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domingo, 25 junho 2023 11:55

A SERRA DO MONTEMURO É UM JARDIM

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A SERRA DO  MONTEMURO É UM JARDIM

À falta de uma flor, uma simples margarida que seja, daquelas florinhas que, espontaneamente, bordejam todos os caminhos, ali, no espaço que foi JARDIM PÚBLICO, na vila de Castro Daire, espaço que correu mundo em POSTAIS ILUSTRADOS como BILHETE DE IDENTIDADE DO CONCELHO, espaço resultante de expropriação de hortas, quintais e pardieiros levadas acabo desde 1919, pelos EXECUTIVOS MUNICIPAIS DA ÉPOCA, tal como já historiei em livro próprio, espaço que, em recente REQUALIFICAÇÃO, RESTAURAÇÃO, REABILITAÇÃO (como se lê em matéria especializada)  perdeu a IDENTIDADE  virou não “SEI QUÊ” e, prossigo, à falta de uma só flor, dizia eu, faminto de algo identitário, belo, colorido e nosso, monto a minha mota e deixo-me ir nela até ao topo da serra do MONTEMURO. Não sem me perguntar: como se transmitem  os valores identitários às novas gerações se não conciliarmos o passado com o presente e o futuro? Se varemos da HISTÓRIA o legado que tanto custou aos nossos ANTEPASSDOS?

 

MotorPùtegasLá chegados, à serra, inteiros e seguros,  parada, inclinada para a esquerda, sem perda de tempo, posta no descanso, pé firme no chão, desmonto e, manso, tiro as mãos do guiador. E se até ali, apressados, em todo o trajeto, fomos um só, dobrando juntos a fita de alcatrão,  ambos, na separação, adquirimos a nossa individualidade, a nossa identidade. Ela se fica ali sozinha, naquele terreiro, e eu avanço pelos sargaçais e carquejais dentro, à procura de pútegas e das mais belezas plantadas  pela natureza neste livro permanentemente aberto que já foi lido por pastores e lavradores analfabetos, alguns nativos, outros transumantes como eram aqueles que, todos os junhos de cada ano, chegavam à Serra Montemuro vindos da Serra da Estrela

É um descampado. Estou rodeado de paúlos e de penedos grandes e pequenos. Eu vos conto. Não há vivalma por perto. Alma humana, certo? Mas rodeado estou de sons, cores, brisa  e vida. E, bem perto, troços interrompidos, levantados e caídos, quebrados, estão as muralhas do velho “crasto” habitado, em tempos idos, pelos nossos antepassados.

A provoação mais próxima que vejo daqui é Alhões, aquela aldeia que, noite e dia, ouve, sei lá há que séculos, a poesia do rio Bestança a correr apressado para o Douro. Os meus olhos deslizam como perdizes de asa aberta até ao espelho de água daquele rio, lá ao fundo, naquela curva geológica de milénios. Ali, corre água limpa ou turva, a caminho do Atlântico. E dali, sem estorvo, os meus olhos, retomam caminho e sobem, devagarinho, até ao cocuruto de um penedo que arredonda a linha do horizonte, ali, onde crucita um corvo solitário, levantando e baixando a cabeça a cada nota solta do bicão, quá…quá…quá…o penedo mais destacado do merouço deles que juntos lembram um saco de batatas entornado ali deixado por agricultor perdulário ou por almocreve passante e descuidado. Em redor de mim tudo é contrastante e belo. Na forma e na cor. O amarelo da maia, o verde das giestas, douradas e prateadas, o lilás das urgueiras, o verde serrilhado dos fieitos e fenos de lameiros. E distinto, para olhar fino e só,  é o lilás da urgueira e da queiró. E não esqueço a distinta cor da folha e da flor da CALDONEIRA, planta quase extinta na serra, como extinto foi o TEIXO, a árvores que deixou a sua identidade na toponímia local, e nos apelidos de famílias inteiras: os TEIXEIRAS, o RIO TEIXEIRA, o PORTO DO TEIXO, a PEDRA TEIXEIRA, o DOCE DA TEIXEIRA, o CAMINHO TEIXOSO, o VALE TEJOSO, tudo derivado de TEIXO, árvore sagrada dos Celtas, desaparecida, mas com restos de ossatura em LAMELAS, ossos que, unidos, viraram escultura, altar de Santa  Bárbara por ser crença que eles atraíam os raios da trovoada.

