LETRAS VIVAS
Há dias escrevi e publiquei um texto reportando-me ao “fabrico” de CARVÃO por toda a serra do Montemuro, em tempos idos. A URGUEIRA GANDARINHA (Erica australis, L.) que, com o seu verde identitário e a sua cor lilás, em tempo de floração, revestia tudo quanto fosse encosta, monte e outeiro baldios ou tapadas privadas, era o arbusto que produzia as “torgas”, as raízes com as quais se “fabricava”, essa indispensável fonte de ENERGIA (em potência), nos meados do sé ulo XX.
O carvão era consumido nas forjas (ditas “tendas” nas aldeias) e lareiras de mosteiros e solares senhoriais citadinos ou de quintas abastadas. E era também uma maneira do camponês, de então, poder fazer algum dinheiro para os seus gastos quotidianos, pois a venda dos vitelos, borregos, leitões e cabritos das “paridelas” anuais dos animais que possuía, sabiam a pouco para colmatar as necessidades da vida. Na época não havia cartões “VISA”, nem dinheiro em depósito nos bancos, preste a ser levantado a qualquer momento. Vida difícil era essa dos meus tempos de mocidade.
Como a tarefa de fazer carvão implicava, seguramente, “saber de experiência feito” e, nos meus estudos posteriores, não vi nada escrito explicando a “práxis” implicada nessa “labuta pela vida” ao longo de séculos, algo escrito em abono da inteligência humana camponesa, entendi queimar algumas LETRAS, “carbonizá-las”, alargando, assim, esta área do conhecimento. Uma clareira aberta na FLORESTA DAS LETRAS por este lenhador que, de podão em punho, se presta a explicar o que nunca viu escrito, nem explicado. (Vide texto anterior).
E, por isso, cá estou de novo a fazer eco do assunto, pois, rodando pela serra há muito tempo, a pé, de mota e de carro, dei-me conta que esse arbusto, está em acelerado desaparecimento por força da disseminação da GIESTA, uma autêntica conquistadora, assassina de carqueijas, sargaços, queirós, tojos, urgueiras e mais arbustos de menor porte que ajardinavam a serra e enriqueciam na sua biodiversidade colorida e aromática.
E estou certo e seguro de que todo o cidadão, nado e criado nos meios urbanos, desinteressado pelas cosas naturais, jamais viu e ouviu o estalido da vagem seca da giesta a rebentar e a atirar para longe as suas sementes, nquela sua luta natural pela dispersão e preservação da espécie. Que nunca reparou nessas vagens secas, viradas do avesso, recurvadas sobre si próprias, como que a rirem-se para nós da sua façanha predadora e assassina.
É isso. A URGUEIRA GANDARINHA foi muito útil ao ser humano, em tempos idos. E basta folhear os livros das atas dos EXECUTIVOS MUNICIPAIS de outrora para neles vermos exaradas as decisões dos EDIS empossados a autorizarem as JUNTAS DE FREGUESIA a “coutar” uma certa área de “baldios municipais” a fim de se dar tempo para nele crescerem as urgueiras e se criarem “tocos” (torgas), com vista a que, com o carvão delas advindo, se poder construir um fontanário, abrir um caminho ou fazer um pontelo na travessia de um ribeiro. As JUNTAS DE FREGUESIA e os EXECUTIVOS MUNICIPAIS não dispunham, então, como dispõem atualmente, de dinheiros provenientes do ORÇAMENTO DO ESTADO e a “torga”, abundante pela serra fora, era um recurso financeiro a que as instituições políticas botavam mão para executarem todo e qualquer MELHORAMENTO LOCAL.
E vem muito a propósito lembrar isso num tempo em que vemos os nossos EXECUTIVOS a “esbanjar” os dinheiros públicos por tudo quanto “é obra” de chão e de muro. Pedra lapidada quando bem podia ser rachada, saída das pedreiras, tosca e mais barata. É notório e público, não precisa de demonstração. Basta OLHAR e VER. Os cidadãos críticos, os poetas, os escritores concelhios,no exercício da sua cidadania, não podem ser cegos, surdos e mudos face a tamanhas tropelias.
