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terça, 19 setembro 2023 11:49

GENTE DA TERRA - DR. EDUARDO PINTO CARVALHO

Escrito por 

DR. EDUARDO PINTO CARVALHO (O POETA)

Hoje mesmo,  dia 21, na Biblioteca Municipal de Castro Daire, pelas 16 horas, estive presente na apresentação do livro de poesia “Romper o Silêncio” da autoria do falecido médico de Castro Daire, que residiu nas Canárias largos anos, Eduardo Batista Pinto de Carvalho, cidadão que, numa das suas visitas costumeiras e anuais à terra natal,  entrevistei em vídeo, em 2019, entrevista alojada no meu CANAL DO YOUTUBE, cujo link anexo no rodapé deste texto.

 PRIMEIRA PARTE

MÉDICO-LIVRO0000 - CópiaO livro começa com um PREFÁCIO bilingue (Português e Castelhano) assinado pelo EDITOR, o DR. DELFIM CARDOSO, colega e amigo do autor, desde sempre. Nele e nas badanas da capa (formato 14x21) o editor tece a BIOGRAFIA aligeirada do autor, a sua naturalidade, os nomes dos seus progenitores, o seu percurso liceal e universitário, profissional, familiar e residência de vida. Enfim, o PERFIL de um castrense que, filho de outro castrense, um opositor ao Regime Salazarista, um credenciado comerciante local que, chegada que foi a idade do filho, com o mesmo nome do pai, assentar praça, recusando-se a vê-lo participar na GUERRA COLONIAL, lhe  sugeriu que fosse  formar-se em MEDICINA, na UNIVERSIDADE COMPLUTENSE, em Madrid, onde, o Eduardinho veio a conhecer a companheira da sua vida, a senhorita Felisa Mandillo Barrios, com quem viria a casar  sem deixarem descendentes.

PREFÁCIO escrito, propositadamente, em duas línguas, foi impresso em fundo preto, opção que lhe empresta, por isso mesmo,  uma leitura semiótica mais profunda e alargada. Não fora o autor já falecido e o prefaciador deixar assim, de forma clara, um pesado sinal  de LUTO e  ausência de uma amizade de longa data que se finou.

Daí, o Dr. Delfim, ladeado  pelo  senhor Presidente da Câmara e da senhora Vereadora da Cultura, fazer a apresentação da obra e explicar as razões da  edição póstuma bilingue com o título altamente significativo “Romper o Silêncio”, seguro de que ninguém sabia, até os amigos mais próximos, que Eduardo Pinto Carvalho, médico de profissão, foi deixando em letra redonda e em verso, a sua pegada de vida, as suas emoções, a sua forma de ver e estar no mundo. As saudades da Pátria, o horror à guerra, o apego à paz e à liberdade, o formulado ensejo por um mundo mais igualitário e mais justo, a angústia e o stresse patente no poema da pp. 136, “cada vez que vou à minha terra”, sentido todas as vezes que se aproximava a sua vinda a Portugal e, consequentemente,  a Castro Daire. Pensamentos vários, retalhos de vida, MEMÓRIAS  da serra do Montemuro e das suas gentes. “Não sou um homem da cidade” diz ele. Sou  um homem da serra”, diz ele em versos de poemas que dão corpo e alma a este livro, de capa azul-celeste que também podia ser de azul-mrinho.

E, também em fundo preto, o Dr. Delfim Cardoso, natural de Ribolhinhos, portanto GENTE DA TERRA, Ilustra alguns poemas do amigo com desenhos seus, ilustrações que, a esmo, de permeio, enriquecem muito a obra do colega e amigo. Os seus desenhos são autênticas filigranas de alma, de afetos, saídas, das mãos e da sensibilidade de um PROFISSIONAL DE SAÚDE que, à semelhança de outros colegas de profissão - Júlio Dinis, Miguel Torga e Fernando Namora e outos mais (*) - mostrou que, além do uso do estetoscópio e equipamentos afins, também (e tão bem) souberam lidar com as linhas estéticas da arte e da sensibilidade humanas: em verso, prosa ou desenho.MÉDICO-30001

Destaco aqui o desenho dos aposentos do Dr. Eduardo Pinto Carvalho,  - El Sauzal - em Tenerife, “El Remanso”, uma espécie de vista aérea, que só de vê-lo, quase ouvimos o marulhar das ondas que cercam e embalam a moradia. E a Capela das Carrancas, de Castro Daire, vista de frente, uma forma diferente de olharmos  a realidade física por onde se movimentou o poeta, em vida. 