MAIS-1MAIS-2Uma revoada de factos e de ideias. E repito, lá no fundo, naquela fita prateada vejo que desliza ainda um barco rabelo que leva ao Porto e ao mundo, o suor de um tempo morto e de um espaço vivo com séculos de vida e vigor. Naquele barquinho, metidos em barris, navegam socalcos líquidos de xisto, escaleiras de montes, a perder de vista, sempre a subir e a descer encostas. Trás-os-Montes. Parte de Portugal. As caravelas, as naus e galeões rasgaram os mares, nas descobertas e conquistas de quinhentos. E, o Ultimatum de 1890, em defesa dos territórios cobiçados pelos ingleses, inspirou o hino HERÓIS DO MAR, mas fosse eu compositor, vendo o que vejo, sem apelar aos canhões e à guerra, faria um hino cantando este barquinho pequenino, feito de carvalho alvarinho e todos os HERÓIS DA TERRA que nele navegaram e navegam no mar do tempo.

Devaneio meu. Aqui perdido entre terra e céu, vejo o rio Bestança, anónimo, humilde a dar o seu contributo a quem nome tem. Ouço a cantilena das suas águas eternas e, lesto, adivinho o protesto do seu leito secular contra as margens que o oprimem. Extasio-me com a magia  que rescende do tapete colorido que me circunda. E, entre gigantes e bizarros penedos, ciente estou de ser um ponto liliputiano, um borrão  caído nesta tela nunca pintada por paleta experimentada, digna de antologia de arte. E isso direi por toda a parte. A serra nos meses de maio e junho, é um jardim, é um roseiral. E tudo, tão natual, por todos os cantos (aqui nada pega de espeto) mostra os seus encantos a quem olha, vê e sente. Já noutros textos escritos comparei esta beleza, esta vestimenta serrana, a uma casaca de toureiro ou dalmática de clérigo. Não faltam nela brocados brancos, verdes, dourados, ondulantes, cerzidos numa confusão de aromas que nos penetram olhos dentro.

CALDONEIRA-1abílio-3 Magia vária. Dispensamos nariz e pituitária. E nesta sinfonia de cores, entra-me no ouvido o cantar da cotovia. Ela o seu voo inicia do penedo onde tinha pousado, há bocadinho, como pedra caída. Um espetáculo só visto, naquele seu subir e cair. Que instinto! Que técnica! Que arte de voar! Um regalo que de nada serve contá-lo. Não há palavras nem artista das letras que descreva essa sensação. Só mesmo presenciada e sentida. E, no mesmo penedo, um lagarto, a medo, desconfiado e confuso observa curioso o recém-chegado. Eu o vejo, ele me observa de peito levantado e rodando a cabeça indagadora. Olhos vivos, cabeça levantada, movimentos lentos, é isto, ali em cima,  está  um poeta interpelando o mundo a começar pelo intruso. E escreve poesia, sem metrica nem rima.

Passou o dia. E, no céu poente,  apareceu a neblina dourada do sol-pôr. É hora de retorno. De regressar à moradia. Tomar a  rotina. Dirijo-me à mota, essa companheira minha, sempre pacientemente à espera de passeio. Escarrancho-me nela, primo o botão de arranque e, trum...trum...trum...,assim, num instante, levanto o descanso e reparo que na sua pegada bem vincada no terreiro, estava esperneando uma formiga. Cotada. Ficou ali enclausurada o tempo todo.  Pesaroso espero que ela, livre,  retome a sua lida. Retomou. Mas escusado será dizer que, depois de eu  ter degustado, à saciedade e em liberdade, aquele caldo  de sons, de cores e de vida, deixei o lugar com um formigueiro na barriga. . 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.