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sexta, 01 setembro 2023 16:40

MONTEMURO «A SERRA E AS SUAS GENTES» (3)

Escrito por 

BEIJINHAS

Nos últimos tempos os meios de comunicação social do mundo inteiro não têm falado de outra coisa senão de um BEIJO. Ele, esse BEIJO,  vai ficar famoso na HISTÓRIA e não  sei se algum escriba (dos tantos que por aí há), fará obra que «afetuosamente» se estenda pela eternidade.

 

Enquanto isso, em vez BEIJOS, vou falar de BEIGINHAS. Isto porque o Dr. Manuel Lima Bastos, inesperadamente a isso me conduziu. Já nos conhecemos há muito tempo, mas vi-o, pessoalmente, uma só vez. Foi na Pastelaria Académica, em Castro Daire, quando ele regressava a penates, sitos lá para as bandas do mar, vindo de Sernancelhe, depois de ali ter estado a preparar a apresentação de  um dos seus livros, ou algo que o valha,  sobre AQUILINO RIBEIRO

Romarigães1Estudioso compulsivo do MESTRE, estou em crer que possui na sua biblioteca toda asua obra, sempre com ela às voltas, foi por saber-me beirão, e também “ledor” do HOMEM DA NAVE, que o levou a contatar-me e a marcar o encontro comigo.

Foi o primeiro e o último, aquele em que nos apertámos as mãos. Um daqueles “aperto-de-mãos” que ficam na memória. Duas mãos que se apertam no ato de apresentação e no ato de despedida. Mãos  de dois cidadãos que acabam de conhecer-se, mas que, desde não se sabe quando, trilhavam e cruzavam veredas, carreiros e caminhos das TERRAS DO DEMO abertos por AQUILINO RIBEIRO. Aperto-de-mão-mão rápido e civilizado. Não daqueles gestos, tipo labroste, em dias de feira, de quase arrancar o braço ou de alterar o ritmo cardíaco pela incessante e emotiva sacudidela. 

Pois. Mas se me lembro desse rápido encontro e nunca mais as meninas dos nossos olhos se fitaram de frente,  muitas vezes voltámos a encontrar-nos nas encruzilhadas onde, a ele e a mim, nos levaram as leituras do MESTRE. 

E foi para mim um privilégio conhecê-lo. Disso faço eco nas páginas do meu site, pois ele, um “aquiliniano confesso”,  leitor e comentador de AQUILINO, teve a gentileza de me remter, por “oferta”, a DEZENA de livros que, apaixonadamente, produziu escalpelizando tudo, praticamente tudo, o que saiu da pena daquele filho de Padre, que não dando padre, deu escritor e  republicano assumido, que, em Portugal e no estrangeiro, nas tertúlias literárias urbanas e nas tavernas das aldeias serranas (ditas vendas),  sempre se bateu contra a “hipocrisia social” do seu tempo. E hoje faria o mesmo. Seguramente. Incansavelmente.

O Dr. Lima Bastos e eu, há uns tempos que deixámos de trocar correspondência, mas, de repente, ontem mesmo., entrou-me na caixa do correio eletrónico, vinda da parte dele, a seguinte pergunta:

Meu caro Abílio:

Veja se a sua ciência no falar beirão me pode ajudar:  na pág. 6 de "Andam Faunos pelos Bosques" emperrei na seguinte expressão:"Sabe vossemecê como se descasca uma beijinha?". Que raio é esta "beijinha" que dicionário algum refere, tão pouco o Glossário do Elviro Gomes? 

Graças antecipadas pela ajuda que desde já pago com um abraço,

MLB”.

Respondi de pronto:

Meu caro amigo,

BEIJINHAMuito me agrada que continue a ler o nosso MESTRE. E respondo com agrado à sua pergunta. Aqui, nas beiras, direi melhor, na área da Beira que conheço, sempre ouvi a minha mãe, que tomo por exemplo, chamar “beijinhas” às vagens, fossem eles de feijões, feijocas e até das giestas.

Conte sempre comigo, amigo.”

E não tardei a acrescentar:

1- VAGE-Em Cotelo, na serra do Montemuro e noutros sítios, dizem «beijinas». Em Cujó e noutros sítios, dizem «beiginhas». Se o meu amigo já viu «vagens» abertas naturalmente, sobretudo a «vagem» da giesta e a sua forma de ela «parir» sementes e forma natural de reproduzir a espécie, logo fará a analogia certa. O povo sabe muito e Aquilino que manobrava melhor o latim do que eu o teclado do meu computador sabia muito bem a evolução semântica das palavras. Beiginhas>beiginas>baginas>vaginas. Mas isso é para os linguistas. Abraço”.

E como, de permeio, eu lhe tinha remetido o link do meu texto ilustrado com “torgas” com o título  “MONTEMURO, A SERRA E AS SUAS GENTES”, onde falo da “urgueira gandarinha” (de flor lilás) e da “urgueira reagueda” (de flor branca), sublinhando o valor da “torga” com que se fazia CARVÃO, tarefa que permitia ao homem da serra ouvir tilintar na sua bolsa algum dinheiro de “metal sonante”, o Dr. Manuel Lima Bastos, prendou-me, de retorno, com o texto que remata este meu apontamento, uma saudosa página de vida, uma autêntica página de história, um pedaço de pano solto, um palmo de tecido saído do tear da memória, ali, onde se cruzam os fios das lembranças, dos pensamentos e dos afetos que fizeram de nós gente e amigos da LITERATURA. 