No primeiro caso temos os seus aposentos permanentes, lá longe, nas Canárias, e concentramos neles o sentimento bipolar de todo o emigrante que se divide entre o sítio onde faz vida física e o pensamento na terra natal onde cresceu, dez amigos e a vida o forçou a abandonar o torrão natal. 

MÉDICO-40000No segundo caso, para além de tantas fotos dispersas pelo mundo, temos uma forma diferente de olharmos o edifício e o escadório, aquela construção urbana do século XVIII, em Castro Daire, que muito enriquece o nosso património edificado e histórico, sobre a qual já escrevi e publiquei textos e vídeos cabonde. É só navegar nos TRILHOS SERRANOS.PT e no YOUTUBE.

SEGUNDA PARTE

O editor, Dr. Delfim Cardoso, também médico, sabedor das relações de amizade que eu mantive, em vida, com o autor, convidou-me a estar presente na cerimónia que acabo de referir.  E eu  fiz isso num misto de AGRADO  e de PESAR. De AGRADO, por poder participar numa ceronónia de homenagem a um amigo falecido que eu  muito estimava, isto é, o lançamento de um livro seu, editado, em boa hora,  por outro seu amigo. E de PESAR  por ter de me referir a um castrense já falecido, cuja estima e consideração, em vida,  eram, efetivamente, recíprocas. Creio existirem na sua biblioteca doméstica, em Tenerife,  nas Canárias, todos os livros que publiquei, o que, seguramente, não acontece nas bibliotecas da generalidade dos demais castrenses, residentes no concelho.

 

 

MÉDICO-10000MÉDICO-20000De posse do livro, sublinho a boa escolha do editor, Dr. Delfim Cardoso, dos dois pemas colocados no cabeçalho do separador, poemas que aqui reponho com a nota de encabeçarem um nome impresso na VERTICAL, donde extraio o sentido (consciente ou subconciente), do EDITOR transmitir, por esse meio, a ideia de um HOMEM VERTICAL de carater, de antes quebrar do que torcer, um cidadão que, honrando o progenitor, não vergou a espinha ao REGIME VIGENTE e o combateu dentro dos condicionalismos existentes. Sobre isso, sobre o seu pai, também de nome Eduardo Pinto Carvalho,  deixei algumas linhas na crónica “Consílio dos Semideuses”disponível em Trilhos Serranos.pt.

TERCEIRA PARTE

Guardei para o fim desta minha reflexão a transcrição do poema da página 237, “No me perguntes quién soy ”.  Escrito na língua castelhana, este poema, na minha leitura,  assume um sentido que, de contrário, não teria. É que, se o “signo” de qualquer língua integra as duas faces “significante” e significado”, no caso presente o “significante” chama a si  a intencionalidade literária e poética já que parte do “significado, v.g. a emoção, o sentir e pensar do poeta se pensa e sente nessa língua.Este poema, na minha leitura, vale por todo o livro. Assim:

a lerNo me perguntes quién soy

No me lo perguntes,

No me perguntes

Lo que quiero

O para donte voy,

No me lo perguntes.

Si quieres saber

Quién soy

Lo que quiero

Y para donde voy, 

basta que mires

Para la senda del camino

Que recorro todos los dias.”

Não é propriamente por acaso que o poeta resolveu escrever este e outros poemas em castelhano, grafia que o editor respeitou e fez muito bem na opção que tomou. 