E dada a mais valia que a “torga” teve nos meios rurais (o escritor Miguel TORGA, não a terá colado ao seu pseudónimo, por acaso) não foi sem algum espanto, mas com muito regozijo, que vi um EXEMPLAR desse arbusto, em LAMELAS, dentro da povoação, colada a um muro granítico tradicional que separa a pública fita negra do asfalto de um lameiro verde particular, com sinais evidentes de ter sido limpo há pouco tempo. Na presença dessa realidade, apressei-me a fazer um vídeo a que juntei o seguinte comentário, sem qualquer cibo de ironia:
“Quem se der ao cuidado de verificar que a GIESTA está a “comer” toda a arbustagem serrana, como sejam o sargaço, a carqueja, etc.etc.etc. ainda terá de pedir à UNESCO para elevar a URGUEIRA GANDARINHA à categoria de PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE, baseando o argumento de ela ter sido - ERICA AUSTRALIS, L. - a principal fonte energética serrana, antecipando-se SÉCULOS aos GERADORES EÓLICOS que hoje estão por todo o lado”.
Ignorando, efetivamente, o nome do proprietário, recorri, via Messenher, ao meu amigo Fernando Parente, natural de Lamelas, que prontamente averiguou de quem era e me informou que um dos herdeiros, de seu nome João Morais, foi o responsável pela limpeza do lameiro, cumprindo um desejo e recomendação da senhora sua mãe, Dona Ermelinda: “não cortes aquela urgueira”. Um espanto! Sensibilizado pela atitude da senhora Dona Ermelinda, respondi de imediato a esse meu amigo: “ainda há GENTE DA SERRA”.
Com efeito, tendo sido esse arbusto tão pródigo a fornecer as suas lenhas e raízes ao ser humano, RURAL E CITADINO, durante séculos, vê-lo em “vias de extinção”, é, para todo o estudioso, para todo o Historiador, para todo o amante da NATUREZA,uma grande dor de alma. E, pelos vistos, sem estudos botânicos, de fauna e flora, ou coisa que o valha, sem preocupações de caráter ecológico e/ou de biodiversidade, a Dona Ermelinda levada tão só por respeito a um “monumento” vegetal herdado dos seus antepassados, velhinha e doente, recomendou ao filho João Morais para “limpar o lameiro, mas não cortar a urgueira”. Uma lição de identidade. Foi o que ele fez, com a garantia de assim proceder “na suavida”. (Cf. Vídeo em rodapé)
E daí, o meu espanto e regozijo simultâneo, ao ver uma URGUEIRA (não sei se “gandarinha” se “reagueda”) em plena povoação de LAMELAS, encostada ao muro granítico tradicional que separa o negro alcatrão da estrada e o velho lameiro verde, onde, de quando em vez, pastam ainda algumas ovelhas, como bem mostras as fotos ao lado.
Sabido isto, bem posso dizer que esta aldeia possui ali, à beira da estrada uma “relíquia serrana” em vias de extinção. Ela ornamenta aquele muro de lameiro, muro também ele com evidente carga histórica. Outros residentes na aldeia ou fora dela, se calhar julgando-se mais “civilizados e cultos”, teriam lá posto um muro de pedra polida revestido, sabe-se lá, de uma cerca com o caraterístico buxo dos cemitários, igual a tantas outras que vedam quintais particulares e jardins públicos.
VIDEO URGUEIRA:
NOTA: As torgas (raízes) que ilustram este texto são propridade dos irmãos Hélio Silva e Agostinho Silva, de LAMELAS, que as preservam em suas casas como elementos decorativos. Por solicitação minhae consentiram que eu as fotografasse e que fizesse delas o uso que entendesse. E cá estão elas, no rio do CONHECIMETO, na «cova de carvão», com os meus agradecimentos aos dois cidadãos com RAIZES na SERRA.