Pedi-lhe autorização para publicar o seu texto e ele respondeu, de pronto, que não era preciso pedir. Que dispusesse, que usasse e abusasse como muito bem entendesse. E eu retorqui:

CRIVOBEIJINHAS«Certo, amigo, mas é para ficar registado que, nós ainda “queimamos” fósforo a lembrar o MESTRE e a usufruir do seu legado. Se não fosse o meu amigo, ia lá eu lembrar-me das advertências da minha mãe para não pisarmos as “beijinhas” estendidas a secar, na eira? 

E, já agora, que tanto gosta de culinária e já deu provas disso, algum dia comeu “sopa de beijinhas” secas, guardadas em sacos para, à falta de melhor, se cozinharem nos dias de invernia? Irei escrever sobre isso. Só lhe digo da pena que tenho não o ter por perto. Faríamos, por aqui, uma excelente parceria em busca de um passado linguístico que está bem fora dos dicionários e prontuários da LÍNGUA PORTUGUESA»

Abílio.

Com efeito, havia mesmo «sopas de beijinhas». Eu as comi. Que remédio! Espoliadas dos feijões, em tempo certo,  secas, guardavam-se em sacos de serapilheira e, no inverno, quando a neve proibia as folhas de couve galega entrarem na panela, ia-se ao saco das «beijinhas`, metiam-se umas mancheias delas na bojuda panela de ferro, de tripé,  e fervidas, elas, mortas, readquiriam  algumas das características carnudas que tiveram em vida  antes de serem secas e «vivóvelho», enganava-se a fome com um naco de broa de milho a roer. Mas desses tempos, aqueles que nós vivemos,  também nos fala o Dr. MANUEL  LIMA BASTOS, assim:

 “Meu caro Abílio:

 Já li, com o agrado de sempre, a sua crónica sobre as urgueiras, espécime vegetal desconhecido aqui para as bandas do litoral. Quando era criança e a família saía a passeio de carro com meu pai ao volante dum modesto Fiat Balilla (matrícula a começar por MN, preto, com duas portas que pelo interior abriam carregando numa corrente metálica e que só pegava dando à manivela junto ao radiador) lembro-me que aí pela primavera, quando íamos para os lados de Arouca, Alvarenga e Cinfães via os montes cobertos por um manto de cor alilazada. Pergunto-me se seriam as suas aquilinianas urgueiras ou apenas as modestíssimas urzes. 

 Quanto à miséria e à crónica falta de dinheiro a seguir à guerra lembro-me que todos os sábados minha mãe mandava à mercearia vizinha (você, Abílio, fala em tenda à moda de Aquilino, aqui dizia-se loja, o que vai dar ao mesmo) trocar vinte e cinco tostões em moedas de tostão pois era o dia em que uma chusma de pobres descia do interior do concelho da Feira (a confinar com Arouca e Castelo de Paiva). Cada casa "remediada" tinha avença semanal de tostão com cada um dos "seus" pobres.

 Nessas povoações do interior concelhio, que pela orografia mais acidentada eram consideradas "serranas", também se fazia carvão que depois era vendido de porta em porta nas freguesias do lado do mar. Sempre que alguém vendia pinhal às serrações, logo acudia algum miserável a pedir pelas almas que o dono o deixasse tirar "os tocos" do pinheiro. De alvião em punho, "andar aos tocos" era o trabalho mais duro ao qual só os muito pobres se vergavam. E, tendo visto fazer carvão, suponho que o combustível mais utilizado eram justamente os tocos de pinheiro. Como na época ainda se cultivava muito centeio, uma outra forma de ganhar uns patacos era percorrer os centeais à cata da cravagem que as farmácias compravam e que hoje sei que contém um alcalóide alucinógeno, tipo LSD, usado em medicamentos. Eu próprio, quando precisava de uns tostões, surripiava de casa algumas garrafas vazias ou um molho de jornais velhos que ia vender a uma loja onde a casa não era afreguesada. Mas o certo é que, tal como está hoje este mundo sem conserto, vão lá agora contar estas histórias às novíssimas multidões do desperdício.

 E, com mais um abraço, por aqui me fico,

MLB».

Eis a razão por que gosto dos meus bons amigos. Eles, sabendo-me almocreve das letras, me metem, de borla, nos alforges do conhecimento,  relatos históricos não lidos nas universidades. O pergaminho deixado aqui pelo Dr. Lima Bastos é semelhante a outro que me foi doado, em Castro Verde, por uma prima da minha esposa, quando ali lecionei. Marcante: «aos sábados, os pobres corriam a vila e, de porta em porta, recebiam o costumado «tostão» de esmola. Miséria? Pois. Aquilino não esqueceu o tema e quem não leu, devia ler «As GRANDEZAS E MISÉRIAS DOS PRÍNCIPES DE PORTUGAL».

E para terminar com uma nota de humor, vou parafraseá-lo, naquela parte em que ele se refere às maleitas de D. João III. Eram tais e tantas que os «físicos», em volta do seu leito, não atinavam com a cura. Desconsolados, em uníssono, resolveram aplicar-lhe uma tal dose de mezinhas que disseram: «com isto, ou morre, ou fica tolo».

Esperaram pelo resultado e AQUILINO rematou :

- «Não morreu!»

 



 
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.