E para melhor avaliarmos o sentido amplificado do «significante» usado, direi que ele espelha o elo de afetos que uniu o casal  que se conheceu e amou a vida inteira. E, por contraste, boto mão, à sabedoria de um antigo professor de LITERATURA que tive em Lourenço Marques, de seu nome FRANCISCO CRISTÓVÃO RICARDO, já falecido. Foi meu professor de Latim e de Literatura, e nós alunos  obrigados éramos  a fazer a radiografia dos textos, fosse em prosa, fosse em verso,  sujeitos a estudo e a testes.

Um dia veio à colação um poema de Reinaldo Ferreira. E dizia o professor que aquele poema, só por si, valia mais do que alguns livros inteiros de muitas páginas. Que poema era? 

Eu, Rosie, eu se falasse dir-te-ia

Que partout, everywhere, em toda a parte,

A vida égale, idêntica, the same,

É sempre um esforço inútil,

Um voo cego a nada.

Mas dancemos; dancemos

Já que temos

A valsa começada

E o Nada

Deve acabar-se também,

Como todas as coisas.

Tu pensas

Nas vantagens imensas

De um par

Que paga sem falar;

Eu, nauseado e grogue,

Eu penso, vê lá bem,

Em Arles e na orelha de Van Gogh...

E assim entre o que eu penso e o que tu sentes

A ponte que nos une - é estar ausentes”.

sentadoTambém REINALDO FERREIRA misturou, como vimos,   propositadamente,   palavras estrangeiras com a nossa língua-mãe. Ao fazer isso deu outra dimensão ao poema. As emoções e a vida por ele sentidas estavam nas demais línguas e nas demais vidas do mundo que, humanamente sentindo e pensando, viviam cada qual enredados nos seus interesses imediatos. Ela, a Rosi, a pensar nas “vantagens imensas de um par que paga sem falar”. E ele, Reinaldo,  “nauseado e grogue” a pensar em artes e na “orelha de Van Gogh”.

Assim mesmo. Simples de ler e interpretar. Mas bem poderá haver leitores, meus seguidores,  que precisem de ler o meu texto “ESTÓRIA POÉTICA - BORDEL” (disponível em trilhos-serranos.pt)  para extraírem o sentido profundo e lato do poema que o meu professor de LITERATURA e de LATIM, dizia, aos outros e a mim.

Sempre direi, contudo, que a intenção de Eduardo Pinto de Carvalho, usando a línguafalada pela sua esposa, reforçou o elo de afetos que os uniu a ambos a vida inteira. Enquanto Reinaldo Ferreira, usando a mistura de línguas,  visou mostrar o contrário: dois seres humanos juntos, a dançarem a valsa, mas ausentes, distantes, separados por interesses diferentes. E direi ainda que o livro «Romper o Silêncio» de Eduardo Baptista Pinto Carvalho, escrito em Portguês e Castelhano, esvazia de sentido o dito popular: «da Espanha, nem bom vento, nem bom casamento». E para o que observarem que o casal não fixou residência em Portugal, mas sim nas Canárias, bem pode inverter-se o dito «de Portugal para a Espanha, foi bom vento e bom casamento». 

MÉDICO0000

 

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(*) Incluo no rol o MÉDICO  Francisco Luiz Lopes que no seu trabalho «Breve Notícia de Sines; publicado em 1850 não hesita em afirmar que «Os facultativos da capital não sabem nada de medicina aldeã, pensam que todo o mato é orégãos. Pois, meus senhores, isto é outro mundo. O doente luta enquanto pode e quando agoniza chama  a «Santa Unção» e o «Oficial de Saúde» (...) se o cadáver revive «Io triunphe», vai-se descalço à Senhora das Salas cumprir a promessa e o «Oficial de Saúde» vôa nas asas da fama à categoria de «virtuoso». Feliz mortal! Então chamam-lhe  «Beneficiado» «Doutor», «Mestre», «Licenciado» e tudo o que lhes lembra» (cf. ob. cit. pp. 78)

Link  https://youtu.be/QKxSJGEagWs?si=jCVUYnL2Bu1BZndK 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.