narizes apontados aos ecrâs dos seus telemóveis e sucedâneos tecnologicamente mais evoluídos, rompem a polpa dos polegares a rolarem os tapetes deles e a verem fotografias, futilidades e outros “passatempos” bem pouco formativos.
Só acrescento que, no campo das RECORDAÇÕES, dos afetos e desejo de futuro promissor e longo, não estão só os avisados AXIOMAS do meu pai e os AUTÓGRAFOS dos meus professores e amigos. Nele incluo também o amuleto “AGNUS DEI” (quadrado, 2,5 cm de lado) feito em tecido de seda com algo “milagroso” dentro, dado pela minha mãe, quando parti para tão longes e ignotas terras, recomendando: “faz-te acompanhar sempre disto, pois isto de livrará de todos os males”.
- Sim senhora, minha mãe!
E eu, convertido incréu, por respeito a ela, desse amuleto “milagroso” me fiz acompanhar sempre até ao seu falecimento. Sempre metido numa das divisões da minha carteira. Mudei de continentes, mudei de carteira, mas não mudei de amuleto. Ele chegou aos tempos atuais, assim, inteirinho, tal qual se vê na fotografia, depois de eu ter corrido “seca e meca”. É um dos pertences que deixo aos meus herdeiros. Meus filhos e filhos seus. Encontrá-lo-ão num qualquer baú-biblô onde a minha mulher MAFALDA (a sua mãe e avó) guardava, em vida, os seus adereços femininos. A força de uma ideia. O respeito por uma crença. O cumprimento de uma promessa feita a uma mãe de mente fundida e moldada no cadinho da Santa Madre Igreja, Católica, Apostólica, Romana. Um filho “incréu”. Talvez isto tudo, contado, vivido e sentido, sentido dê à expressão bíblica: “quão insondáveis são os caminhos de Deus”, (Romanos, 11:33) e os exegetas, os sábios incluam na enigmática explicação o negócio ligado à venda de amuletos e relíquias milagrosas. Dos mais baratos e simples ao mais caros e sofisticadas.